sábado, 13 de setembro de 2014

O comportamento ético, modo de ser peculiar do homem.

Faz alguns anos, nos reuníamos semanalmente uns três ou quatro amigos para desfrutar um bate-papo descontraído, focado em problemas humanos relevantes. Talvez quiséssemos discutir nossas “verdades”, quiçá, descobrir novos caminhos!  O encontro ao qual me reporto agora ocorreu num bar restaurante recém-inaugurado. O piano espalhava sonoridade nostálgica na sala ampla. Alguns clientes bebericavam ou faziam sua refeição habitual. Nós ocupávamos uma mesa mais isolada em um canto do salão menos movimentado, onde podíamos conversar mais à vontade.  
A carta de bebidas encadernada com capa vermelha que nos foi entregue pelo garçom oferecia grande variedade de vinhos. Feito o pedido o garçom o anotou, mas logo depois voltou sem jeito com um riso amarelo nos lábios a pedir desculpas por haver zerado o estoque do vinho solicitado. Decidimos contentar-nos com outro tinto disponível. Para tira-gosto pedimos queijo mussarela e presunto cortados em cubos. O piano continuava encantando nossos ouvidos, ora em ritmo de valsa, ora em compasso de Fox, ou samba canção. O pianista caprichava na escolha de músicas que mexiam com antigas lembranças nossas.
Servida a primeira taça um dos presentes falou para o grupo.
- Gente na última vez que nos reunimos, fui sorteado para conduzir, hoje, o nosso “papo filosófico”. Escolhi conversarmos sobre os valores que devem presidir a relação dinâmica entre os indivíduos na convivência social. Reuni alguns tópicos polêmicos que servirão como pontos de partida para uma abordagem analítica do tema escolhido. E leu um resumo digitado em duas laudas de papel A-4; depois interrogou os presentes com o olhar.
Um dos ouvintes comentou:
- No seu relato evidencia-se o potencial conflituoso entre os aspectos imediatos e transcendentais, respectivamente egoístas e éticos, das aspirações individuais. Estes  aspectos conflitam muitas vezes e devem ser trabalhados até a elaboração do comportamento ético justificado por um valor absoluto. Trabalho que implica no disciplinamento do egoísmo para garantir a harmonia das relações sociais. Sem esta disciplina, a satisfação descontrolada dos interesses individuais imediatos dá lugar a injustiças sociais que prejudicam pessoas ou grupos. No plano econômico os privilégios de uma minoria  acabam criando um fosso entre os ricos e os pobres. Para contornar as consequências das injustiças e desequilíbrio social tem-se apelado, historicamente, para o controle do Estado político no sentido de garantir os direitos fundamentais a todos os cidadãos. Nessa perspectiva não ficou muito claro para mim seu posicionamento com respeito à solução do conflito entre os interesses individuais e a dinâmica social.
O companheiro alvo do comentário retrucou:
- Já foi dito, que a dificuldade de os homens autodisciplinarem-se ensejou a necessidade da intervenção de uma autoridade externa no processo socioeconômico. Não me posicionei sobre a maior ou menor intervenção do Estado político na vida social e econômica porque a minha função hoje é a de provocar. Mas endosso a orientação humanística que você sinalizou ao apontar o esforço a ser empreendido a fim de alcançar o equilíbrio entre as demandas individuais e sociais, em função de um valor ético universal.  
Na sequência, o seu comentarista acrescentou:
- Conquistar para todos os homens condições humanas de vida, anulando as diferenças financeiras e culturais entre as “classes sociais” será sempre um objetivo nobre e consistente. Só temo as consequências da associação inadvertida do ideal socialista com uma tese materialista como faz Marx! Esta associação é muito restritiva, e prejudicial ao desenvolvimento do humanismo integral.
O autor do texto lido concordou e ajuntou:
– Aliás, é bom deixar claro desde agora que se equivoca aquele que reduz o problema social a uma questão puramente material. Estou convencido de que vitoriosa a revolução social nos termos marxistas, o problema existencial persistiria! Mesmo bem alimentado, abrigado, assistido, o homem continuaria a se perguntar sobre como tudo começou e como terminará o mundo visível; permaneceria curioso sobre o sentido da sua própria vida, incomodado com a consciência angustiante da sua própria finitude incontornável! Curiosidades e vivência que são motivos de sobra para alimentar a angústia existencial que tortura o ser consciente e exigem elaborações plausíveis. Uma prova disso é a alta  frequência de suicídios nos países desenvolvidos nos quais os problemas sociais básicos estão resolvidos. Curiosamente, uma frequência equivalente à de homicídios nos países subdesenvolvidos! Estou convencido de que no plano pessoal mais profundo, o alimento espiritual de que precisa o homem para agir eticamente e libertar-se da angústia existencial é uma experiência mística que lhe satisfaça a dimensão transcendental da existência.
            Iniciada a discussão, as intervenções se multiplicaram, e os comentários paralelos atropelaram o debate. Acalmados os ânimos, o mais sisudo do grupo manifestou sua opinião:
