O homem é animal por sua estrutura
biológica, e como ser consciente reflexivo vive na própria subjetividade
manifestações espirituais inéditas na história evolutiva da vida. Como animal,
é finito, portador de impulsos instintivos; como consciência reflexiva, é
fascinado pela idéia de eternidade e submete seu devir biopsicossocial a
valores éticos que transcendem o puramente biológico. Por isso o ser humano é
capaz de fazer cultura, construindo uma ordem caracteristicamente humana que
não é inata, mas criada através da comunicação e cooperação entre indivíduos em
sociedade!
Freud
lançou alguma luz sobre a estrutura subjetiva do homem, criando um modelo de interação
dos estratos psíquicos definidos pela Psicanálise como Ego, Inconsciente e Superego.
Estes elementos constitutivos da psique humana se desenvolvem no processo de
individuação eleborado paralelamente ao de socialização. Ganhar intimidade com
a trama complexa das relações entre os vários estratos da psique é a base do
autoconhecimento. A sabedoria consiste em saber utilizar com prudência a razão,
o sentimento e a vontade, pilastras do comportamento pessoal, num esforço
criativo de integração do indivíduo no seu contexto psicossocial e ambiental. Neste
processo as escolhas envolvem o bom uso do livre arbítrio que exige
conhecimento e controle emocional.
A
própria condição humana[1] é problemática.
Muito trabalho interior há que ser feito pelo homem para a aceitação criativa das
antinomias existenciais. Elas são contradições emergentes com a própria
consciência, caracterizadas pelo contraste vivenciado entre a finitude biológica
e o desejo de eternidade; entre a impotência do ser contingente e o ilimitado
anelo de poder; entre a restrição intelectual e observacional do homem, e sua
ambição de saber. A superação destas antinomias resulta de um esforço pessoal
que compromete o vir a ser individual de acordo com o potencial intelectual,
intuitivo, afetivo e volitivo de cada homem. A dificuldade é tal e tão complexa
que muitos recorrem a uma ajuda mística para conviver com as próprias
contradições.
Centrada na consumação de valores, a
existência é feita de decisões responsáveis. Mas é preciso viver integralmente estes
valores, numa experiência pessoal totalizante, para realizar plenamente a
grandeza da “existência”. É isto que garante a autenticidade do comportamento
humano, distinguindo a experiência existêncial coerente e comprometida, da pura
exibição de aparências. Neste esforço para ser verdadeiro urge harmonizar o
pensar e o sentir muitas vezes conflitantes, de forma a preservar os valores
que dignificam a existência.
Sob
a pressão da necessidade de autorealização, durante sua existência o homem terá
que fechar a "gestalt" pessoal coerentemente, mediante escolhas
livres nas situações que envolvem suas relações com os outros e com o mundo. Evidentemente,
isto só será alcançado pelo seu envolvimento num vir a ser autêntico. Neste
contexto, o sentido da existência não se esgota na intenção de realizar
determinadas metas, mas no compromisso do eu sujeito com a ação consentânea, com
o gesto apropriado, com a atitude coerente na concretização de um projeto
humanístico conscientemente escolhido. O projeto existencial deve definir-se na
trilha da autenticidade e da fidedignidade; e esta definição encerrará o
significado da “existência” pessoal. Vivendo este significado no limite das
suas possibilidades o homem se conservará integro, em cada momento, esteja
flutuando num mar de rosas, ou carregando um pesado madeiro.
