Faz alguns anos, nos reuníamos semanalmente uns três ou quatro amigos
para desfrutar um bate-papo descontraído, focado em problemas humanos
relevantes. Talvez quiséssemos discutir nossas “verdades”, quiçá, descobrir
novos caminhos! O encontro ao qual me
reporto agora ocorreu num bar restaurante recém-inaugurado. O piano espalhava
sonoridade nostálgica na sala ampla. Alguns clientes bebericavam ou faziam sua
refeição habitual. Nós ocupávamos uma mesa mais isolada em um canto do salão
menos movimentado, onde podíamos conversar mais à vontade.
A carta de bebidas encadernada com capa vermelha que nos foi entregue
pelo garçom oferecia grande variedade de vinhos. Feito o pedido o garçom o anotou,
mas logo depois voltou sem jeito com um riso amarelo nos lábios a pedir
desculpas por haver zerado o estoque do vinho solicitado. Decidimos
contentar-nos com outro tinto disponível. Para tira-gosto pedimos queijo
mussarela e presunto cortados em cubos. O piano continuava encantando nossos
ouvidos, ora em ritmo de valsa, ora em compasso de Fox, ou samba canção. O
pianista caprichava na escolha de músicas que mexiam com antigas lembranças
nossas.
Servida a primeira taça um dos presentes falou para o grupo.
- Gente na última vez que nos reunimos, fui sorteado para conduzir,
hoje, o nosso “papo filosófico”. Escolhi conversarmos sobre os valores que
devem presidir a relação dinâmica entre os indivíduos na convivência social. Reuni
alguns tópicos polêmicos que servirão como pontos de partida para uma abordagem
analítica do tema escolhido. E leu um resumo digitado em duas laudas de papel
A-4; depois interrogou os presentes com o olhar.
Um dos ouvintes comentou:
- No seu relato evidencia-se o potencial conflituoso entre os aspectos imediatos
e transcendentais, respectivamente egoístas e éticos, das aspirações
individuais. Estes aspectos conflitam
muitas vezes e devem ser trabalhados até a elaboração do comportamento ético justificado
por um valor absoluto. Trabalho que implica no disciplinamento do egoísmo para garantir
a harmonia das relações sociais. Sem esta disciplina, a satisfação descontrolada
dos interesses individuais imediatos dá lugar a injustiças sociais que
prejudicam pessoas ou grupos. No plano econômico os privilégios de uma minoria acabam criando um fosso entre os ricos e os
pobres. Para contornar as consequências das injustiças e desequilíbrio social tem-se
apelado, historicamente, para o controle do Estado político no sentido de
garantir os direitos fundamentais a todos os cidadãos. Nessa perspectiva não
ficou muito claro para mim seu posicionamento com respeito à solução do
conflito entre os interesses individuais e a dinâmica social.
O companheiro alvo do comentário retrucou:
- Já foi dito, que a dificuldade de os homens autodisciplinarem-se ensejou
a necessidade da intervenção de uma autoridade externa no processo socioeconômico.
Não me posicionei sobre a maior ou menor intervenção do Estado político na vida
social e econômica porque a minha função hoje é a de provocar. Mas endosso a
orientação humanística que você sinalizou ao apontar o esforço a ser
empreendido a fim de alcançar o equilíbrio entre as demandas individuais e
sociais, em função de um valor ético universal.
Na sequência, o seu comentarista acrescentou:
- Conquistar para todos os homens condições humanas de vida, anulando as
diferenças financeiras e culturais entre as “classes sociais” será sempre um
objetivo nobre e consistente. Só temo as consequências da associação
inadvertida do ideal socialista com uma tese materialista como faz Marx! Esta
associação é muito restritiva, e prejudicial ao desenvolvimento do humanismo
integral.
O autor do texto lido concordou e ajuntou:
– Aliás, é bom deixar claro desde agora que se equivoca aquele que reduz
o problema social a uma questão puramente material. Estou convencido de que vitoriosa
a revolução social nos termos marxistas, o problema existencial persistiria!
Mesmo bem alimentado, abrigado, assistido, o homem continuaria a se perguntar
sobre como tudo começou e como terminará o mundo visível; permaneceria curioso
sobre o sentido da sua própria vida, incomodado com a consciência angustiante da
sua própria finitude incontornável! Curiosidades e vivência que são motivos de
sobra para alimentar a angústia existencial que tortura o ser consciente e
exigem elaborações plausíveis. Uma prova disso é a alta frequência de suicídios nos países
desenvolvidos nos quais os problemas sociais básicos estão resolvidos.
Curiosamente, uma frequência equivalente à de homicídios nos países subdesenvolvidos!
Estou convencido de que no plano pessoal mais profundo, o alimento espiritual
de que precisa o homem para agir eticamente e libertar-se da angústia
existencial é uma experiência mística que lhe satisfaça a dimensão
transcendental da existência.
Iniciada a discussão, as
intervenções se multiplicaram, e os comentários paralelos atropelaram o debate.
