sexta-feira, 4 de novembro de 2016

O luto, consumação de uma expectativa incômoda



Ouve-se o grito lancinante de uma criança. Segue-se um silêncio inquietante. Num átimo a imaginação fantasia as possíveis causas trágicas desse clamor. Felizmente, nada de mal aconteceu. O menino que começava a andar apenas caíra e feriu levemente o cotovelo. A mãe acode o filho querido. O pequeno carente de atenção abraça-a como se fora seu último refúgio. A partir desta ocorrência inesperada a criança começa a descobrir, embora sem a consciência clara de sua identidade psicológica nascente, que o mundo não é uma extensão dela mesma;  sente-se confusamente desamparada no meio de circunstâncias adversas e começa a temer que o pior pode acontecer.  Momentaneamente, a solicitude da mãe, cuidadora atenciosa e carinhosa devolve à criança a paz  que lhe fugira por momentos.
Décadas depois o adulto  em que se tornou aquela criança ainda guarda no inconsciente a repercussão dessa experiência infantil. Não como lembrança do acontecimento, mas como uma vivência remanescente que potencializa a angústia atual de reconhecer sua própria fragilidade e o limite irrevogável da existência temporal. Essa turbulência psíquico-afetiva se esconde momentaneamente na paz da intimidade solidária dos familiares e amigos; mesmo assim, o adulto aparentemente tranquilo resgata apenas parcialmente a autoconfiança e a paz existencial diante do temor a que leva a expectativa inquietante do inesperado e da morte.
 Depois que perdemos a inocência da criança que fomos um dia, nunca mais nos libertamos das malhas da incerteza de um vir a ser sobre o qual não temos inteiro controle. Insegurança que se reflete no zelo e ternura dedicada aos nossos ancestrais queridos ainda vivos, supostamente, mais próximos de acontecimentos indesejáveis. Buscamos então um antídoto eficaz para o mal estar que causa a imprevisibilidade do porvir. Mas, na prática não há solução definitiva controlável para essa inquietação. A atitude mística de entregar a própria vida a um absoluto todo poderoso perfeito e misericordioso é a única  postura capaz de conferir a paz desejada pelo ser consciente da própria fragilidade e finitude. Mas para tanto é preciso incorporar visceralmente a certeza de fé neste absoluto intangível e no seu amor misericordioso incondicional. Só n´Ele encontraríamos, finalmente a plenitude do “ser”.
Pode-se inferir especulativamente a necessidade lógica de um Deus, mas essa fé filosófica não acalma o espírito. A entrega mística exige fé profunda. Todavia, como um dom, a virtude de uma crença inabalável não pode ser imposta. Apenas podemos deixar-nos vulneráveis ao sentimento de entrega total, confiantes na misericórdia infinita do absoluto ao qual estamos entregando a própria vida.
O abismo entre a vida e a morte é insondável. Essa ruptura total encerra a impossibilidade de descrever qualquer laço objetivo entre a vida e a morte - ou não vida biológica. Apenas sabemos que para viver cada segundo é preciso morrer este segundo. O que equivale dizer que morrer cada instante é condição para viver o momento em que se está morrendo, até exaurir todos os potenciais biológicos do organismo vivo, indispensáveis  à manutenção das funções vitais. Entrementes este saber não nos chama a atenção o tempo todo; geralmente vivemos como se fôssemos eternos, até que um acidente ou doença nos tire da zona de conforto.
No desdobramento existencial do homem, é no abismo insondável que separa a morte e a vida onde nasce a ideia do espírito. Para anular a ruptura entre a vida e a morte o homem cria um vínculo essencial entre o material e o imaterial admitindo que um sopro divino criador deva perpassar o mundo visível e aparente cuja complexidade crescente enseja a manifestação do Espírito eterno.
“No princípio era o verbo e o verbo era Deus”. A Bíblia Sagrada resume dessa forma a origem de tudo. Aristóteles fala da necessidade lógica de um motor não movido, traduzindo em termos filosóficos a proposta bíblica. E a ciência fala de uma explosão inicial, o big-bang, a partir da qual estava criada a matéria; então começou a ser possível dimensionar o tempo e o espaço. São inacessíveis ao conhecimento científico os antecedentes deste fenômeno que ocorreu há mais de treze bilhões e oitocentos milhões de anos, segundo cálculos aproximados dos astrofísicos. Mas a organização crescente da matéria primitiva caótica, desde os primeiros segundos após o big bang faz pressupor a intenção que visa uma complexidade crescente. Ora, a intenção só existe na esfera da consciência. Portanto impõe-se a ideia de uma consciência universal que desde sempre acolheu o propósito da criação dos mundos e do homem. Conceito assimilável ao Espírito criador que envolve o antes e o depois da grande explosão anunciada pelos astrofísicos.  A esta altura o homem começa a filosofar, especulando a partir dos dados conhecidos.
Porém por mais coerente que seja uma especulação não passa de investigação teórica sem evidência sólida. E dessa forma sua conclusão se confunde com uma verdade de fé. Para ganhar força com repercussão na vida pessoal de qualquer um de nós esta verdade tem que ser incorporada visceralmente. Não existe, porém, uma pedagogia infalível para a conquista da fé; esta é um dom que como o amor arrebata o ser consciente sem pedir permissão e o transforma. É dessa forma que o homem de fé se dá conta do sopro divino que perpassa toda  criação e se torna dócil ao seu comando sem abdicar da liberdade de criatura. Vivência indispensável para legitimar o gesto de entrega do ser consciente aos desígnios do misericordioso amor de Deus. Este sim, amparo incomparável para os momentos de dor em que mergulhamos, diante da morte de um ente querido. Privados, definitivamente, de sua presença física, nos amparamos na certeza de ser “um” com ele na unidade absoluta de Deus. Nessa perspectiva não o perdemos, amparando-nos na esperança de encontrar-nos todos transfigurados e integrados na perfeição absoluta do ser infinito, o Deus uno, criador de todas as coisas. Animados pela confiança nesta unidade, ao consumar-se, a expectativa indesejável se torna menos doloroso o luto pela perda irreparável dos que amamos e partem para sempre.
Everaldo  Lopes