terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

A misteriosa unidade da transcendência e da imanência

O equilíbrio fisiológico entre os nossos órgãos e sistemas vitais é um fenômeno biológico complexo em permanente interação com o meio ambiente. Nesse nível apenas vivemos. Por outro lado, os hábitos e costumes que permeiam as manifestações coletivas estão ligados à prática dos valores éticos. São eventos culturais que espelham o exercício responsável da consciência reflexiva na vida social.  Nesse patamar existimos.
A forma de as pessoas se relacionarem entre si demonstra o maior ou menor comprometimento com a Verdade e a Justiça no encaminhamento das relações interindividuais. Isso se reflete na autoavaliação e disciplina comportamental de cada um.
Desde as especulações dos primeiros pensadores, tornou-se evidente a necessidade de admitir um “primeiro motor não movido”[1], um absoluto criador, visto que nenhum dos seres que constituem o Universo é capaz de criar-se a si mesmo. Analisando retrospectivamente a organização evolutiva destes seres identificamos uma complexidade crescente, desde a matéria primitiva caótica até os organismos vivos e a eclosão no homem da consciência reflexiva. Uma vez que toda ordem  implica numa intenção e esta só existe como um estado de consciência, a constatação do ordenamento impresso na evolução do mundo visível a partir do big bang dá lugar a abstrações metafísicas compatíveis com a intenção de uma consciência universal necessariamente inerente ao Absoluto criador. 
Por outro lado, os seres incapazes de gerar a si mesmos também não possuem a força da subsistência. Isolados do Criador eles desapareceriam. Esse raciocínio conduz à conclusão lógica de que as criaturas não sobrevivem separadas da transcendência absoluta que as criou. Portanto, esta transcendência e a imanência espaço-temporal  constitutiva das criaturas coexistem necessariamente de um modo incompreensível para a razão humana. Diante dessa exigência lógica o pensador coerente é levado a admitir um dinamismo absoluto eternamente criativo que cria e permanece na criatura; em vez de um Criador isolado da sua criação. Conclusão: Deus está presente, necessariamente, em todos os seres que compõem a Natureza. Todavia, apenas o homem presume sua presença misteriosa da qual o único sinal referencial é subjetivo, seja uma expectativa com base especulativa, seja, na melhor hipótese, a fé incondicional no “Dinamismo Absoluto Eternamente Criativo”. Levantando essa questão compreendemos melhor a afirmação mística de São Paulo após a conversão: “Já não sou eu que vivo, mas Cristo que vive em mim.”
            Com essa visão de Deus (o Criador) como um dinamismo absoluto eternamente criativo, necessariamente presente nas suas criaturas, ponho-me a pensar sobre a prática e o fundamento da oração. Orar é conversar com Deus que já está presente em quem reza. O “ego” do suplicante confronta-se na subjetividade do ser humano com o “alter ego” absoluto cuja transcendentalidade não se deixa apreender num conceito, mas está presente, sempre autônoma e poderosa  reconhecível como a “voz da consciência”. A realização miraculosa repousa na força criadora presente em quem pede confiante na coincidência do seu pedido com a integridade da criação, condição para a realização do milagre. Obviamente, tudo está contextualizado num todo absoluto unitário, e o pedido de quem ora só será atendido quando coincidir com a ordem implícita neste absoluto (em linguagem mística: a vontade do Criador). Coincidência viável uma vez que a vontade absoluta de Deus está potencialmente presente na vontade da criatura consciente, inspirando-a a praticar os valores éticos universais. O não atendimento ao pedido extraordinário não seria uma negação, mas a afirmação de uma realidade cuja inteligibilidade escapa ao conhecimento do suplicante. Por mais justa que pareça, a súplica atual pode não se encaixar na ordem evolutiva inerente à intenção da Consciência Universal. Portanto quem roga deve permanecer submisso à vontade do criador que tudo vê, e identifica  as consequências à distância do que se pede hoje, inacessível ao conhecimento do suplicante; eventualmente seu pedido pode não  integrar-se na unidade do Todo absoluto.
Tendo sido criado consciente reflexivo, racional e dotado de livre arbítrio, o homem se identifica com o seu Criador no exercício das funções psíquicas superiores que têm caráter espiritual. Espiritualidade refletida na aspiração do ser consciente à integração pessoal no absoluto transcendental. As especulações desenvolvidas anteriormente sobre a unidade do Absoluto criador sugerem a expectativa de que as limitações temporais se anulam na comunhão perfeita  da criatura e do Criador.
            Na perspectiva desses comentários é infantil pedir que Deus realize o milagre sem a participação de quem o pede; sua colaboração é essencial. Ao dizer: Deus dê-me a graça de ser benevolente e solidário, estou pedindo a mim mesmo a minha própria contribuição pessoal para viabilizar a graça desejada, deixando nas mãos do Criador os fatores que escapam ao meu controle. Sejam as catexes[2] que transitam na minha  intimidade psíquica inconsciente, seja a interação complexa surpreendente das forças da Natureza. Na oração  quem pede o milagre reconhece a própria incapacidade de realizá-lo por si só, todavia está confiante em que seu pedido seja compatível com a intervenção favorável  do Dinamismo Absoluto Eternamente Criativo.
            Em resumo, a unidade misteriosa da transcendência e da imanência é compatível com a tese que a única realidade é o Espírito eterno, transcendência absoluta, origem de tudo[3]. A imanência cósmica essencialmente fugaz que se prolonga na organização biológica, inclusive do homem, pode ser comparada a uma bolha espaço temporal na intimidade do Espírito eterno que a absorve finalmente na sua unidade absoluta. Depois da morte biológica a alma humana, centelha do espírito eterno transfigura-se, sem perder a identidade, participando da unidade comunitária de todas as consciências.     
   Everaldo Lopes





[1] Aristóteles.
[2] Aplicação, consciente ou não, de energia psíquica em pessoa, coisa ou ideia. 
[3] No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus