A humanidade tem
evoluído mediante um processo educativo permanente. Este processo resulta em
comportamentos moldados por valores criados pelo próprio homem, cuja prática
enseja repercussões que excedem todas as expectativas do vir a ser natural. Delimita-se
assim o caráter cultural[1] da solidariedade que coincide
com a interdição, no sujeito consciente, de manifestações e tendências naturais
opostas aos comportamentos aprendidos.
A prática solidária
indissociável do amor abnegado[2] não sendo um
epifenômeno da infraestrutura biológica abre espaço para a crença no Espírito;
absoluto que antecede a matéria e manifesta-se no homem através das funções
psíquicas superiores. Especulações metafísicas sobre a gênese do Universo[3] e a evolução da
matéria até a vida consciente reflexiva dão suporte teórico à tese deste absoluto
criador. O conhecimento retrospectivo da Evolução evidencia um sentido, um
objetivo deste processo, e remete à ordem que preside o Universo, preestabelecida
desde sempre.
O objetivo da Evolução não
pode ser outro senão confirmar a perfeição da unidade absoluta na comunhão
universal. A fim de alcança-lo a Evolução desviou-se do crescente
aperfeiçoamento biológico, para a organização social exemplar. O sucesso da organização social que envolve a divisão
do trabalho coletivo, como acontece entre as abelhas e as formigas, já se
demonstrara eficiente, constituindo-se num marco avançado do progresso
evolucionário. Porém nos exemplos citados a divisão social instintiva do
trabalho, predeterminada geneticamente, não permite variações ocasionais
inteligentes e oportunas. Obstáculo que foi superado quando o “vir a ser” consciente
e livre inaugurou a possibilidade de o homem organizar-se em sociedade
voluntariamente e de modo flexível, funcional. Nessa perspectiva tornou-se
possível enriquecer o processo de socialização com ações solidárias mais
eficazes com vistas ao bem estar dos indivíduos, à sustentabilidade da vida, da
sociedade, e do Planeta. A grande questão nesta linha evolutiva é como explicar
a transição dos fenômenos biológicos para as funções psíquicas superiores que possibilitam
as manifestações espirituais representadas pela percepção, pela imaginação,
pelo pensamento criativo, pela solidariedade etc. Afinal, “Como se funda o campo subjetivo que torna possível a realização de
trocas simbólicas que envolvem, numa perspectiva construtiva, relações de
reciprocidade, lealdade, solidariedade, cooperação, fidelidade etc.?” Não
sabemos responder a este questionamento. A ciência só tem acesso cognitivo a
uma parte desse processo; o seu fundamento último continua inexplicável. Não
obstante é no “campo subjetivo” do “eu” que se desenvolve o esforço
civilizatório em que o comportamento natural é submetido ao crivo de uma ordem existencialmente
concebida, tendo em vista objetivos específicos do projeto humano pessoal e
coletivo que prolonga a Evolução. A solidariedade e a integração comunitária em
última análise emergem com a substituição do egoísmo pela vivência inclusiva do
“nós”. O ser consciente é capaz de
sentir o encantamento da unidade implícita no todo universal intuitivamente concebido,
sendo esta a motivação transcendental para a prática solidária em favor do
projeto comunitário. Porém o encanto, apenas, não garante a resposta humana
autêntica. Numa perspectiva humanística o sujeito consciente só se torna
“pessoa”[4] mediante a assimilação
do caráter reciprocamente constituinte do “eu” e do “tu”, fundamento da experiência
solidária e base psicossocial do esquema comunitário. A elaboração desse
processo começa com o comportamento ético, e só se consuma na prática amorosa
da solidariedade. Mas, como transformar
um comportamento ético, consciente, numa prática amorosa entre as pessoas; ou, como
ensinar as pessoas a serem solidárias? Mais uma vez precisamos reconhecer
que a psicossociologia não nos dá conta dos passos necessários desta pedagogia,
limitando-se a ratificar a excelência das práticas solidárias realizadas pelos indivíduos
que alcançaram razoável integração pessoal no exercício da razão, do sentimento
e da vontade.
