quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Tributo a Raul de Leoni V


TRIBUTO A RAUL DE LEONI V
 Em nenhum momento surpreendemos em Luz Mediterrânea, o ranço da  indiferença diante das coisas e dos homens. Podemos ler nos versos de Leoni, algum pessimismo, sinais de uma postura estóica diante dos limites humanos, pudor ante a fraqueza congênita do homem, lirismo romântico e esperançoso, e até certa melancolia, quando proclama em rimas sonoras:

“Poente!
Estas horas que estão passando surdamente,
Nunca mais voltarão no tempo imaginário:
No jardim solitário.
Estão-se desfolhando, ingloriamente,
Tantas rosas divinas a sonhar;
Rosas que poderiam debruar
Leitos de fadas, em guirlandas luminosas,
Emoldurar cabeças de poetas
E que jamais florescerão ante os meus olhos...
Por que então,
Deixá-las numa morte inútil e secreta
Esfolharem-se assim, anônimas e virgens,
Na sombra do jardim
Sobre a tarde serena?
Ah! Se eu fosse colhê-las para mim...

Não vale a pena!

Poente!
Estas horas que estão passando surdamente
Nunca mais voltarão no tempo imaginário!
Na sombra do meu ser profundo e solitário
Tantas idéias límpidas, bailando,
Estão dizendo cousas infinitas...
Idéias que seriam minha história,
Minha imortalidade, minha glória,
E que por certo eu nunca mais encontrarei...
Por que, então,
Vê-las morrer, assim, sem voz, sem serem ditas?!...
Ah! Se eu as animasse em palavras eternas,
De uma vida magnífica e  serena ...

Não vale a pena!”[1]

Todavia, nunca o poeta resvalou para a indiferença insegura. Ele avalia e decide - “Não vale a pena”-, sem perder a esperança de “rosas divinas a sonhar”... “que poderiam debruar leitos de fadas”. A indiferença terá sido, para ele, talvez, uma vivência passageira, intermediária entre o desespero e a aceitação da realidade. Indiferença que só viceja em quem não tem criatividade ou força interior suficiente para sobrepujar a perplexidade diante dos desafios da existência. Quando falta esta força, mergulhado no estranho marasmo da indiferença, o homem passa a nivelar opiniões, decisões, comportamentos por um relativismo sem entranhas. Faltam-lhe critérios pessoais. Um olhar crítico percebe que neste clima, tudo parece pequeno, destituído de sentido, ridículo até. Diante do (des)valor de tudo, torna-se hilária a ação reivindicante do ser humano, pois o postulante não tem sequer em que ancorar sua proposta existencial.
  A vivência nadificante que assola o espírito indiferente, deixa à mostra a falta do vetor da existência, ou seja, a ausência de um valor, singular, original, ou até mesmo a adesão responsável às normas culturalmente sedimentadas. A segunda opção é mais cômoda, porém a primeira é mais estável e tem um sabor gostoso de conquista. De qualquer forma essa âncora ética não é uma emergência natural. Ela se constrói com disciplina, e se consolida pela autenticidade do ser pessoal na busca insistente de um elo comunitário. O homem reconhece a força da solidariedade, mas na sua volubilidade afetiva nem sempre consegue fazer dela o leitmotiv de sua existência. Ora por falta de renovação dos sentimentos de aproximação, ora em função de circunstâncias desfavoráveis. Esvaziadas dos sentimentos solidários, as relações humanas se contaminam com a vivência de pura canseira incômoda. Esse é o momento em que o desespero pode irromper, destruindo qualquer possibilidade de existência plena.
  Enquanto nega seus conflitos existenciais, ou se revolta contra eles, ou tenta barganhar uma solução, ou busca afirmar um ideal, o homem ainda que sofrendo vive suas emoções; tem contra o que, ou porque lutar, e isto antecipa, sempre, a expectativa de uma nova possibilidade de ser. Mas quando fica literalmente solto no espaço-tempo ilimitado da indiferença, sem apoio, o ser consciente cai na antecâmara do não ser. Neste ponto, um passo dado em falso mergulha-o no desespero ou na depressão. É necessário um suporte interior para anular este risco... a mesma força que mantém a unidade pessoal subjetiva, sendo ela um corolário do dinamismo eterno da Criação. No curso da elaboração natural de uma situação limite, na melhor hipótese, o homem vence o desespero estóica ou misticamente para conviver com uma realidade precária, finita, incontornável. Em sua poesia Raul de Leoni omite, também, a fase intermediária do processo, entre a barganha e a aceitação dos limites contingenciais da existência.  Seguramente porque as sombras do desespero não conseguem resistir ao seu espírito luminoso.
Nem desespero nem indiferença cabiam no seu jeito poético de ver o mundo. Raul de Leoni registra as verdades mais dolorosas sem enfatizar os aspectos trágicos da realidade, e pinta os sentimentos mais profundos, reconhecendo-lhes os matizes obscuros sem negar-lhes os reflexos luminosos. Interessa-o, sobretudo, a integridade do fenômeno humano enquanto síntese surpreendente, entre a razão e o sentimento, entre os impulsos, as paixões e a ordem racional que preside o Universo. A sua busca poética apoteótica, explode numa alegoria de beleza sutil em que o  poeta ático, como o chamava Agripino Grieco, todo sentimento, descreve o encontro com a amada (a Grécia), berço da razão, plena de culta sabedoria.