Podemos teorizar sobre a estratégia
de conquista da plenitude existencial. Mas o simples conhecimento desta estratégia
não garante adesão aos valores
implícitos na proposta existencial escolhida; só o compromisso incarnado numa prática
consistente implicará em mudanças
psicoafetivas radicais capazes de transformar o núcleo pessoal mais profundo no
sentido de alcançar o objetivo almejado – a realização existencial plena. Para
muitos, mudanças assim exigentes, tão pouco naturais, não se fariam sem o
concurso de algo misterioso que transcendesse o puro dinamismo psicobiológico! Este
argumento está implícito na postura espiritualista que busca na fé, na esperança
e no amor, as forças espirituais que propiciam as transformações pessoais. Estas
virtudes representam um hiato na história da vida, um salto evolutivo incompreensível
à luz da dialética linear, científica, bio-psico-social. No curso da Evolução é
tal o ineditismo da consciência reflexiva e das virtudes que lhe são inerentes,
que muitos as atribuem a um Princípio exclusivo.
Esta linha de pensamento deu origem ao maniqueismo[2] consubstanciado
na crença em que há oposição radical entre o Espírito e a matéria, conclusão inevitável
sob o olhar de uma epistemologia fenomênica. Todavia, através das lentes de uma
abordagem especulativa inteligente e inclusiva pode-se entender a consciência reflexiva
como o grau máximo de convergência dos centros organizacionais[3] dispersos nos
corpos simples que, incansável e progressivamente se complexificaram[4] sob uma “força
misteriosa” de coesão inerente e transcendente ao cosmo[5]. Nesta
perspectiva o mundo e a consciência não resultam de dois Princípios opostos, a
matéria e o espírito, mas de uma ordem absoluta que transcende a ambos, impressa
em cada partícula do cosmo como um holograma[6]. Ordem que se
reproduz na capacidade humana de pensar logicamente, e simbolizar na linguagem
os pensamentos e os sentimentos. Esta autonomia subjetiva do “eu sujeito”
confere ao homem a capacidade de contrapor-se aos impulsos egoicos, e de
socializar-se voluntariamente. Á sua inclinação
natural para o prazer e para o poder soma-se uma nova dimensão, a de dar um
sentido ao seu vir a ser existencial. Esta reorientação deixa aberta a possibilidade
de que a força de coesão que preside a própria Criação seja, fundamentalmente, um
Absoluto inclusivo presente como linguagem secreta – uma cifra – na intimidade
do universo objetivo. Absoluto que se poderia identificar com a deificação do “amor”!
Pode-se constatar que no processo evolutivo, antes do homem pontificavam os instintos, frutos de determinismos biológicos,
e agora a participação social consciente, o altruismo, a compaixão, a
necessidade de coerência e de sentido sobrepõem-se às forças profundas da vida animal. Predominam as novas tendências
evolutivas inerentes ao exercício da consciência reflexiva, livre e responsável.
Difícil será explicar tudo isso através de uma concepção mecanicista do mundo, uma
vez que a origem da consciência não é redutível a uma explicação
fenomenológica. Especulativamente, podemos chegar ao máximo da afirmação de que
a consciência universal existe eternamente[7] como um Princípio
inerente e transcendente manifesto ostensivamente, afinal, quando no seu
dinamismo evolutivo a complexificação da matéria ensejou o desenvolvimento de
estruturas especializadas no Sistema Nervoso Central, que viabilizaram a comunicação
simbólica. Este fato coincide com a emergência simultânea do sujeito consciente
e da linguagem. O homem poderia não ter existido, mas, existindo, dá testemunho
da Consciência Universal, um Absoluto que envolve a consciência individual e o
mundo[8].
Everaldo Lopes
[2] Doutrina segundo a qual o Universo foi criado por dois princípios
antagônicos:Deus ou o bem absoluto e o mal absoluto ou o Diabo
[5] Esta realidade se torna mais razoável quando a olhamos através dos
princípios da lógica complexa.
[7] Veja neste blog em “Devaneio especulativo I”,
a relação entre a ordem do Universo e
uma intenção implícita que pressupõe a consciência universal.
[8] O significado desta conclusão especulativa se aproxima da intuição do
Apóstolo João que numa linguagem mística anuncia:”No princípio era o verbo, e o
verbo era Deus e o verbo estava com Deus.” (Jo 1:1)