Nome, idade, sexo, cor, filiação, estado civil, profissão, nº do
Registro Geral (RG), nº do Cadastro de Pessoa Física (CPF), nacionalidade,
residência habitualmente bastam para a identificação formal de uma pessoa. Mas,
na verdade, tudo isso são apenas registros que revelam o status, a ascendência,
a profissão e os números pelos quais um indivíduo é reconhecido na
coletividade. Esses dados são suficientes para caracterizar alguém como um
membro da sociedade organizada. Mas não respondem à pergunta que,
eventualmente, este alguém poderia se fazer: “Que sou eu?”. Neste texto quero
deter-me na tentativa de compreender a natureza do núcleo ontológico do “eu”, o
centro psíquico ao qual se referem todos os nossos pensamentos, desejos e
ações. O que é esse centro dinâmico que cada um procura numa introspecção
profunda e não descobre como entidade descritível, mas experimenta como
vivência indiscutível? Revela-se como a consciência silenciosa e sem forma que antecede
todo e qualquer pensamento, sentimento ou ato voluntário. O núcleo mais radical
do ser consciente é portanto uma realidade abstrata que se impõe ao
reconhecimento pela consciência que todo homem tem do si mesmo. Nessa reflexão o
homem se identifica com a capacidade de pensar, escolher, curtir sentimentos, e
querer. Sem descer a especulações metafísicas, para uma maioria expressiva dos homens
esse núcleo original é a alma imortal.
Quando o sujeito consciente se sente objeto de sua própria observação percebe
a fragilidade biológica amarrada à fatalidade da velhice e da morte. Mas como
uma pessoa com aptidões[1]
que transcendem os determinismos puramente biológicos compreende, ao mesmo
tempo, que não se explicaria apenas biologicamente. E por sua consciência
reflexiva o homem se torna problemático. Sente necessidade de saber qual é sua
realidade mais profunda, e o que por seu caráter consciente representa no
contexto evolucionário do Universo. O pensador reconhece a dificuldade de explicitar
a individualidade metafísica da sua pessoa, mas ao dizer meu corpo, meu
pensamento, meu sentimento denuncia um sujeito transcendental consciente (“eu”)
desses atributos. Nesse movimento de reflexão inextrincável da sua relação com
o mundo, o ser consciente define uma linguagem, elege valores e desenha uma
missão que eticamente se propõe a assumir. Linguagem, valores e missão que
ganham força mediante o grau do compromisso de coerência pessoal do vir a ser de
cada um no contexto de sua circunstância. Dessa forma o homem elabora um
esquema de comportamento que passa a ser o invólucro do núcleo ontológico
invisível do seu ser no mundo. Esse involtório comportamental passa a
constituir a interface entre o núcleo ontológico do “eu” e o mundo. A
personalidade resultante deste processo de interação interfacial é a essência
do homem como um ser de cultura.
A Ciência não consegue explicar os dotes humanos transcendentais que,
aparentemente, ultrapassam as funções biológicas e até exercem certo poder
sobre elas. Isso nos deixa à mercê de especulações filosóficas e da crença em
determinados a priori sobre os quais construímos teorias com estrutura lógica coerente,
mas que não podem ser objetivamente comprovadas.
A tentativa de abordagem racional do núcleo ontológico de cada um de nós
mesmos é uma experiência no mínimo, confusa. Não identificamos a natureza desse
núcleo, mas sabemos que ele existe como um vazio a ser preenchido mediante integração
do vir a ser consciente num absoluto significativo. Com essa expectativa a memória
vai costurando as experiências sucessivas do vir a ser pessoal, na tentativa de
construir com o devir humano algo que faça sentido, uma história com começo,
meio e fim. O homem procura consolidar essa orientação reverenciando a verdade,
com a disposição de respeitar a coerência ética das suas relações com os outros
e com o mundo. Então, com a razão, os sentimentos e a disposição voluntária de
preservar a congruência existencial o homem constrói um chão subjetivo, lastro
moral sobre o qual se apoia e cuja solidez vale o quanto nele deposita de
confiança, sem qualquer garantia.
O ponto cego da subjetividade é o próprio “eu”. Nele se projeta a sombra
de uma transcendência com a qual o “eu” se identifica, sinalizando que sua
verdadeira natureza é transtemporal. A razão se surpreende com a descoberta de
que a verdade última da individualidade metafísica do “eu” requer fé, e depois
fica feliz ao descobrir que esta fé é o mais racional dos argumentos que a
razão possa propor. Não há certezas absolutas, mas o ser consciente estabelece os
limites da sua própria certeza, avalizando-a enquanto nela se consuma. Essa
verdade é que preenche o vazio original do ser consciente, sustentando-se num
pressuposto assumido pela fé, ao arrepio de qualquer evidência. Essa conjectura,
assumida como verdade é o “porquê” pelo qual “suportamos qualquer como”[2],
ou seja, aquilo que imprime um sentido à existência. Sem outra garantia senão a
do aval pessoal, este “porquê” tem o peso que lhe confere a própria pessoa num
esforço coerente, inteligente de integração da sua realidade num absoluto
significativo. Esse é o caráter profundo da fé. A criação de algo que se
projeta na realidade contingente, transitória, conferindo sentido a tudo. Mais
uma vez relembro Unamuno quando diz: “Ter fé não é crer no que não se vê, mas
criar o que não se vê”.
Felizes são aqueles que têm a força interior necessária para aderir ao
seu “porquê” transcendental, razão de ser inspiradora em cuja defesa estão
dispostos a morrer. A meio caminho dessa aspiração espiritual estão os
ideólogos sociais que dispõem apenas de um “porquê” temporal, posto que se
consuma e se extingue na sua própria atualização histórica.
Teoricamente, o núcleo metafísico do “eu” está na fronteira entre o
tempo e a eternidade, entre a matéria e o espírito.
Everaldo Lopes