“Nascemos um para o outro, dessa argila
De que são feitas as criaturas raras,
Tens legendas pagãs nas carnes claras
E eu tenho a alma dos faunos na pupila.

Às belezas heróicas te comparas
E, em mim, a luz olímpica cintila.
Gritam em nós todas as grandes taras
Daquela Grécia esplêndida e tranqüila.

É tanta a glória que nos encaminha
Em nosso amor de seleção, profundo,
Que, ao longe, eu ouço o oráculo de Eleusis.

Se um dia eu fosse teu e fosses minha,
O nosso amor conceberia um mundo
E, do teu ventre, nasceriam deuses...”[2]

  Mas nós sabemos, o poeta intui que transcendendo a síntese magnífica da consciência e do mundo, cintila uma realidade prodigiosa que sustenta ambos, desfazendo, na unidade, os contrastes e todas as diferenças. Todavia, na sua plástica finita, as palavras reduzem as intuições profundas do mistério do ser às formas leves e efêmeras de sombras passageiras. Elas não conseguem mais do que encobrir a inquietação frente à  incompreensão racional do ser...

“Como são lindos os teus grandes versos!
Que colorido humano que profundo
Sentido e que harmonia generosa
Encerram os seus símbolos diversos!...

- Sim, mas para fazê-los fui ao fundo
Das cousas, nessa Via-Dolorosa
Do pensamento, que no fim é sempre triste.
Sofri muito entre os seres infelizes...
Tu não sabes de nada... tu não viste..
.
- Não, nunca imaginei o que me dizes...
Mas teus versos me fazem tanto bem
São tão belos, de formas tão luxuosas!...

É isso mesmo... É a beleza irônica que vem
Da amargura invisível das raízes,
Para dar a vaidade efêmera das rosas...”[3]

Sempre que despertamos para a realidade plástica, visível do mundo está à mão a beleza das formas, dos ritmos, das cores, do encanto da juventude. Mas a Verdade, “essa total explicação da vida,/ esse nexo primeiro e singular,/ que nem concebes mais, pois tão esquivo / se revelou ante a pesquisa ardente em que te consumiste...”[4], esta Verdade se entremostra, raramente, na  sua vestimenta luminosa:

“Ao menos uma vez em toda a vida
A verdade passou pela alma de cada homem...
Passou muito alta, muito vaga, muito longe,
Como os fantasmas que mal chegam somem,
Passou em sombra, num reflexo fugidio.
Foi a sombra de um vôo refletida
No espelho da água trêmula de um rio...
Sombra de um vôo na água trêmula: Verdade!

