sábado, 17 de agosto de 2013

Todos somos responsáveis



Considerando apenas a relação linear entre dois eventos subsequentes imediatos, pode-se imaginar com alguma verossimilhança a conexão entre causa e efeito no processo em questão. Porém, quando se considera a influência das ocorrências colaterais e pregressas, multiplicam-se as variáveis que compõem a rede de causas entremeadas, suprimindo-se a certeza do encadeamento entre causa e efeito no fenômeno observado. Isso acontece na complexidade do nosso universo humano. Face à impossibilidade de integrar todas as variáveis causais de um evento, não o podemos prever com certeza. Numa complexidade[1] a relação de causa e efeito fica diluída. Então, dado que tudo tem a ver com tudo, a imprevisibilidade do desdobramento do vir a ser contingente se torna evidente. Sob uma visão complexa da realidade, é problemática qualquer avaliação antecipada do resultado da integração de todos os fatores influentes possíveis na emergência de cada evento. Com o advento da consciência e da liberdade abre-se uma janela para a criatividade humana que introduz elementos novos na evolução dos acontecimentos. Por isso cresce a imprevisibilidade do vir a ser histórico. No universo das relações humanas, o exercício da liberdade sobreleva-se aos determinismos cósmicos, ampliando as fronteiras do possível até então. Só para exemplificar. De um homem amadurecido espera-se um comportamento equilibrado. Todavia, não obedecendo rigorosamente aos determinismos biológicos psicossociais, ele pode reagir violentamente, de forma inesperada, a uma palavra perturbadora (para ele) no desenrolar de uma conversa aparentemente inocente. Visando sua reação, isoladamente, tudo acontece de forma inusitada, inexplicável porque a simples sucessão de dois momentos subsequentes inerentes à situação em foco é insuficiente para a compreensão da realidade complexa. Contudo, contextualizando a turbulência do comportamento insólito daquele homem, habitualmente calmo, na complexidade da rede infinita de influências envolvendo suas experiências pregressas e colaterais, poder-se-ia descobrir a razão verdadeira do seu comportamento inusitado. As experiências vividas deixaram marcas influentes na maneira de aquele homem experiente, ponderado, interpretar o estímulo provocador do seu comportamento atual diferente do habitual. Estas influências esquecidas no inconsciente o teriam predisposto a maior sensibilidade diante de estímulos evocadores das emoções suscitadas por uma experiência anterior marcante, induzindo comportamentos inesperados. Os estímulos capazes de despertar variações incomuns da conduta podem estar relacionados com o conteúdo do evento em curso ou com a maneira de proceder dos interlocutores envolvidos. A sensibilidade exaltada também pode reagir anomalamente à postura, à simples atitude reticente de um deles, ao seu tom de voz, interpretando-os como agressivos, o que resulta numa resposta inesperada. Então, o acontecimento inusitado no presente que, isoladamente, parecera inexplicável se torna uma probabilidade previsível.
O reconhecimento da complexidade psicossocial causal do comportamento humano justifica duas afirmações que ouvimos com certa frequência, muitas vezes repetidas num tom de sabedoria impenetrável: “Nada acontece por acaso” e “Não há castigos, há consequências”. Estas afirmações remetem à ideia que a realidade é una e não se pode avaliar qualquer fato isolado do seu contexto histórico. Embora, para fins práticos, as limitações do raio de observação do sujeito consciente obriguem, até juridicamente, a restringir a avaliação das ações pessoais inteiramente aos seus atores e às circunstâncias mais próximas, ignorando a influência das anteriores e colaterais. Obviamente a responsabilidade dos atores destas ações, se analisada no contexto da complexidade histórico-evolutiva ficaria diluída entre tantos outros (atores) que se chegaria à conclusão que, evolutivamente, todos somos responsáveis direta ou indiretamente por tudo que acontece. Tendo em vista o ideal de justiça absoluta não se teria como dosar, rigorosamente, o grau de culpa de cada um diante do crime de que alguém é acusado. Nem o próprio réu seria capaz de avaliar as influências que o levaram ao desfecho criminoso. Isso não o inocenta, mas alerta para o grau de responsabilidade de quantos ao correr da história contribuíram para o crime em julgamento. Sob esta ótica os códigos penais são tentativas práticas necessárias para disciplinar o comportamento humano atual, mas sua aplicação não pode ter a pretensão de fazer Justiça. Numa perspectiva holística a verdadeira justiça envolveria o comprometimento de todos os homens uma vez que na imensa rede de relações sociais e ambientais as ações humanas estão sempre na ponta de um processo multipolar que começou com a emergência da consciência e da liberdade na história da Evolução, e se expandiu através das pessoas, numa cascata de influências, até nossos dias. Para ser integralmente responsável, a prática do livre arbítrio implicaria num alerta absoluto da consciência individual, na tentativa da percepção instantânea de todas as influências convergentes para uma determinada escolha, tarefa que é impossível para as limitações existenciais, pois ultrapassa a condição precária do eu consciente. Mesmo assim os códigos e os consensos consuetudinários[2], apesar de insuficientes são indiscutivelmente necessários para medir as responsabilidades pessoais, e para manter a ordem social.
Todos reconhecem as dificuldades inerentes ao comportamento virtuoso, o que faz sobressair a importância das interdições psicológicas e sociais. Reconhecimento que evidencia ser a humildade a base de todo esforço real para a prática virtuosa. Ninguém está em condições de dizer que nunca errou. Caberia aqui lembrar a sabedoria do Mestre dos mestres quando diante da mulher adúltera desafiou os seus (dela) supostos algozes dizendo: quem nunca pecou atire a primeira pedra. E todos sabem o desfecho desta passagem bíblica.
Essas considerações nos levam a ser mais humildes e compassivos nos nossos julgamentos e ações. Afinal, cada evento está na ponta de um processo do qual não se pode avaliar com precisão a malha das influências que o afetam, a partir das escolhas de quantos participaram retrospectivamente como intermediários desconhecidos, mas influentes na origem do evento atual. Em resumo, do ponto de vista ético evolutivo, considerando a unidade histórica da humanidade, não há como tergiversar diante da participação imediata ou remota de cada um no erro do outro. Se todos estão envolvidos no processo evolutivo ninguém está isento de erro. Só para fins práticos, esgotados os recursos investigativos disponíveis, se convenciona atribuir a culpa do erro a um único indivíduo como executor imediato do crime pelo qual toda humanidade deveria responder. Mas como todo homem pode sempre reavaliar sua conduta e reinventar-se, torna-se soberana a máxima cristã que manda condenar o pecado e perdoar o pecador. A Justiça perfeita é impossível, mas para garantir em nível aceitável o equilíbrio social, “julgar” e “punir” dentro de suas limitações faz parte da precariedade contingente do homem.
                                   Everaldo Lopes


[1] Conjunto de coisas, fatos ou circunstâncias que têm qualquer conexão ou nexo entre si. (Aurélio)
[2] Fundados  nos costumes