Ouve-se o
grito lancinante de uma criança. Segue-se um silêncio inquietante. Num átimo a
imaginação fantasia as possíveis causas trágicas desse clamor. Felizmente, nada
de mal aconteceu. O menino que começava a andar apenas caíra e feriu levemente
o cotovelo. A mãe acode o filho querido. O pequeno carente de atenção abraça-a
como se fora seu último refúgio. A partir desta ocorrência inesperada a criança
começa a descobrir, embora sem a consciência clara de sua identidade
psicológica nascente, que o mundo não é uma extensão dela mesma; sente-se confusamente desamparada no meio de
circunstâncias adversas e começa a temer que o pior pode acontecer. Momentaneamente, a solicitude da mãe, cuidadora
atenciosa e carinhosa devolve à criança a paz
que lhe fugira por momentos.
Décadas depois
o adulto em que se tornou aquela criança
ainda guarda no inconsciente a repercussão dessa experiência infantil. Não como
lembrança do acontecimento, mas como uma vivência remanescente que potencializa
a angústia atual de reconhecer sua própria fragilidade e o limite irrevogável
da existência temporal. Essa turbulência psíquico-afetiva se esconde
momentaneamente na paz da intimidade solidária dos familiares e amigos; mesmo
assim, o adulto aparentemente tranquilo resgata apenas parcialmente a autoconfiança
e a paz existencial diante do temor a que leva a expectativa inquietante do
inesperado e da morte.
Depois que perdemos a inocência da criança que
fomos um dia, nunca mais nos libertamos das malhas da incerteza de um vir a ser
sobre o qual não temos inteiro controle. Insegurança que se reflete no zelo e ternura
dedicada aos nossos ancestrais queridos ainda vivos, supostamente, mais
próximos de acontecimentos indesejáveis. Buscamos então um antídoto eficaz para
o mal estar que causa a imprevisibilidade do porvir. Mas, na prática não há
solução definitiva controlável para essa inquietação. A atitude mística de entregar
a própria vida a um absoluto todo poderoso perfeito e misericordioso é a
única postura capaz de conferir a paz
desejada pelo ser consciente da própria fragilidade e finitude. Mas para tanto
é preciso incorporar visceralmente a certeza de fé neste absoluto intangível e
no seu amor misericordioso incondicional. Só n´Ele encontraríamos, finalmente a
plenitude do “ser”.
Pode-se
inferir especulativamente a necessidade lógica de um Deus, mas essa fé
filosófica não acalma o espírito. A entrega mística exige fé profunda. Todavia,
como um dom, a virtude de uma crença inabalável não pode ser imposta. Apenas
podemos deixar-nos vulneráveis ao sentimento de entrega total, confiantes na
misericórdia infinita do absoluto ao qual estamos entregando a própria vida.
O abismo entre
a vida e a morte é insondável. Essa ruptura total encerra a impossibilidade de
descrever qualquer laço objetivo entre a vida e a morte - ou não vida biológica.
Apenas sabemos que para viver cada segundo é preciso morrer este segundo. O que
equivale dizer que morrer cada instante é condição para viver o momento em que se
está morrendo, até exaurir todos os potenciais biológicos do organismo vivo, indispensáveis
à manutenção das funções vitais. Entrementes
este saber não nos chama a atenção o tempo todo; geralmente vivemos como se
fôssemos eternos, até que um acidente ou doença nos tire da zona de conforto.
No
desdobramento existencial do homem, é no abismo insondável que separa a morte e
a vida onde nasce a ideia do espírito. Para anular a ruptura entre a vida e a
morte o homem cria um vínculo essencial entre o material e o imaterial admitindo
que um sopro divino criador deva perpassar o mundo visível e aparente cuja
complexidade crescente enseja a manifestação do Espírito eterno.
“No princípio
era o verbo e o verbo era Deus”. A Bíblia Sagrada resume dessa forma a origem
de tudo. Aristóteles fala da necessidade lógica de um motor não movido, traduzindo
em termos filosóficos a proposta bíblica. E a ciência fala de uma explosão
inicial, o big-bang, a partir da qual estava criada a matéria; então começou a
ser possível dimensionar o tempo e o espaço. São inacessíveis ao conhecimento
científico os antecedentes deste fenômeno que ocorreu há mais de treze bilhões
e oitocentos milhões de anos, segundo cálculos aproximados dos astrofísicos. Mas a organização crescente da matéria
primitiva caótica, desde os primeiros segundos após o big bang faz pressupor a
intenção que visa uma complexidade crescente. Ora, a intenção só existe na
esfera da consciência. Portanto impõe-se a ideia de uma consciência universal
que desde sempre acolheu o propósito da criação dos mundos e do homem. Conceito
assimilável ao Espírito criador que envolve o antes e o depois da grande
explosão anunciada pelos astrofísicos. A
esta altura o homem começa a filosofar, especulando a partir dos dados
conhecidos.
Porém por mais
coerente que seja uma especulação não passa
de investigação teórica sem evidência sólida. E dessa forma sua conclusão se
confunde com uma verdade de fé. Para ganhar força com repercussão na vida
pessoal de qualquer um de nós esta verdade tem que ser incorporada visceralmente.
Não existe, porém, uma pedagogia infalível para a conquista da fé; esta é um
dom que como o amor arrebata o ser consciente sem pedir permissão e o transforma.
É dessa forma que o homem de fé se dá conta do sopro divino que perpassa
toda criação e se torna dócil ao seu
comando sem abdicar da liberdade de criatura. Vivência indispensável para
legitimar o gesto de entrega do ser consciente aos desígnios do misericordioso
amor de Deus. Este sim, amparo incomparável para os momentos de dor em que mergulhamos,
diante da morte de um ente querido. Privados, definitivamente, de sua presença
física, nos amparamos na certeza de ser “um” com ele na unidade absoluta de
Deus. Nessa perspectiva não o perdemos, amparando-nos na esperança de encontrar-nos
todos transfigurados e integrados na perfeição absoluta do ser infinito, o Deus
uno, criador de todas as coisas. Animados pela confiança nesta unidade, ao
consumar-se, a expectativa indesejável se torna menos doloroso o luto pela
perda irreparável dos que amamos e partem para sempre.
Everaldo Lopes