A evolução da vida
alcançou sua máxima realização na estrutura biopsíquica complexa do homem. Complexidade
que tornou possível a manifestação da consciência
reflexiva e do livre arbítrio,
permitindo ao homem reconhecer e disciplinar suas pulsões instintivas. A Ciência
ainda não consegue explicar a consciência
reflexiva e o livre arbítrio, mas
ambos definem a condição humana, permitem o diálogo dos indivíduos entre si, e de
cada um consigo mesmo e com o mundo. Igualmente, propiciam o planejamento da
organização social e politica da coletividade humana, assumindo um papel insofismável
no processo evolutivo. A relação “eu-tu” encarna, então, um caráter ético
incontornável, o primeiro passo na direção do objetivo histórico maior da
Evolução, a construção da comunidade humana, mediante relações intersubjetivas.
Nestas interações o “eu” e o “tu” são mutuamente
estruturantes. Na verdade as manifestações livres do vir a ser consciente marcam
uma mudança de rumo na Evolução, no sentido da organização comunitária. O
elemento decisivo desta mudança é a emergência da liberdade, uma dimensão até
então inédita no universo, que torna possíveis as relações políticas e econômicas
escolhidas livremente pelo homem em busca de soluções para os problemas sociais.
A interdependência dos
elementos da realidade evolutiva do mundo, na qual se inclui o próprio homem, é
a base da estruturação de um todo centrado no respeito aos indivíduos, na promoção
do bem estar coletivo e na conservação da Natureza. Objetivando a integridade
deste “todo”, as decisões pessoais conscientes e livres devem ser fundamentadas
na prática da verdade e da justiça, lastro da dignidade humana. Constrói-se
assim um humanismo que inspira o modelo de convivência baseado na cooperação e
na partilha. Ou seja, uma organização política e social solidária que é
fundamentalmente inclusiva; enquanto as ações egoístas marcadas pela competição
(muito frequentemente desleal) e pelo acúmulo de bens conduzem à estratificação
social e à exclusão de uma parte expressiva da coletividade que fica impedida de
participar do “Bem Comum”. O modelo solidário resultante do exercício da consciência livre e responsável é o
salto de qualidade mais importante na História da humanização. Sem esta
conquista a espécie Homo Sapiens sapiens estaria condenada ao fracasso[1]... e, por via de
consequência, a Evolução seria interrompida.
No curso da humanização o homem se
contextualiza em cada momento definindo-se por suas escolhas e ações nas quais deverá
assumir os valores inerentes ao caráter responsável da consciência reflexiva. A
Humanidade, prolongamento do processo evolucionário, não sobreviveria se o ideal
comunitário (solidário) fosse anulado pelos interesses individuais e
corporativos. E estes interesses são mais espontâneos do que o ideal solidário
baseado nos vínculos recíprocos intersubjetivos responsáveis que buscam a
harmonia coletiva universal. Embora, no vir a ser individual o “sentido” muitas
vezes se esconda equivocadamente na satisfação da libido e no desejo de poder,
em última análise só se manifesta em plenitude no esforço de integração do
indivíduo num todo comunitário, ideal que transcende a complexidade biológica
pura. O movimento solidário empreendido ao
arrepio das forças biológicas instintivas dá testemunho da espiritualidade
humana. Entenda-se por espiritualidade o sinal de um dinamismo absoluto[2], perfeito em sua
natureza que se manifesta no homem pela consciência reflexiva e exercício do livre
arbítrio. A estabilidade social pode ser alcançada por um contrato social de
fundo político e ético, o que já é muito. Mas só os laços solidários (espirituais)
garantem a sustentabilidade das relações comunitárias necessárias à
sobrevivência da espécie humana. A função básica da consciência é a de gerir
ações definidas pelo ideal de solidariedade a ser impresso nas relações
interpessoais. Este ideal aponta o sentido e o arremate da própria Evolução. Dir-se-ia
que todo esforço evolutivo cósmico e biológico progrediu o tempo todo na
direção do exercício da liberdade
conata da própria consciência. Evidentemente,
não há liberdade sem consciência
reflexiva e vice-versa, da mesma forma que não há comunidade sem a prática de
atos livres e responsáveis. Portanto, a liberdade
que, por definição, transcende a organização biológica é a virtude basilar
do vir a ser consciente no desempenho de sua missão evolutiva. Nesta prática o
indivíduo encontra o sentido da própria existência ao contribuir para a
construção da comunidade humana. Contribuição criativa que se elabora, por
assim dizer, no hiato ontológico entre as funções biológicas de alta
complexidade (do Sistema Nervoso Central) e a expressão dialógica noética da consciência
reflexiva. Neste hiato subsiste a espiritualidade humana que tece no âmbito
subjetivo o pensamento, a imaginação criativa e a crença, transcendências
inexplicáveis à luz da razão pura.
Transcrevo
em seguida um fragmento da obra de Elizabeth Lukas[3], discípula presencial
de Viktor Frankl, criador da Logoterapia[4], que traduz de forma
convincente a mensagem que tentamos transmitir neste texto. Ao desenvolver as
teses logoterápicas a autora questiona: “... Olhando em retrospecto a Evolução,
não seria possível deduzir que todos os
seres que existiram até agora, existiram com a tarefa de criar um campo
de manifestação e expressão do espírito? Não podem assim ser entendidas as bases biológicas e psíquicas da existência humana? Como é
óbvio, a natureza do espiritual é diferente da natureza do seu campo de manifestação, assim como em certo sentido, a natureza da luz é
diferente da natureza da lâmpada, do fio e do interruptor através dos quais a
luz se manifesta. Mesmo assim, não se pode acender a luz da sala com um interruptor
defeituoso embora a luz em si não seja defeituosa. Ela apenas não pode ser
revelada, mas permanece livre e independente de qualquer interruptor. Da mesma forma se define na Logoterapia a
dimensão espiritual (noética) do homem como algo que em si mesmo não pode
adoecer, mas precisa dos préstimos de um organismo complexo sadio para
manifestar-se. Dessa forma, o conjunto da cultura humana não pode mais ser
interpretado como a domesticação
progressiva do animal no homem, mas como a aurora do espiritual no homem”, pela manifestação
do espírito que preexiste ao
espaço-tempo e nele permanece cifrado.[5]
Everaldo Lopes
[1] Se analisarmos os
problemas sociais, de saúde, educacionais, políticos e econômicos que nos
afligem veremos que todos eles resultam de desvios do exercício da consciência reflexiva.
[2] Conceito limite que
satisfaz a tendência unificante do pensamento. Um dinamismo que se definiria
como o princípio constitutivo e explicativo de toda realidade.
[3] Do livro “Logoterapia, a
busca do sentido”
[4] Logoterapia: Terceira
Escola Vienense de Psicoterapia, sendo a Psicanálise Freudiana a Primeira, e a
Psicologia Individual de Adler a Segunda.
[5] O espaço e o tempo
surgiram após o big-bang. Todavia, o espaço-tempo, contingente, finito, não
pode ser autor de si mesmo. O antes, portanto, ainda imaterial, espiritual, assume
o caráter de um absoluto que se basta, e permanece, necessariamente, de alguma forma misteriosa no espaço-tempo porque este, pura
contingência, não subsistiria por si mesmo.