quinta-feira, 12 de abril de 2012

Aspectos éticos da sexualidade


Do ponto de vista estritamente biológico, as relações sexuais objetivam a inseminação que dá início ao processo reprodutivo. A reprodução beneficia a espécie, não o indivíduo. Entre os animais ditos inferiores na escala zoológica, as fêmeas apresentam periodicamente estímulos visuais e olfativos que incitam o macho ao coito. Fazendo-os incidir no momento mais propício para a fecundação, a Natureza determina a ocasião do acasalamento. E assim controla o processo reprodutivo. Na espécie humana não. As mulheres não têm cio. A iniciativa do coito fica a depender de manifestações sedutoras culturalmente definidas, inseridas num clima afetivo peculiar do encontro íntimo entre um homem e uma mulher. A intimidade sexual só se enquadra na moral natural, integrando-se no ciclo da fecundidade que garante a perpetuação das espécies. Mas, sendo os homens os únicos animais que, fugindo ao controle natural, estão predispostos a fazer sexo todo tempo, e não o fazem sempre com o intuito de procriar, o parâmetro ético da fecundidade não lhe é aplicável... e o controle da reprodução entre os humanos não resultará de um determinismo biológico, mas da decisão consciente assumida pelo casal de gerar ou não um filho. Decisão que o par humano deverá encarar responsavelmente, tendo em vista garantir ao descendente a satisfação das suas necessidades básicas e formação psicossocial.  As condições moralmente exigidas para a decisão de procriar devem garantir a sobrevivência do recém-nascido, e assegurar-lhe, depois, o aprendizado de hábitos cidadãos inclusive habilidades profissionais. Estas preocupações fazem parte da paternidade responsável.  
Por conta de suas peculiaridades, a atividade sexual humana tem sido regulamentada desde os primórdios da civilização. Esta regulamentação se impõe pelo caráter aliciante da prática sexual, e em razão da probabilidade de uma gravidez com repercussões inevitáveis no equilíbrio demográfico e socioeconômico. Tendo em vista a organização da vida em grupo definem-se, então, direitos e deveres mediante costumes e leis que delimitam a legitimidade, e responsabilidades inerentes à prática sexual. Mas o caráter prazeroso desta atividade constitui-se numa motivação tão poderosa que de quando em quando a expectativa de prazer se sobrepõe às interdições culturais, atropelando a prática dos valores éticos vigentes.  Por isso mesmo, a sexualidade é a área mais sujeita a interdições dentre todas as atividades humanas.  Rigorosamente, só é bem acolhida pela consciência moral, a intimidade sexual que não fere os princípios éticos sociais e religiosos já definidos culturalmente. Embora seja mais ou menos permissiva, a sociedade impõe sanções aos infratores dos preceitos éticos estabelecidos para disciplinar a função reprodutiva humana.
Idealmente, numa perspectiva humanística integral o encontro sexual seria o arremate de um profundo conhecimento do par humano como pessoas entre as quais o respeito recíproco está embutido no amor que deve presidir o desejo da união carnal. Mais frequentemente, porém, o amor que deveria aproximar os parceiros sexuais é substituído pela urgência da libido, característica do erotismo expresso na intimidade lasciva, a exemplo dos que “ficam”, movidos irresponsavelmente pela empolgação sensual do momento... cada um cede o corpo para o prazer do outro, interessado, porém, na própria satisfação. Na prática sexual que não tem a chancela cartorial distinguem-se ainda: os pares que se encontram mediante consentimento mútuo esclarecido, movidos por sentimentos nobres, e convivem na informalidade projetando a legalização da união em futuro próximo... imbuídos do respeito mútuo, estão cônscios da responsabilidade diante de uma eventual gravidez não programada; e, no outro extremo, os que fazem do sexo uma barganha na qual um dos parceiros vira objeto de prazer do outro em troca de propina, numa relação prostituída. Em todas as situações mencionadas caracterizam-se condutas de conteúdo ético peculiar, ou nenhum. Aliás, as mesmas situações podem ser vividas sob o manto da lei com roupagens que escondem o vazio existencial do casal. A simples ratificação legal não garante, pois, a natureza ética essencial do encontro sexual. Atualmente, a erotização da cultura se acompanha de uma frouxidão dos costumes que aumenta a permissividade da sociedade em relação à prática sexual, banalizando-a. Independentemente dos princípios que definem a legitimidade da relação sexual, uma vez que a maioria dos coitos se dá na ausência da intenção de procriar, impõe-se o controle da natalidade mediante medidas preventivas artificiais ou naturais. Isto faz parte dos deveres do par humano que se dispõe à prática sexual.
