quinta-feira, 5 de maio de 2011

Quem somos nós?


A condição humana define-se pelo exercício consciente e responsável da liberdade. A consciência reflexiva libertou a Evolução dos determinismos físico-químicos e biológicos. O processo passou a ser conduzido pela inteligência e capacidade criativa do homem... funções psíquicas superiores que transcendem a complexidade psicobiológica pelas quais se revelam. A consciência inteligente sobrepôs-se, pelo conhecimento racional, à inteligência instintiva. Mas a capacidade cognoscitiva do homem não reconhece as essências... o conhecimento racional é fenomênico, sempre aproximativo, não comporta certezas absolutas. Para dar continuidade ao processo evolutivo, o ser consciente desafia os obstáculos à sua jornada existencial fazendo escolhas cuja legitimidade depende da integridade e universalidade dos critérios utilizados. Na esteira destas escolhas vai se construindo uma cultura de valores da qual o homem participa como ator e mentor, simultaneamente.
Ao despertar, a consciência reflexiva fica desamparada no Universo misterioso e indiferente à sua presença. Mas a vontade impulsiona a “existência”[1], tirando sua força de um núcleo pessoal misterioso que nutre expectativas, e acredita, tem fé no seu próprio projeto.
Por sua finitude desamparada, o homem não passa de um animal que ganhou subjetividade consciente. Mas neste retiro interior diferenciou-se, desenvolveu a habilidade de simbolizar idéias e confrontá-las... Aprendeu a ler as leis que governam o mundo, e, manipulando este conhecimento tornou-se capaz de dominar a Terra em benefício próprio... produzindo artefatos para seu conforto, e realizando mega-projetos arquitetônicos e industriais para fins específicos. Erigiu a cultura que o contextualiza, e continua desbravando esse mundo cheio de surpresas. Não sabe quem lhe tomará o bastão nesta “corrida de revezamento”[2], mas crê em que alguém o fará. Ao participar da aventura da vida sabe que nascimento e morte são ocorrências cotidianas... mas a “corrida” continua... tudo impulsionado pela fé na capacidade de conquistar o Universo.
O homem, por sua condição consciente e livre é um estranho no mundo. E quando isolado do seu contexto civilizacional, sem as amarras culturais criadas por ele mesmo, apresenta-se ora cômico, ora trágico, ora ridículo. Só no congraçamento comunitário sua existência ganha um sentido nobre,  e assume a dignidade que lhe cabe.
Rigorosamente, transcender é o dinamismo básico da consciência, e, portanto, o homem estaria sempre, em tese, a serviço de um bem maior, transcendendo-se. Esta capacidade permanente de superação lhe confere uma dignidade específica. Mas há defecções inerentes à imperfeição do ser humano... A assimilação de um sentido para a “existência” é o arremate definitivo da humanização. Nesta perspectiva a razão é uma arma poderosa, mas, sozinha não basta... a assimilação pessoal do “sentido” arrimado em valores não é uma operação racional, porém afetiva e intuitiva... depende mais de uma crença do que de um conhecimento. Arrisco-me dizer, pois, que só a salva o homem de “ser para nada” (ausência de sentido), ou seja, de existir como uma aberração no Universo indiferente ao seu destino... Mas a fé é um dom fugidio que precisa ser alimentado com humildade e talento criativo. Este processo exige do ser consciente sensibilidade ética e disposição consciente responsável para trilhar os caminhos da verdade e da justiça... e ao apelo desses valores no devir histórico de cada um, os homens respondem diferentemente, revelando  fraqueza  ou grande firmeza de caráter.
A pergunta “Quem somos nós?” permanece um enigma cuja interpretação dependerá do roteiro do nosso próprio ser histórico. Detemos o poder de construir-nos, responsavelmente, como seres livres voltados para objetivos que nos transcendem. E assim fazemos a História. Então, como pivô da História o homem pode transformá-la num poema épico ou numa piada de mau gosto, tornando-se, ele próprio, respectivamente, herói ou farsante. A escolha é pessoal, mas depois de a orientação implícita (na escolha) ganhar foro cultural, (assumida pelo grupo, por unanimidade ou maioria) passa a influir nas decisões individuais. Cada um será aquilo a que se determinar “ser”, mas não pode esquivar-se da influência de sua cultura... Sem perder de vista, porém, que não alcançará a humanidade plena se não se integrar num projeto comunitário universal... É indispensável, portanto que insira na cultura da qual é também mentor, a solidariedade como um valor fundamental. O que somos está inscrito na sociedade na qual nos contextualizamos. Porque é na relação com o “outro” que se define a humanidade. Sozinho, o homem não alcança realizar-se como pessoa porque a constituição do “eu” subentende a relação com um “tu”... portanto a realidade pessoal inclui o outro, necessariamente. A intersubjetividade é a experiência psicossocial na qual se insere a “pessoa”. Como pessoa cada um é o resultado da interação entre a subjetividade individual (“eu”) e a circunstância[3] centrada no “tu”.
Acabamos por compreender que a pergunta “quem somos nós?” não tem uma resposta conceitual, mas nos coloca diante de um dinamismo que leva a realidades diferentes. Somos potencialidades, ou possibilidades que se atualizam num contexto definido por valores assumidos responsavelmente. O homem cria “valores” em torno dos quais constrói sua existência, e estes valores definem o que será,  delimitando o espaço subjetivo do livre arbítrio. Todavia, é notório que dentre as escolhas possíveis, a prática da solidariedade é fundamental para consubstanciar a comunidade humana. E disto depende a sobrevivência do  Homo sapiens sapiens.
                        Everaldo Lopes



[1] Modo de ser próprio do homem
[2] Ver texto publicado neste blog “Corrida de revezamento”.
[3] Lembro aqui o que diz Ortega y Gasset: “ Eu sou eu e minha circunstância”.