segunda-feira, 29 de julho de 2013

Cultura da solidariedade



A humanidade tem evoluído mediante um processo educativo permanente. Este processo resulta em comportamentos moldados por valores criados pelo próprio homem, cuja prática enseja repercussões que excedem todas as expectativas do vir a ser natural. Delimita-se assim o caráter cultural[1] da solidariedade que coincide com a interdição, no sujeito consciente, de manifestações e tendências naturais opostas aos comportamentos aprendidos.
A prática solidária indissociável do amor abnegado[2] não sendo um epifenômeno da infraestrutura biológica abre espaço para a crença no Espírito; absoluto que antecede a matéria e manifesta-se no homem através das funções psíquicas superiores. Especulações metafísicas sobre a gênese do Universo[3] e a evolução da matéria até a vida consciente reflexiva dão suporte teórico à tese deste absoluto criador. O conhecimento retrospectivo da Evolução evidencia um sentido, um objetivo deste processo, e remete à ordem que preside o Universo, preestabelecida desde sempre.
O objetivo da Evolução não pode ser outro senão confirmar a perfeição da unidade absoluta na comunhão universal. A fim de alcança-lo a Evolução desviou-se do crescente aperfeiçoamento biológico, para a organização social exemplar. O sucesso da organização social que envolve a divisão do trabalho coletivo, como acontece entre as abelhas e as formigas, já se demonstrara eficiente, constituindo-se num marco avançado do progresso evolucionário. Porém nos exemplos citados a divisão social instintiva do trabalho, predeterminada geneticamente, não permite variações ocasionais inteligentes e oportunas. Obstáculo que foi superado quando o “vir a ser” consciente e livre inaugurou a possibilidade de o homem organizar-se em sociedade voluntariamente e de modo flexível, funcional. Nessa perspectiva tornou-se possível enriquecer o processo de socialização com ações solidárias mais eficazes com vistas ao bem estar dos indivíduos, à sustentabilidade da vida, da sociedade, e do Planeta. A grande questão nesta linha evolutiva é como explicar a transição dos fenômenos biológicos para as funções psíquicas superiores que possibilitam as manifestações espirituais representadas pela percepção, pela imaginação, pelo pensamento criativo, pela solidariedade etc. Afinal, “Como se funda o campo subjetivo que torna possível a realização de trocas simbólicas que envolvem, numa perspectiva construtiva, relações de reciprocidade, lealdade, solidariedade, cooperação, fidelidade etc.?” Não sabemos responder a este questionamento. A ciência só tem acesso cognitivo a uma parte desse processo; o seu fundamento último continua inexplicável. Não obstante é no “campo subjetivo” do “eu” que se desenvolve o esforço civilizatório em que o comportamento natural é submetido ao crivo de uma ordem existencialmente concebida, tendo em vista objetivos específicos do projeto humano pessoal e coletivo que prolonga a Evolução. A solidariedade e a integração comunitária em última análise emergem com a substituição do egoísmo pela vivência inclusiva do “nós”.  O ser consciente é capaz de sentir o encantamento da unidade implícita no todo universal intuitivamente concebido, sendo esta a motivação transcendental para a prática solidária em favor do projeto comunitário. Porém o encanto, apenas, não garante a resposta humana autêntica. Numa perspectiva humanística o sujeito consciente só se torna “pessoa”[4] mediante a assimilação do caráter reciprocamente constituinte do “eu” e do “tu”, fundamento da experiência solidária e base psicossocial do esquema comunitário. A elaboração desse processo começa com o comportamento ético, e só se consuma na prática amorosa da solidariedade. Mas, como transformar um comportamento ético, consciente, numa prática amorosa entre as pessoas; ou, como ensinar as pessoas a serem solidárias? Mais uma vez precisamos reconhecer que a psicossociologia não nos dá conta dos passos necessários desta pedagogia, limitando-se a ratificar a excelência das práticas solidárias realizadas pelos indivíduos que alcançaram razoável integração pessoal no exercício da razão, do sentimento e da vontade.
