sexta-feira, 25 de abril de 2014

Eu - individualidade metafísica da pessoa

Nome, idade, sexo, cor, filiação, estado civil, profissão, nº do Registro Geral (RG), nº do Cadastro de Pessoa Física (CPF), nacionalidade, residência habitualmente bastam para a identificação formal de uma pessoa. Mas, na verdade, tudo isso são apenas registros que revelam o status, a ascendência, a profissão e os números pelos quais um indivíduo é reconhecido na coletividade. Esses dados são suficientes para caracterizar alguém como um membro da sociedade organizada. Mas não respondem à pergunta que, eventualmente, este alguém poderia se fazer: “Que sou eu?”. Neste texto quero deter-me na tentativa de compreender a natureza do núcleo ontológico do “eu”, o centro psíquico ao qual se referem todos os nossos pensamentos, desejos e ações. O que é esse centro dinâmico que cada um procura numa introspecção profunda e não descobre como entidade descritível, mas experimenta como vivência indiscutível? Revela-se como a consciência silenciosa e sem forma que antecede todo e qualquer pensamento, sentimento ou ato voluntário. O núcleo mais radical do ser consciente é portanto uma realidade abstrata que se impõe ao reconhecimento pela consciência que todo homem tem do si mesmo. Nessa reflexão o homem se identifica com a capacidade de pensar, escolher, curtir sentimentos, e querer. Sem descer a especulações metafísicas, para uma maioria expressiva dos homens esse núcleo original é a alma imortal.
Quando o sujeito consciente se sente objeto de sua própria observação percebe a fragilidade biológica amarrada à fatalidade da velhice e da morte. Mas como uma pessoa com aptidões[1] que transcendem os determinismos puramente biológicos compreende, ao mesmo tempo, que não se explicaria apenas biologicamente. E por sua consciência reflexiva o homem se torna problemático. Sente necessidade de saber qual é sua realidade mais profunda, e o que por seu caráter consciente representa no contexto evolucionário do Universo. O pensador reconhece a dificuldade de explicitar a individualidade metafísica da sua pessoa, mas ao dizer meu corpo, meu pensamento, meu sentimento denuncia um sujeito transcendental consciente (“eu”) desses atributos. Nesse movimento de reflexão inextrincável da sua relação com o mundo, o ser consciente define uma linguagem, elege valores e desenha uma missão que eticamente se propõe a assumir. Linguagem, valores e missão que ganham força mediante o grau do compromisso de coerência pessoal do vir a ser de cada um no contexto de sua circunstância. Dessa forma o homem elabora um esquema de comportamento que passa a ser o invólucro do núcleo ontológico invisível do seu ser no mundo. Esse involtório comportamental passa a constituir a interface entre o núcleo ontológico do “eu” e o mundo. A personalidade resultante deste processo de interação interfacial é a essência do homem como um ser de cultura.
A Ciência não consegue explicar os dotes humanos transcendentais que, aparentemente, ultrapassam as funções biológicas e até exercem certo poder sobre elas. Isso nos deixa à mercê de especulações filosóficas e da crença em determinados a priori sobre os quais construímos teorias com estrutura lógica coerente, mas que não podem ser objetivamente comprovadas.
A tentativa de abordagem racional do núcleo ontológico de cada um de nós mesmos é uma experiência no mínimo, confusa. Não identificamos a natureza desse núcleo, mas sabemos que ele existe como um vazio a ser preenchido mediante integração do vir a ser consciente num absoluto significativo. Com essa expectativa a memória vai costurando as experiências sucessivas do vir a ser pessoal, na tentativa de construir com o devir humano algo que faça sentido, uma história com começo, meio e fim. O homem procura consolidar essa orientação reverenciando a verdade, com a disposição de respeitar a coerência ética das suas relações com os outros e com o mundo. Então, com a razão, os sentimentos e a disposição voluntária de preservar a congruência existencial o homem constrói um chão subjetivo, lastro moral sobre o qual se apoia e cuja solidez vale o quanto nele deposita de confiança, sem qualquer garantia.
O ponto cego da subjetividade é o próprio “eu”. Nele se projeta a sombra de uma transcendência com a qual o “eu” se identifica, sinalizando que sua verdadeira natureza é transtemporal. A razão se surpreende com a descoberta de que a verdade última da individualidade metafísica do “eu” requer fé, e depois fica feliz ao descobrir que esta fé é o mais racional dos argumentos que a razão possa propor. Não há certezas absolutas, mas o ser consciente estabelece os limites da sua própria certeza, avalizando-a enquanto nela se consuma. Essa verdade é que preenche o vazio original do ser consciente, sustentando-se num pressuposto assumido pela fé, ao arrepio de qualquer evidência. Essa conjectura, assumida como verdade é o “porquê” pelo qual “suportamos qualquer como”[2], ou seja, aquilo que imprime um sentido à existência. Sem outra garantia senão a do aval pessoal, este “porquê” tem o peso que lhe confere a própria pessoa num esforço coerente, inteligente de integração da sua realidade num absoluto significativo. Esse é o caráter profundo da fé. A criação de algo que se projeta na realidade contingente, transitória, conferindo sentido a tudo. Mais uma vez relembro Unamuno quando diz: “Ter fé não é crer no que não se vê, mas criar o que não se vê”.
Felizes são aqueles que têm a força interior necessária para aderir ao seu “porquê” transcendental, razão de ser inspiradora em cuja defesa estão dispostos a morrer. A meio caminho dessa aspiração espiritual estão os ideólogos sociais que dispõem apenas de um “porquê” temporal, posto que se consuma e se extingue na sua própria atualização histórica.
Teoricamente, o núcleo metafísico do “eu” está na fronteira entre o tempo e a eternidade, entre a matéria e o espírito.
Everaldo Lopes



[1] Inteligência lógico-matemática, criatividade, sensibilidade afetiva, consciência reflexiva, capacidade de escolher utilizando critérios de valor.
[2]Nietsche – “Aquele que tem um porquê para viver pode suportar quase qualquer como”