quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Patamares existenciais


O homem engajado no exercício da consciência responsável aspira a realizar-se como pessoa no convívio com os outros no mundo. Nunca é demais lembrar que do ponto de vista evolutivo o ideal desta aspiração é a prática da solidariedade comunitária. Mas, no processo histórico, este desejo heroico se perde, frequentemente, em esforços equivocados.
O pensamento, o sentimento e a vontade são os recursos de que o homem dispõe para consumar seu projeto existencial. Todavia, a essência do pensamento e da capacidade criativa associada é inacessível ao entendimento racional.  O pensamento ágil relaciona uma ideia a outra, confrontando noções, construindo proposições e elaborando silogismos através dos quais se pratica a racionalidade no vir a ser consciente. Esta prática realiza-se através do exercício da lógica formal, instrumento eficaz para a articulação das relações objetivas do eu com sua circunstância. Seguindo outros caminhos, a intuição gera um conhecimento imediato, mediante “iluminação” interior, fundamental no processo criativo.
A representação racional do mundo é uma conquista especificamente humana, constituindo-se numa forma de hierarquizar a realidade. Embora esta abordagem detenha-se no nível do fenômeno, incapaz de desvelar a essência do real. A linguagem como descrição fenomênica não define, pois, a natureza das coisas. Associada a esta visão racional, desenvolve-se uma conotação afetiva, feita de sentimentos e emoções que obedecem a uma lógica diferente que Pascal dizia, poeticamente, ser vinculada às razões do coração. A experiência subjetiva do homem, seja racional, ou afetiva, se dá a conhecer numa declaração auto referente do eu sujeito desta experiência. No âmbito do racional é possível aferir o conteúdo declarado. Mas tratando-se de sentimentos, a revelação do declarante é o único arrimo da sua própria experiência subjetiva. A aceitação desse testemunho demanda, portanto, a credibilidade de quem o atesta, e a sua autenticidade é a única garantia.
A razão e o coração nem sempre estão de acordo. Em face do conflito entre o sentimento e a razão, torna-se necessário criar, culturalmente, normas disciplinares de comportamento para proteger a harmonia social. A participação efetiva da vontade obriga o indivíduo à prática das normas estabelecidas para as condutas sociais. o que implica num aprendizado laborioso desenvolvido no processo de socialização.
O engajamento do homem na sua circunstância social e ambiental evolui através de diferentes patamares. Inicialmente, domina o cenário das relações humanas a alegria do prazer estético matizado pela sensualidade que se associa frequentemente a objetivos egoístas. Na sua acepção mais ampla este prazer é uma demanda libidinosa que energiza os sentidos. Está presente na satisfação de experimentar o sabor de um petisco delicioso, na ebriedade de um aroma agradável, no êxtase induzido por acordes harmoniosos, no prazer do toque suave que desperta a sexualidade.
De todas as manifestações da sensualidade, o prazer sexual é reconhecido como a mais explosiva e poderosa motivação, numa relação de gênero que envolva ternura e erotismo. O homem e a mulher sensibilizados, respectivamente, pela suavidade do feminino, e pelo toque masculino determinado e protetor humanizam a libido. Eles (o casal humano) se inspiram, mutuamente, sentimentos delicados de aproximação, refinando as manifestações eróticas. Mas neste patamar estético da existência a experiência gratificante é fugaz, redundando no apelo insistente à repetição.
A vida coletiva ultrapassa os limites da sensualidade em benefício da dimensão social. Por isso, na sequência evolutiva cria-se uma ordem cultural mais ampla, baseada em valores universais que garantam o equilíbrio da vida coletiva.  Elabora-se, então, uma ética que caracteriza o segundo patamar da existência. O comportamento ético se estrutura a partir de normas aceitas tacitamente, fundamentadas nos direitos e deveres estabelecidos pela razão e pelo bom senso. Desta sorte, o ser consciente disciplina as relações consigo mesmo e com sua circunstância, tirando delas satisfações, e decepções também.