Acalmados os ânimos, o mais sisudo do grupo manifestou sua opinião:
– Concordo com o pronunciamento que acabamos de ouvir. A satisfação das
necessidades primárias do homem não basta. Impõe-se uma prática ética
humanística que sacie harmoniosamente a fome do corpo e da alma. O conflito entre
as demandas individuais e sociais é emblemático e exige um posicionamento
honesto. Historicamente é notório que para atingir as metas materiais colimadas,
o estatuto socialista mais radical justifica todos os meios. Dessa forma, a
dinâmica político-social adotada pelo ativista marxista-leninista desfigura os
princípios humanísticos integrais fundamentados na prioridade do exercício da consciência
livre e responsável. A ditadura do proletariado perdeu-se num passado distante.
Mas a sombra deste passado ainda amedronta os grupos radicais conservadores. Urge
estimular o convívio democrático e solidário evolutivo. Gandhi resumiu
magistralmente a metodologia capaz de conduzir o aprimoramento das transformações
sociais necessárias ao desenvolvimento da humanidade: “É preciso ser a mudança
que queremos ver no mundo a fim de contribuir para a construção de uma
verdadeira comunidade humana”. E isso exige autenticidade e determinação.
Um dos componentes do grupo que se mantivera calado até então falou:
– Nesses termos a questão fica muito bem posta. Aliás, complementando o
que ficou dito, acho pertinente definir um parâmetro avaliativo universal a fim
de estimar o ideal do comportamento humanístico integral. Na minha apreciação a
ordem evolutiva centrada na construção da comunidade humana seria o referencial
padrão-ouro para a caracterização da missão evolutiva histórica do homem. Essencialmente,
na trilha do ideal comunitário a verdade ética estaria sempre associada à solidariedade
livremente escolhida e praticada.
Retomando o debate, o mais velho do grupo interveio reportando-se ao
depoimento anterior.
- Isso faz sentido. Os valores inerentes à proposta evolutiva que
objetiva a comunidade humana deverão ser considerados referenciais seguros para
distinguir o certo e o errado nos modelos que plasmam as relações sociais. A
coerência ética em relação ao existir pleno solidário só será uma realidade no
seio da comunidade humana. Portanto é nesse sentido que a humanidade deve
caminhar. Em verdade o homem é capaz de
amar e de odiar, de criar e destruir, de aderir à verdade ou à mentira! E será,
afinal, o resultado de suas escolhas. Nessa perspectiva não é mais um ser
natural, porém um ser de cultura. Quando falamos do existir pleno, estamos conceituando
uma construção cultural (a existência) e não um evento natural (o simples ato
de viver). Os valores que satisfazem a prática solidária são os marcos
regulatórios desta construção.
Um dos presentes comentou
oportunamente:
- Aliás, no contexto existencial já está implícita a relação eu-tu que é
o cerne da própria dimensão social solidária do homem. O “eu” não existe sem o “tu”.
Da relação harmoniosa de ambos resulta o “nós” que abre a porta para uma sólida
interação comunitária. A corresponsabilidade dos indivíduos os obriga a
respeitarem-se e, na melhor hipótese, a serem solidários. O comportamento regido
por uma moral humanística nunca se alinha com fins alheios à dignidade pessoal.
Portanto, só a ética solidária garante o padrão ouro das relações sociais humanas.
Não podemos esperar que a sociedade
feita de indivíduos assuma formas cada vez mais perfeitas, enquanto os
indivíduos fenecem descaracterizando-se eticamente, visto que o comportamento
ético é a forma de ser peculiar do homem. A existência sem a empolgação com o ideal moral solidário vira uma rotina
pueril que beira o ridículo.
O autor do texto em discussão retomou a palavra:
- Certo. Estamos sempre em processo de mudança. E para mudar
evolutivamente, mais importante do que teorizar sobre os valores ideais, é que cada
um os pratique de forma plena no convívio com os outros. Resumindo, é fundamental que cada um incorpore
em si mesmo um protótipo humano que reúna a competência necessária para
distinguir o maior número de alternativas nas várias situações vividas, e a aptidão
para selecionar consciente e responsavelmente aquela (alternativa) que melhor
convier aos propósitos comunitários. A maturidade humana é alcançada com a total
consciência do indivíduo de estar em processo de mudança, permanentemente
aberto a qualquer experiência nova que reforce os valores comunitários básicos.
Nesse sentido é preciso que cada um confie no próprio julgamento, capaz de assumir
atitudes éticas, sem rigidez ou insegurança.
Nessa perspectiva, as decisões pessoais podem conflitar com os cânones
sociais eventualmente defasados por sua própria inércia histórica, criando
obstáculos às mudanças necessárias. Muita calma e ponderação nessa hora. A ação
reformadora que vai além dos limites do padrão cultural vigente, não pode
perder o foco do ideal comunitário universal. E, fiel a este ideal, quando
necessário o indivíduo precisa ter a coragem de reformular comportamentos que
se demonstram incapazes de promover níveis mais elevados de integração comunitária.
De outra forma jamais teriam ocorrido as transformações sociais indispensáveis
à própria Evolução. Um observador simples e virtuoso, intuitivo, sábio diria
que o caminho ideal desta conquista é a
prática do amor caridade entendido como um sentimento calmo, duradouro
desinteressado, criativo, que não faz exigências, indulgente, respeitoso,
responsável, que nasce do conhecimento profundo do ser amado!
Já era tarde quando os amigos se despediram até um próximo
encontro.
Everaldo Lopes