Viver
por viver não preenche o verdadeiro sentido evolutivo da vida consciente
reflexiva. Para cumprir fielmente seu objetivo no contexto evolucionário o
homem precisa refletir a fim de definir-se através de escolhas e decisões responsáveis,
socialmente coerentes. Esse não é o comportamento das pessoas que não atinam ou
não assumem o compromisso de honrar a sua condição humana[1].
Todavia todos desejam viver mais! Nas Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs)
do mundo inteiro um enorme esforço é feito diuturnamente, no sentido de salvar vidas que estão por um
fio. Diante da ameaça de um fim próximo os doentes graves, agarram-se à ajuda
médica e até a tratamentos milagrosos com a esperança de vencer a parca
impiedosa. A ordem do dia é: viver, viver mais. Reconhecemos ser louvável o
esforço despendido para prolongar a vida; essa é a missão do médico. Mas o
efetivo exercício livre e responsável da consciência reflexiva é o que torna a
vida humana digna de ser vivida. E essa prática é da alçada de cada um mediante
o bom uso das funções psíquicas superiores (racionalidade, afetividade e
vontade) tendo em vista a realização de ideais nobres. No seu vir a ser o homem
protagoniza a luta íntima entre suas tendências egoístas excludentes e a
prática solidária indispensável à sobrevivência da espécie. Cada um tem que dar
uma resposta pessoal a esse conflito. E a coerência ética das relações do
indivíduo consigo mesmo e com os outros é a medida de sua envergadura moral.
Lancemos um olhar inquiridor sobre os antecedentes e o porvir dos que estão
sendo salvos nos centros de terapia intensiva. Entre os pacientes graves que
ocupam os leitos das Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs) a maioria das
patologias é produzida pelos desregramentos que suas vítimas consciente ou
inconscientemente praticaram por longo tempo, empenhados na conquista de
objetivos materiais. O enfartado é um executivo que viveu o tempo todo
correndo atrás de maior produtividade, numa atividade lucrativa. Ou um bon
vivant disposto a jogar todas as fichas para fruir o prazer que se lhe oferece
cada momento. São legiões de indivíduos que desafiaram os limites do próprio
corpo para satisfazer suas ambições imediatistas e acabaram sofrendo as
consequências. Nessa insensatez
dissiparam as próprias vidas. Tornaram-se vítimas de desordens biológicas que
ao longo do tempo evoluíram para moléstias renais crônicas, cirrose hepática, doença
coronariana, apoplexia cerebral entre outros estados patológicos graves. Estressados,
afanaram-se na tentativa ambiciosa de conquistar alvos fugazes, descuidando a
saúde do corpo. Agora, doentes, são obrigados a abandonar suas ambições, já não
lhes restam oportunidades de realizá-las, mas continuam sedentos de mais vida. Todavia
a experiência mostra que quase todos voltarão para suas rotinas morbígenas se
conseguirem sobreviver à doença atual. Poucos terão aprendido a lição. A equipe
médica nas unidades de tratamento intensivo não sabe o que o paciente aos seus cuidados cuja vida
está por um fio fará da sua existência se escapar da morte iminente. Não
importa, é preciso salvar sua vida ameaçada. Todos querem viver mais, porém muitos salvos da morte
pelos cuidados médicos recebidos não saberão o que fazer dos anos de vida que
estão por vir.
Alguém já disse que o verdadeiro desafio
de ser homem é caminhar para a morte, lutando pela vida... E eu até concordo
com essa visão numa perspectiva de vida apaixonada pela busca heroica de
solução harmoniosa para as contradições existenciais. Nessa perspectiva é contraditório
assimilar, sem protesto, a monótona repetição dos “mesmos sem roteiros tristes
périplos”[2]
em que se torna a vida de muitos de nós presos a propostas existenciais egoísticas
imediatistas que se esgotam nelas mesmas. Para superar a monotonia da ganância
dos bens e prazeres materiais que amesquinham as possibilidades existenciais, o
homem precisa alimentar a esperança de uma realização superior, decidido a
alcançá-la com talento e determinação. Isso implica no envolvimento com uma
causa nobre, associado a um ideal estético, intelectual e ético-social. Sem uma proposta existencial criativa coerente
com os elevados ideais de verdade e justiça, o homem fica à mercê de uma postura
magnetizada pela vontade de viver por viver! Seguramente, conquistar a
plenitude pessoal é o objetivo da existência; porém dadas as limitações humanas,
a realização a que aspira a maioria das pessoas se confunde com sucessos
imediatos voltados para o “ter mais” e não para o “ser mais”. Por falta de
crítica sadia, e determinação para realizar os ideais superiores, os erros de
ontem se repetem indefinidamente. É preciso carregar a chama divina que ilumina
os que cultivam o desejo de ser mais, a
fim de alcançar a verdadeira plenitude do ser consciente. Para dignificar a
condição humana é preciso ousar o impossível, tentar sem desfalecimentos a realização de um ideal
nobre. Só os que assim procedem conseguem superar as dificuldades existenciais,
alimentando no mais íntimo do ser, o sentimento de respeito a si mesmos, aos
outros e à natureza.
Afinal, o que será a vida sem uma paixão
transcendental? O que não está claro, para muitos, é que esta paixão conduz à
paz da vida comunitária, fundamento supremo da verdadeira alegria de viver! Não
obstante, uma força insistente leva o homem a agarrar-se à vida pela vida
mesma, na expectativa de algumas migalhas de prazer e felicidade passageira.
Esse é o desfecho quando falta ao homem a disposição e a coragem de ser coerente
com o ideal solidário, recriando-se e
assumindo a responsabilidade das escolhas que faz. Ele não se dá conta de que a
falta da realização existencial superior é a origem da angústia humana, dor
muda que fustiga as entranhas da existência. Contra ela é necessário opor a “força
interior” que se manifesta num comportamento clarividente, compassivo, determinado
a encontrar solução para as contradições do vir a ser humano. Nesse sentido nenhuma
proposta supera o exercício do amor que move a vontade à busca do bem de outrem[3].
Na verdade, a prática caridosa é
necessária para realizar o sonho de construir uma comunidade solidária, onde os
problemas existenciais partilhados em perfeita cooperação se resolveriam numa
epopéia de paz e serenidade, aqui mesmo na Terra.
Para o homem não basta viver mais;
é preciso viver dignificando a condição humana.