Face às interdições cerceadoras inevitáveis inerentes ao comportamento ético, o sentimento do dever cumprido nem sempre basta para apaziguar o anseio humano de bem estar e plenitude. Daí o apelo a um poder transcendental que garanta sem deixar dúvidas a soberania dos valores consagrados, e uma compensação para os sacrifícios que o homem faz a fim de atender às exigências éticas da sua proposta humanística. Neste patamar “ético-religioso”, Kierkegaard situa o terceiro nível da existência[1]. Estádio da humanização em que se elimina qualquer dúvida quanto à validade das normas estabelecidas,  satisfazendo a necessidade do homem de confirmar a soberania dos valores que exigem a privação de experiências prazerosas interditadas pela ética vigente. O homem precisa convencer-se de que não está jogando fora suas oportunidades de saciar a libido (no sentido mais amplo do termo), para salvaguardar um valor duvidoso. Mediante um ato de fé, ele confia, então, o seu vir a ser à suprema perfeição de um Todo ordenador absoluto (Deus) que lhe garante a idoneidade do valor comportamental assumido. Nem sempre a criatura compreende os propósitos do Criador, mas, crendo, sabe que mesmo quando a contrariam, estes desígnios emanam da perfeição divina em cuja totalidade tudo tem sentido. Cabe à criatura inteligente, comprometida com sua missão evolutiva entender a linguagem cifrada do Criador, e interpretá-la, criativamente, no contexto pessoal. Quando fragilizado por falta desta visão holística, o homem mergulha na penumbra medíocre do hedonismo ou do isolamento. A disponibilidade de viver experiências integradoras nem sempre é suficiente para harmonizar as possibilidades individuais com um todo significativo. O ambiente hostil pode anular o impulso criativo conciliador. Daí a insatisfação crônica que ameaça sufocar o homem no seu vir a ser problemático, quando lhe falta o amparo de uma transcendência absoluta subjacente ao ideal de perfeição.  O auxílio transcendental ajuda o homem a vencer a herança genética (e cultural) que o arrasta para o egoísmo atávico, retardando a socialização inerente ao processo de humanização. Desassistido desse alento imponderável, espiritualista, ao assumir a postura estoica, o homem não encontra em si mesmo a força necessária para empolgar a existência. Gostaria de sentir pulsar a vida, a sua vida, mas fica perdido numa solidão desértica. E ao cair em depressão tudo ao seu redor se transforma em planuras a perder de vista, brancura hostil, intensa, onde não sobressai qualquer estímulo. Prevalece apenas o silêncio pesado como se nada mais houvesse a dizer. Tudo se confunde na penumbra de uma vigília sonolenta, lucidez pessimista, doentia, de ser para nada. Já não há como sentir-se pleno alguém carente da alegria de amar, expectativa que arrefece na ausência do objeto próprio do amor universal latente em toda criatura, desenhando-se uma pobreza existencial que sobrenada tesouros interiores inexplorados.
No extremo desse vir a ser incolor, a morte é um mergulho no esquecimento que apenas prolonga a insipidez da incapacidade atual de desfrutar a vida. Este estado d´alma foi poeticamente  descrito por Drummond de Andrade em “ A máquina do Mundo”. Deste poema, considerado pela crítica literária como o melhor de sua obra, destaco:
“Abriu-se (a máquina do mundo) majestosa e circunspecta, / sem emitir um só som que fosse impuro, / nem um clarão maior que o tolerável / pelas pupilas gastas na inspeção / contínua e dolorosa do deserto, / e pela mente exausta de mentar / toda uma realidade que transcende / a própria imagem sua debuxada / no rosto do mistério, nos abismos. / Abriu-se em calma pura e convidando / quantos sentidos e intuições restavam / a quem de os ter usado os já  perdera / e nem desejaria recobrá-los, / se em vão e para sempre repetimos / os mesmos sem roteiros tristes périplos, / convidando-os a todos em coorte, / a se aplicarem sobre o pasto inédito / da natureza mítica das coisas.”
Analisando o efetivo engajamento existencial e político do homem em prol dos ideais comunitários, torna-se evidente o papel importante da criatividade que promove soluções inéditas para os problemas emergentes no vir a ser humano. Por outro lado, igualmente importante é a confiança (fé) num Dinamismo Absoluto Eternamente Criativo que dá sentido à caminhada existencial, ensejando recursos imponderáveis capazes de “... (re)embaralhar as cartas do provável e subverter as fronteiras do possível.”[2]. A evolução do fenômeno humano transita, portanto, por patamares existenciais que culminam com uma experiência ético-religiosa, mística, na qual o exercício da consciência livre e responsável é comparável a uma projeção vivencial da essência espiritual do ser humano.
                                   Everaldo Lopes


[1] Níveis de existência descritos por Kierkegaard: estético, ético e ético-religioso
[2] Eduardo Gianetti