Os Evangelhos encerram
valores morais e a promessa de salvação eterna a troco da adesão existencial às
verdades reveladas. As Igrejas se fazem guardiãs desta verdades e se propõem
divulga-las. A proposta contida nas suas homilias subentende, também, boa sorte
nos negócios, saúde pessoal e familiar. Estas expectativas identificam-se com a
ideia de “ter mais”. Todavia o propósito central da pregação é estimular a determinação
pessoal de “ser mais” através da prática do amor dos homens entre si e a Deus
sobre todas as coisas. Este objetivo grandioso tropeça em dificuldades. A
pregação não tem força para inspirar amor e
solidariedade. Diga-se a propósito, a bem da verdade: o amor não se
ensina. Não há como fazê-lo brotar no espírito de alguém se ele já não estiver
lá à espera de uma oportunidade para manifestar-se. São notórias as limitações
pedagógicas da ensinança de uma mensagem existencial de amor. Aliás, em si
mesma a mensagem é apenas um recado verbal ou escrito; a internalização[1] pessoal do seu conteúdo
é que não se ensina e faz a diferença
nos processos de individuação e socialização do homem. Em face da dificuldade de promover motivação eficaz
para as práticas virtuosas (que sempre exigem mobilização da vontade, quando
não são espontâneas) os pregadores acabam enfatizando o castigo ao qual se
expõem os pecadores. E o sermão dos pastores assume um tom moralista,
focalizando valores éticos cuja transgressão caracteriza o pecado.
Embora não se possa
projetar uma pedagogia do amor[2], é imperativa a adoção
de modelos de homilia que ponham o indivíduo a discutir consigo mesmo sua intimidade
essencial com Deus, numa perspectiva comunitária. O Grande Mestre utilizava
parábolas para doutrinar seus discípulos, levando-os a refletir acerca da
narrativa alegórica...
Nas práticas eclesiais incidem
outras dificuldades além das pedagógicas. Por exemplo, o processo de captação
dos recursos materiais para custeio da manutenção do culto enseja interpretação
ambígua. E para os fieis criticamente
conscientes é difícil desfazer a perplexidade. Em outras palavras, as igrejas
têm necessidade de numerário para manter seus serviços. Isso as leva a pedir
donativos. Tudo bem. Mas a pretexto de custear a “onerosa” pregação do
Evangelho que hoje utiliza tecnologia dispendiosa (Rádio, TV etc.) muitos pastores
insistem na importância da ajuda financeira solicitada, envolvendo os fieis com
um discurso aliciador que os faz sentirem-se obrigados a contribuir regularmente.
Este apelo insistente gera recursos superavitários. Assim, a cobrança feita aos
fieis pode parecer cavilosa, configurando-se formalmente como comércio promissor,
num casamento bastardo entre espiritualidade e capitalismo. Lamentavelmente, os
excessos de receita se confirmam veiculados pela mídia em notícias que dão
conta do acúmulo de fortunas vultosas por supostos “líderes espirituais”. É
fácil entender a generosidade dos fieis. Excluída uma minoria capaz de elaborar
juízo crítico esclarecido, o homem comum, ameaçado pela instabilidade e
incertezas do seu vir a ser, sufocado pela angústia existencial, ao procurar
abrigo espiritual nas Igrejas fica vulnerável ao pedido de ajuda dos pregadores,
e assume docilmente a obrigação “sagrada” de ofertar dinheiro para manter os
serviços de sua Igreja. Conta com o benefício de incluir-se num grupo de irmãos
pela fé, que lhe confere um sentimento de identidade social, aquietador, e a segurança
da garantia anunciada de proteção divina justa e providente. Todavia face à
notícia de desvios indevidos é difícil para o fiel certificar o destino real de
sua doação...
Não obstante a verdade
de tudo que dissemos até agora cabe aqui uma consideração importante. Ora, a
angústia existencial é universal e expõe o homem a utilizar os recursos
disponíveis para amenizá-la, inclusive os espúrios (uso das drogas, mergulho na
luxúria desenfreada, e outros procedimentos marginais). Por isso, apesar da
constatação da fragilidade doutrinária e do “comércio da fé” nas práticas de muitas
igrejas somos obrigados a reconhecer que os comportamentos alternativos para
driblar a angústia existencial são mais lesivos à integridade da condição
humana do que a prática “religiosa”. Ainda que esta viabilize interesses
paralelos pela manipulação da credulidade dos fieis, habitualmente a filiação a
um credo religioso condiciona os seguidores ao comportamento social ordeiro, dentro
de uma proposta de aprimoramento pessoal. Salvo os casos deploráveis historicamente
registrados de rivalidades e até de lutas sangrentas entre grupos religiosos de
diferentes denominações. Afinal as Igrejas são instituições humanas!