Passou uma só vez em toda a vida 
E sempre dessa vez a alma dos homens
Estava distraída,
E não reconheceu na sombra desse vôo
A ave ideal que planava no alto azul...
Quando volveu os olhos para a altura
Ela já ia desaparecendo...

Dela nada ficou no olhar triste dos homens,
Nem a lembrança do seu vulto incerto...
Passou uma só vez em toda a vida!
Sombra de um vôo na água trêmula: Verdade!
E esse vôo,
Que nunca mais voltou no mesmo céu deserto,
Nem ao menos deixou a sombra dentro d’água...”[5]

  Todavia, o sabê-la tão distante e arredia, não anula o amor que nos inspira essa Verdade. Cuidemos, pois, que ela nos conduza, mesmo sem penetrar no mistério da natureza íntima do ser. Basta amá-la para preservar a substância da alma ameaçada pela vertigem do nada...

“Alma, no teu delirante desalinho,
Crês que te moves espontaneamente,
Quando és na vida um simples redemoinho
Formado dos encontros da torrente!

Move-te porque ficas no caminho
Por onde as cousas passam, diariamente:
Não é o Moinho que anda, é a água corrente
Que faz, passando, circular o Moinho...

Por isso, deves sempre conservar-te
Nas confluências do Mundo errante e vário,
Entre forças que vêm de toda parte,

Do contrário serás, no isolamento,
A espiral cujo giro imaginário
É apenas a ilusão do Movimento!...”[6]
 
  Nossa existência é uma jornada infinita “ Não tem fim, não teve fundo, / É a lenda da humanidade, / É a própria história do mundo”.[7] O ser consciente se recolhe  na  eterna  transcendência, ao apoiar sua existência na mobilidade absoluta  do ser total (unidade dinâmica instantânea de tudo que já foi, é, e será), no qual se expande, recursivamente, o fluxo infinito do tempo que esconde a própria eternidade. Por isso, cada dia, cada instante, mudam as aparências que flutuam na superfície leviana da História, mas no íntimo guardamos, para sempre, o caráter singular do mesmo ser.
Vou interromper com este texto, momentaneamente, a homenagem merecida a um poeta morto faz mais de oitenta anos cujo valor não foi ainda suficientemente reconhecido. Pretendo voltar a festejá-lo em outra oportunidade, contribuindo de alguma forma para difundir o trabalho de um Poeta que se imortalizou com a edição de um único livro: LUZ MEDITERRÂNEA.
Everaldo Lopes

Bibliografia

LEONI, Raul de – Luz Mediterrânea, 1ª Edição, Livraria Martins
     Editora. São Paulo.
CRUZ, Luiz Santa – Raul de Leoni, Trechos Escolhidos, in Nossos
Clássicos, publicados sob a direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Corrêa e Jorge de Sena: Livraria AGIR Editora, Rio de Janeiro, 1961,
LUZ MEDITERRÂNEA E OUTROS POEMAS –Organização. Introdução
e Notas de Pedro Lyra. TOPBOOKS EDITORA E DISTRIBUIDORA DE LIVROS LTDA – 2000


[1] Raul de Leoni – “Melancolia”, in Luz Mediterrânea
[2] Raul de Leoni – “Eugenia”, in LUZ MEDITERRÂNEA. E OUTROS POEMAS – Organização, Introdução e Notas de Pedro Lyra
[3] Raul de Leoni – “Diálogo Final”, in Luz Mediterrânea
[4] Drummod de Andrade – “A máquina do mundo”, in Obras Completas 
[5] Raul de Leoni – “Ao menos uma vez em toda a vida”, in Luz Mediterrânea
[6] Raul de Leoni – “ A Vertigem”, in Luz Mediterrânea
[7]  Raul de Leoni – “Do meu Evangelho”, in  Luz Mediterrânea