sábado, 10 de setembro de 2011

Diálogo existencial


      Nas suas andanças pelos caminhos da existência, o homem conversa consigo mesmo. Monologando, dialoga com seu alter ego, instância muito íntima do seu psiquismo.

Alter ego – Sabes bem o que estás fazendo neste planeta perdido na imensidão do universo?
           
Ego (Pensativo) – Boa pergunta. Afinal, ou a “existência”[1]tem sentido no contexto evolutivo da realidade universal, ou é uma grande piada. Para mim o seu sentido está definido pela própria condição humana. Atuar neste mundo, consciente e responsavelmente é o meu papel.
No fenômeno humano, a Evolução transcende o nível biológico, centrando-se no desenvolvimento psíquico e social. Dependerá, então, não mais de um aperfeiçoamento anatômico e fisiológico, mas do desenvolvimento psicossocial que possibilite o diálogo verdadeiro e a prática da justiça social. Numa perspectiva evolutiva, o homem assume a responsabilidade de promover a comunidade humana.  Compromisso que mobiliza as potências intelectuais, afetivas e volitivas que lhe são inerentes (ao homem), no sentido da prática solidária. O processo evolutivo será conduzido, agora, pelas escolhas políticas e econômicas conscientes, e não mais por determinismos físico-químicos, ou feedbacks biológicos. Desta forma, a realização plena do Homo Sapiens sapiens passa a depender das suas escolhas solidárias, sem as quais, aliás, a espécie não sobreviverá.   Essas escolhas implicam, necessariamente, na prática do livre arbítrio, função até então inédita na Natureza, que dará continuidade à Evolução mediante decisões do ser consciente, o que nos torna artífices da comunidade humana.  Cabe-nos, portanto,  sintonizar o psíquico e o social, no processo de individuação, para alcançar a plenitude “pessoal” conduzidos pela solidariedade.
 Mas este lance evolutivo não é tão simples. Na verdade não temos domínio absoluto sobre nós mesmos e sobre a nossa circunstância. Existimos com os outros no mundo, e para conviver nos impomos limites. Temos liberdade? Sim. Mas a liberdade de passarinhos engaiolados; o que, todavia, não nos exime de responsabilidade perante os outros e diante de nós mesmos. No espaço coletivo, a solidariedade está intimamente relacionada com a estima e o respeito que os indivíduos aprendem a praticar entre si o que resulta em grande parte de um aprendizado. Mas as decisões dependem de muitos fatores, ora vinculados à circunstância, ora, simplesmente, ligados à vontade e determinação pessoais. No frigir dos ovos chega-se à conclusão de que as limitações são reais e não fazemos, sempre, o melhor que desejáramos em cada situação do vir a ser existencial. Nesta caminhada, muitas vezes tropeçamos por falta de criatividade, ou porque deparamos limites intransponíveis, principalmente no que tange à cooperação entre as pessoas.           
As dificuldades não faltam nunca. Mas agrada-me pensar que se estiver na direção certa, cada passo a caminho do objetivo maior da “existência” neste mundo é, já, uma meta vitoriosa... e, valorizando-a reforço a confiança em poder cumprir a  missão que me toca no processo evolutivo universal. É muita audácia esperar a realização de uma sociedade perfeita, mas precisamos caminhar, sempre, nesta direção, confiantes na ajuda de “imponderáveis”[2].

            Alter ego –Lamentavelmente, numa relação social, o “outro” se constitui muitas vezes num estorvo para a convivência pacífica, e construtiva. Isso me faz lembrar a afirmação de Sartre: “O inferno da gente é o outro.”...

            Ego (Prontamente acrescentou) – Verdade.  Que pena! Todavia esta sentença não está completa, pois omite a outra face da realidade... é que nas relações sociais, o “outro” poderia ser, também,  a condição para o bem estar e alegria de todos e de cada um de quantos participamos do banquete da vida! Tudo se resume no relacionamento interpessoal que formos capazes de estabelecer no convívio social, e isso não depende só de um, mas de todos os interlocutores que interagem no espaço coletivo.  Enfim, a intersubjetividade é uma “passarela” de mão dupla. Mas o “outro” não é, necessariamente, o inferno dos seus pares, pode também ser o seu céu.

            Alter ego – Concordo. Mas é inquietante reconhecer a dificuldade muito presente de harmonizar as características pessoais e os interesses diversos que estão sempre em jogo nas relações sociais.