Em resumo, o “comércio
da fé” no âmbito das igrejas é escandaloso do ponto de vista místico, porém para
o indivíduo e para a sociedade é ainda preferível em relação aos procedimentos alternativos
imprudentemente utilizados para espantar a angústia existencial. A encarnação do
amor a Deus na prática do amor ao próximo é a única forma idônea de promover
uma relação verdadeira com a divindade e banir a ansiedade que ronda a
existência consciente da própria finitude. Então, o alvo primário da pregação
religiosa deverá convergir para a estruturação solidária das relações humanas. Neste
contexto, o primeiro passo é a prática do respeito recíproco e da
responsabilidade entre pessoas unidas pela participação solidária na condição
humana. Esta experiência ainda pode resultar, inicialmente, de um ato de
vontade impulsionado pelo exercício coerente da razão. Ora este primeiro passo é
essencial na construção existencial do amor[3] e configura um link
entre o dever ainda controlado pela vontade e o amor soberano... Pode-se impor
o dever por um ato de vontade, mas não se pode amar por imposição... Portanto,
a absorção existencial do comportamento respeitoso e responsável poderá ser uma
ponte para o amor fraterno, fundamento da solidariedade humana.
A propósito da luta comum
a todos os homens para vencer a angústia existencial vale a pena assinalar o
papel da “liberdade” na evolução desta problemática. Na discussão do
comportamento humano é fundamental a distinção entre a “liberdade de”, e a
“liberdade para”. A primeira (liberdade de) liberta o homem da tirania dos
“dogmas” e das crendices, deixando-o livre para conduzir suas virtualidades
espirituais, responsavelmente, no sentido de tornar-se alguém diferente,
espera-se para melhor, mais veraz e mais justo. A segunda (liberdade para) implica
na disponibilidade de o homem escolher e cultivar no seu comportamento a
verdade, a justiça e a beleza, valores emblemáticos da existência plena. A má
administração da “liberdade para” perverte a prática do livre arbítrio e prejudica
a integração social. Conquista-se a “liberdade de” mediante um trabalho subjetivo
de autoconhecimento e superação de bloqueios psíquicos. Exercita-se a
“liberdade para” pela determinação voluntária de praticar os valores que
dignificam o homem. Enquanto o homem não é “livre de”, não tem autonomia, não
se pode responsabilizá-lo; mas quando o é torna-se “livre para”, assumir
escolhas e decisões que demandam uso inteligente do conhecimento, da criatividade
e da vontade resoluta.
Historicamente as
Igrejas tentam institucionalizar mensagens existenciais, com o propósito de assegurar
aos homens uma orientação correta e o destino transcendental de plenitude. Sabe-se
todavia que não se pode institucionalizar a internalização de uma mensagem
existencial. E o fracasso desta introjeção tem transformado práticas
existenciais de caráter supostamente religioso, místico, numa práxis de caráter
ético que não satisfaz aos anseios mais profundos da espiritualidade, mas representa
a rotina da maioria dos que frequentam as igrejas. Este fato reflete uma
subversão do comportamento verdadeiramente religioso. É necessário o
reconhecimento de que só um ato de amor fundamenta a fé inabalável num Deus
pessoal que se interessa por sua criatura, e tranquiliza o homem ante a
insegurança da própria finitude e fragilidade moral. Em verdade só a intimidade
amorosa com Deus é capaz de promover a plena realização do ser humano; este é o
cerne da prática religiosa. O comportamento ético será apenas consequência desta
realização e não uma finalidade em si mesmo. Portanto, o encontro místico implica
necessariamente na “existência” eticamente exemplar, mas a recíproca não é
verdadeira. A confusão destas situações torna a prática religiosa ambígua e,
muitas vezes, equivocada.
Everaldo Lopes
[1] Trazer para dentro de si,
incorporar ao seu mundo interior aquilo que é exterior
[2] Os procedimentos
pedagógicos do amor são praticados no lar, na escola, nas instituições sociais,
mas se resumem em qualquer destas situações a um comportamento inclusivo e
generoso; remetem mais ao exemplo do que ao discurso.
[3] Não há amor sem respeito e
responsabilidade