É difícil enquadrar o filho decorrente de uma gravidez não programada no contexto da parceria sexual privada de um vínculo ético forte. A conduta ética nesta conjuntura exigiria decisões heroicas que o casal habitualmente se recusa a assumir. De qualquer forma, sem uma estrutura adequada ao seu acolhimento, o recém-nato ficaria entregue literalmente ao acaso dos acontecimentos... com raras exceções, desde o momento em que nasce, este ser humano já depara um futuro sombrio. Mal podemos imaginar o leque das consequências desastrosas ao longo do tempo, sobre a formação do caráter de uma criança que não tenha recebido os cuidados exigidos na primeira infância, nem a orientação adequada nos anos que se seguem e na adolescência! O descompasso pedagógico neste período da formação dos cidadãos é a causa de muitos males que corroem a malha social.
Antes de concluir, vale a pena meditar sobre duas questões. A primeira indaga se é moralmente justificável uma relação sexual na qual os parceiros não têm a intenção de procriar. A resposta parece óbvia. Do ponto de vista da moral natural (fundamentada na fecundidade), rigorosamente, não... pois tudo que a natureza investe para propiciar a intimidade genital fecundante o faz visando exclusivamente a perpetuação das espécies. Porém, dado que o homem faz sexo todo tempo, e não obedece aos controles naturais que nas espécies inferiores promovem o equilíbrio populacional, o cumprimento rigoroso da moral natural centrada na fecundidade levaria aos problemas inerentes à superpopulação[1]. Se toda relação sexual humana fosse premiada com uma gravidez a superfície da Terra em pouco tempo não comportaria tamanha densidade demográfica. Além da função procriadora o homem faz da intimidade sexual uma forma de satisfazer sentimentos egóicos e de aliviar tensões... Nada nobre, mas havendo contato genital haverá sempre a possibilidade de gravidez. Nestas circunstâncias, cabe ao par humano a responsabilidade de disciplinar sua capacidade genésica para manter uma população compatível com os recursos ambientais e com a organização de uma coletividade solidária. Esta disciplina implica em duas alternativas: ou o homem se abstém radicalmente de satisfazer sua libido sexual depois de procriar um número de filhos que assegure a estabilidade demográfica estimada como ideal, ou se obriga a fazer contracepção eficiente a fim de continuar satisfazendo sua libido sexual, sem o risco de reproduzir-se desordenadamente. Obviamente, a primeira alternativa é inviável dado que o desejo de intimidade física do par humano é difícil de controlar... A segunda opção se apresenta então como a mais inteligente!
Em face do exposto, impõe-se uma segunda questão, conceitual. Se em relação ao homem o ideal ético soberano da moral sexual natural (a reprodução) não pode ser levado até as últimas consequências, quais os parâmetros adequados para legitimar a atividade sexual humana? A resposta a esta indagação nos remete à visão humanística evolutiva. Nesta perspectiva a inteligência, a sensibilidade e a vontade humanas buscam, responsavelmente, promover a solidariedade comunitária[2], contribuição do homem ao processo evolucionário.  Isto lhe confere uma dignidade ímpar, a de colaborar conscientemente para o sucesso da própria Evolução. A experiência comunitária implica necessariamente no respeito mútuo entre as pessoas. No prolongamento desta realidade desenha-se a legitimação da libido quando a fecundidade não é o critério ético soberano. Sumariamente, podemos dizer que o uso do corpo como instrumento de prazer sem preocupação com a dignidade pessoal é, no mínimo inconsequente e leviano... por outro lado, a ausência de manifestações de estima e ternura entre os pares sexuais fere, igualmente, a dignidade humana e, portanto ambas as situações referidas são eticamente condenáveis. Em conclusão, sendo o homem um ser de cultura obedece a uma ética construída que transcende a moral natural, apoiada na intersubjetividade dos parceiros sexuais, compatível com uma relação existencialmente autêntica, respeitosa, e socialmente responsável.
Everaldo Lopes


[1] É impossível promover uma convivência civilizada quando a população excede as possibilidades de moradia e produção de víveres num espaço territorial inextensível.
[2] Condição sine qua non para a sobrevivência da espécie.