            Ego (Falou como se há muito viesse meditando sobre o assunto) – Sem dúvida, incomoda esta ameaça permanente. O ponto crítico é a necessidade de sermos suficientemente humildes verazes e transparentes, condições indispensáveis para o diálogo solidário. Então,  poderíamos realizar o melhor de nós mesmos, seríamos capazes de reconhecer  nossas virtudes e limites, abrindo mão, sem ressentimentos, do supérfluo e de toda vaidade. Finalmente, precisaríamos todos, ser suficientemente inteligentes, autônomos e generosos, para compreender com clareza e fazer o melhor que podermos em cada situação, preservando a harmonia coletiva, e compatibilizando o ideal comunitário com as demandas pessoais. Precisamos alimentar esta disposição mediante a prática disciplinada dos valores humanos universais cujo exercício requer autoconhecimento, vontade ética e determinação. Pra começar, tentemos ver o lado bom das pessoas, esforçando-nos para disciplinar-nos, tentando compreender e respeitar o outro no envolvimento social comum a todos. Assim suscitaremos o respeito que merecemos. Trata-se de um procedimento heroico, decisivo: a mobilização de todo potencial humano para realizar o ideal comunitário.

            Alter ego – Queres dizer inteligência, estima e vontade polarizadas pelo ideal de verdade e justiça social!...

            Ego (objetivo, mas titubeante) – Sim. Entendo, ou pelo menos alimento a esperança de que a prática virtuosa deste potencial por alguns membros da coletividade humana acabe sensibilizando os “outros” para um esforço comum no sentido de fomentar parcerias harmoniosas. Acredito que o bom exemplo pode induzir o comportamento adequado, vencendo a Insensibilidade de muitos. Quando isso não acontece, todavia, a relação interindividual frustrada representa, sempre, uma situação desconfortável.

Alter ego – E como reages a esta situação?

Ego (Pensativo) – Difícil encontrar uma resposta que não inclua o desgosto (quiçá revolta) de oferecer ao “outro” a oportunidade de mudar, sem obter (dele) qualquer retorno. Nestes momentos ajuda-nos participar de uma visão holística do mundo, respaldando a vivência mística de que a nossa indigência existencial não empobrece a harmonia final do Todo absoluto (no qual estamos incluídos) que resume a perfeição eterna, incompreensível para nossa  contingência temporal.

Alter ego – Esta maneira de encarar a interlocução existencial supõe confiança, monitorada pela fé, na Providência de um Poder absoluto que dá sentido à marcha heroica da existência pessoal, mediante uma experiência mística que transcende o puro conhecimento.

Ego (Fugindo de qualquer dramaticidade) – Exatamente. Digamos que esta espiritualidade nos sustenta quando o “outro” não atende ao apelo de solidariedade. Todavia, ninguém está isento de culpa no movimento histórico que conduz a humanidade através dos séculos. Isso nos leva a ser mais generosos com o outro. As situações que nos  enredam são consequências de nossas escolhas no passado, mas a complexidade social nos torna a todos interdependentes. Por isso, embora possa parecer contundente, podemos dizer que no fim, direta ou indiretamente, todos somos responsáveis  pelo vir a ser da própria humanidade.

Alter ego – Parece evidente que para assegurar o lugar do homem no Universo, é preciso dar uma resposta cabal ao desafio existencial da prática solidária. Negada a possibilidade de uma resposta satisfatória para o questionamento existencial[3], o fenômeno humano seria uma aberração genética letal.

Ego (Estranhamente calmo) – Os devaneios especulativos chegam a levantar  razões convincentes para apoiar a expectativa de um desfecho grandioso da consciência no mundo. Muitas vezes é-nos difícil reunir as condições para realizar a parte que nos toca. Mesmo assim, é preciso que todos saibam que sua fala ainda que improvisada é importante para a harmonia final garantida pela perfeição do Todo.

            Alter ego – À falta de certezas, o comportamento mais sensato do ser consciente será apostar nas escolhas feitas, responsavelmente, disposto a arcar com as consequências das ações assumidas conscientemente.
           
            Ego (encorajando-se) – Perfeitamente. A expectativa é que todos façamos escolhas realistas, objetivas e responsáveis ao projetar o porvir. Na verdade, não há certezas, mas prevalece a vívida esperança de um desfecho magnífico da aventura cósmica que culminou com o desabrochar da consciência[4], ao escolher, projetar e agir, responsavelmente. È mais gratificante para o homem justo, esperar, confiante, o fechamento da “existência” numa apoteose universal.

Everaldo Lopes


[1] Modo de ser peculiar do homem, consciente e responsável, portanto dotado de livre arbítrio.
[2]  Elemento ou circunstância indefinível que influi em determinada matéria ou assunto.
[3] Qual o papel da consciência livre e responsável no contexto evolucionário do Universo?
[4] Contrariando pensadores materialistas que apostam no destino entrópico da matéria, ou seja, um estado de desordem total silenciosa e imóvel do Universo