Há uma distância
considerável entre o conhecimento racional da importância dos valores éticos
universais (verdade, justiça, solidariedade, amor) e a prática coerente desses
valores. Tomando-os como referenciais, todos sabem o que é certo e o que é
errado, e nem por isso agem coerentemente fazendo valer o que é certo. É
notório que a diferença entre o hábito do bem (virtude) e o hábito do mal
(vício) envolve muitos elementos influentes nas relações psicossociais. A
complexidade destas influências não permite total compreensão da dinâmica da
relação intersubjetiva, reforçando a tese da imprevisibilidade do comportamento
humano. Embora a “voz da consciência ética” ecoe no íntimo de cada um a ação
coerente com os valores positivos assumidos depende de um ato voluntário
resultado da determinação pessoal. Mas não se pode falar com precisão de como se
pode induzir, didaticamente, o sentimento de solidariedade que impele a vontade
à prática do “bem”. Os pedagogos discutem sobre qual o elemento catalizador da reação psicossocial inerente ao aprendizado
do comportamento virtuoso. Na verdade, este elemento envolve a vontade pessoal
de atender ao apelo virtuoso transcendental. Para pô-lo em prática, porém, urge
reconhecer as limitações que impedem o homem de realizar-se moralmente, amparado
apenas por sua infraestrutura biológica. Ele necessita de algo mais para a
transmutação da conduta ética impositiva, no comportamento solidário amoroso. Neste
ponto os místicos enfatizam a ajuda transcendental sem a qual ninguém daria
conta de amar o suficiente para agir solidariamente. Daí a interpretação
mística de serem a fé, a esperança e o amor (caridade) dons de Deus infusos na condição
humana, indispensáveis à própria humanização. Não dá para descrever o roteiro da
solidariedade. Dir-se-ia, misticamente, que o apelo inicial (motivação) vem de
Deus. Mas no seu caminhar existencial cada um precisa estar disposto a
responder a esse chamamento. E para isso tem que confiar na disponibilidade dos outros e na própria para o encontro
verdadeiro que enseja a experiência amorosa eminentemente inclusiva num “todo”
absoluto, perfeito. Talvez o caminho pedagógico mais eficaz para induzir a
experiência redentora de participar deste “todo” seja trabalhar na intimidade
subjetiva a dificuldade de confiar! Vencendo-a,
abrem-se as portas da subjetividade para uma aproximação aberta, e integração do
sujeito consciente num contexto solidário. Integração que depende, não da
confiança baseada em probabilidade estatística, mas aquela que se confunde com a
atitude de entrega total a um absoluto intangível, perfeito por definição, em
obediência incondicional a uma determinação superior (à “Vontade de Deus”). Isso
implica em ter fé, acreditar em algo capaz de contrapor-se à improbabilidade
estatística, ou seja, confiar em influências vinculadas a imponderáveis que
trabalham, graciosamente, em favor da conquista do bem desejado – a vivência
comunitária; movimento subjetivo, místico, que se apoia numa crença. Mas para que
seja uma convicção íntima eficaz, esclarecida, o sujeito consciente precisa vivê-la
num dialogo responsável com a ordem universal (Deus) através da convivência com
os seus pares. Na prática esse comportamento exige a candura de uma criança e o
equilíbrio de um sábio... implica na experiência sutil e exigente de crer no
amor, e imolar a própria vida nesta crença. Ou seja, para conviver
solidariamente precisamos superar radicalmente as fragilidades humanas, numa
rebelião pacífica, heroica, contra toda forma de egoísmo! Isso é amor. Neste
mundo dominado pela economia capitalista que privilegia a competição ambiciosa não
espanta ver que a humanidade ainda esteja tão distante do ideal comunitário.
Contudo não podemos negar que no jogo das contradições históricas é cada vez
maior o número dos que se rendem à evidência de que ou nos salvamos todos ou
ninguém se salvará. Atropelados pelos percalços do comportamento exclusivista
que leva a humanidade à desagregação suicida, o homem está descobrindo a
excelência da prática solidária.
Everaldo Lopes
[1] Entende-se por cultura o conjunto de características
humanas que não são inatas e que se criam e se preservam ou aprimoram através
da comunicação e cooperação entre os indivíduos em sociedade.
[2] Amor que move a vontade à
busca efetiva do bem de outrem.
[3] Vide devaneio especulativo
I neste Blog
[4] Pessoa- Cada ser humano
considerado na sua individualidade física ou espiritual, portador de qualidades
que se atribuem exclusivamente à espécie humana, quais sejam, a racionalidade,
a consciência de si, a capacidade de agir conforme fins determinados pelo
discernimento e adoção de valores solidários.