Há uma distância considerável entre o conhecimento racional da importância dos valores éticos universais (verdade, justiça, solidariedade, amor) e a prática coerente desses valores. Tomando-os como referenciais, todos sabem o que é certo e o que é errado, e nem por isso agem coerentemente fazendo valer o que é certo. É notório que a diferença entre o hábito do bem (virtude) e o hábito do mal (vício) envolve muitos elementos influentes nas relações psicossociais. A complexidade destas influências não permite total compreensão da dinâmica da relação intersubjetiva, reforçando a tese da imprevisibilidade do comportamento humano. Embora a “voz da consciência ética” ecoe no íntimo de cada um a ação coerente com os valores positivos assumidos depende de um ato voluntário resultado da determinação pessoal. Mas não se pode falar com precisão de como se pode induzir, didaticamente, o sentimento de solidariedade que impele a vontade à prática do “bem”. Os pedagogos discutem sobre qual o elemento catalizador da reação psicossocial inerente ao aprendizado do comportamento virtuoso. Na verdade, este elemento envolve a vontade pessoal de atender ao apelo virtuoso transcendental. Para pô-lo em prática, porém, urge reconhecer as limitações que impedem o homem de realizar-se moralmente, amparado apenas por sua infraestrutura biológica. Ele necessita de algo mais para a transmutação da conduta ética impositiva, no comportamento solidário amoroso. Neste ponto os místicos enfatizam a ajuda transcendental sem a qual ninguém daria conta de amar o suficiente para agir solidariamente. Daí a interpretação mística de serem a fé, a esperança e o amor (caridade) dons de Deus infusos na condição humana, indispensáveis à própria humanização. Não dá para descrever o roteiro da solidariedade. Dir-se-ia, misticamente, que o apelo inicial (motivação) vem de Deus. Mas no seu caminhar existencial cada um precisa estar disposto a responder a esse chamamento. E para isso tem que confiar na disponibilidade dos outros e na própria para o encontro verdadeiro que enseja a experiência amorosa eminentemente inclusiva num “todo” absoluto, perfeito. Talvez o caminho pedagógico mais eficaz para induzir a experiência redentora de participar deste “todo” seja trabalhar na intimidade subjetiva a dificuldade de confiar! Vencendo-a, abrem-se as portas da subjetividade para uma aproximação aberta, e integração do sujeito consciente num contexto solidário. Integração que depende, não da confiança baseada em probabilidade estatística, mas aquela que se confunde com a atitude de entrega total a um absoluto intangível, perfeito por definição, em obediência incondicional a uma determinação superior (à “Vontade de Deus”). Isso implica em ter fé, acreditar em algo capaz de contrapor-se à improbabilidade estatística, ou seja, confiar em influências vinculadas a imponderáveis que trabalham, graciosamente, em favor da conquista do bem desejado – a vivência comunitária; movimento subjetivo, místico, que se apoia numa crença. Mas para que seja uma convicção íntima eficaz, esclarecida, o sujeito consciente precisa vivê-la num dialogo responsável com a ordem universal (Deus) através da convivência com os seus pares. Na prática esse comportamento exige a candura de uma criança e o equilíbrio de um sábio... implica na experiência sutil e exigente de crer no amor, e imolar a própria vida nesta crença. Ou seja, para conviver solidariamente precisamos superar radicalmente as fragilidades humanas, numa rebelião pacífica, heroica, contra toda forma de egoísmo! Isso é amor. Neste mundo dominado pela economia capitalista que privilegia a competição ambiciosa não espanta ver que a humanidade ainda esteja tão distante do ideal comunitário. Contudo não podemos negar que no jogo das contradições históricas é cada vez maior o número dos que se rendem à evidência de que ou nos salvamos todos ou ninguém se salvará. Atropelados pelos percalços do comportamento exclusivista que leva a humanidade à desagregação suicida, o homem está descobrindo a excelência da prática solidária.   
  Everaldo Lopes


[1] Entende-se por cultura o conjunto de características humanas que não são inatas e que se criam e se preservam ou aprimoram através da comunicação e cooperação entre os indivíduos em sociedade.
[2] Amor que move a vontade à busca efetiva do bem de outrem.
[3] Vide devaneio especulativo I neste Blog
[4] Pessoa- Cada ser humano considerado na sua individualidade física ou espiritual, portador de qualidades que se atribuem exclusivamente à espécie humana, quais sejam, a racionalidade, a consciência de si, a capacidade de agir conforme fins determinados pelo discernimento e adoção de valores solidários.