– Concordo com o pronunciamento que acabamos de ouvir. A satisfação das necessidades primárias do homem não basta. Impõe-se uma prática ética humanística que sacie harmoniosamente a fome do corpo e da alma. O conflito entre as demandas individuais e sociais é emblemático e exige um posicionamento honesto. Historicamente é notório que para atingir as metas materiais colimadas, o estatuto socialista mais radical justifica todos os meios. Dessa forma, a dinâmica político-social adotada pelo ativista marxista-leninista desfigura os princípios humanísticos integrais fundamentados na prioridade do exercício da consciência livre e responsável. A ditadura do proletariado perdeu-se num passado distante. Mas a sombra deste passado ainda amedronta os grupos radicais conservadores. Urge estimular o convívio democrático e solidário evolutivo. Gandhi resumiu magistralmente a metodologia capaz de conduzir o aprimoramento das transformações sociais necessárias ao desenvolvimento da humanidade: “É preciso ser a mudança que queremos ver no mundo a fim de contribuir para a construção de uma verdadeira comunidade humana”. E isso exige autenticidade e determinação.
Um dos componentes do grupo que se mantivera calado até então falou:
– Nesses termos a questão fica muito bem posta. Aliás, complementando o que ficou dito, acho pertinente definir um parâmetro avaliativo universal a fim de estimar o ideal do comportamento humanístico integral. Na minha apreciação a ordem evolutiva centrada na construção da comunidade humana seria o referencial padrão-ouro para a caracterização da missão evolutiva histórica do homem. Essencialmente, na trilha do ideal comunitário a verdade ética estaria sempre associada à solidariedade livremente escolhida e praticada.
Retomando o debate, o mais velho do grupo interveio reportando-se ao depoimento anterior.
- Isso faz sentido. Os valores inerentes à proposta evolutiva que objetiva a comunidade humana deverão ser considerados referenciais seguros para distinguir o certo e o errado nos modelos que plasmam as relações sociais. A coerência ética em relação ao existir pleno solidário só será uma realidade no seio da comunidade humana. Portanto é nesse sentido que a humanidade deve caminhar. Em  verdade o homem é capaz de amar e de odiar, de criar e destruir, de aderir à verdade ou à mentira! E será, afinal, o resultado de suas escolhas. Nessa perspectiva não é mais um ser natural, porém um ser de cultura. Quando falamos do existir pleno, estamos conceituando uma construção cultural (a existência) e não um evento natural (o simples ato de viver). Os valores que satisfazem a prática solidária são os marcos regulatórios desta construção.
 Um dos presentes comentou oportunamente:
- Aliás, no contexto existencial já está implícita a relação eu-tu que é o cerne da própria dimensão social solidária do homem. O “eu” não existe sem o “tu”. Da relação harmoniosa de ambos resulta o “nós” que abre a porta para uma sólida interação comunitária. A corresponsabilidade dos indivíduos os obriga a respeitarem-se e, na melhor hipótese, a serem solidários. O comportamento regido por uma moral humanística nunca se alinha com fins alheios à dignidade pessoal. Portanto, só a ética solidária garante o padrão ouro das relações sociais humanas. Não  podemos esperar que a sociedade feita de indivíduos assuma formas cada vez mais perfeitas, enquanto os indivíduos fenecem descaracterizando-se eticamente, visto que o comportamento ético é a forma de ser peculiar do homem. A existência sem a empolgação  com o ideal moral solidário vira uma rotina pueril que beira o ridículo.
O autor do texto em discussão retomou a palavra:
- Certo. Estamos sempre em processo de mudança. E para mudar evolutivamente, mais importante do que teorizar sobre os valores ideais, é que cada um os pratique de forma plena no convívio com os outros.  Resumindo, é fundamental que cada um incorpore em si mesmo um protótipo humano que reúna a competência necessária para distinguir o maior número de alternativas nas várias situações vividas, e a aptidão para selecionar consciente e responsavelmente aquela (alternativa) que melhor convier aos propósitos comunitários. A maturidade humana é alcançada com a total consciência do indivíduo de estar em processo de mudança, permanentemente aberto a qualquer experiência nova que reforce os valores comunitários básicos. Nesse sentido é preciso que cada um confie no próprio julgamento, capaz de assumir atitudes éticas, sem rigidez ou insegurança.  Nessa perspectiva, as decisões pessoais podem conflitar com os cânones sociais eventualmente defasados por sua própria inércia histórica, criando obstáculos às mudanças necessárias. Muita calma e ponderação nessa hora. A ação reformadora que vai além dos limites do padrão cultural vigente, não pode perder o foco do ideal comunitário universal. E, fiel a este ideal, quando necessário o indivíduo precisa ter a coragem de reformular comportamentos que se demonstram incapazes de promover níveis mais elevados de integração comunitária. De outra forma jamais teriam ocorrido as transformações sociais indispensáveis à própria Evolução. Um observador simples e virtuoso, intuitivo, sábio diria que o  caminho ideal desta conquista é a prática do amor caridade entendido como um sentimento calmo, duradouro desinteressado, criativo, que não faz exigências, indulgente, respeitoso, responsável, que nasce do conhecimento profundo do ser amado!
Já era tarde quando os amigos se despediram até um próximo encontro. 

Everaldo Lopes