Considerando apenas a
relação linear entre dois eventos subsequentes imediatos, pode-se imaginar com
alguma verossimilhança a conexão entre causa e efeito no processo em questão. Porém,
quando se considera a influência das ocorrências colaterais e pregressas, multiplicam-se
as variáveis que compõem a rede de causas entremeadas, suprimindo-se a certeza do
encadeamento entre causa e efeito no fenômeno observado. Isso acontece na complexidade
do nosso universo humano. Face à impossibilidade de integrar todas as variáveis
causais de um evento, não o podemos prever com certeza. Numa complexidade[1] a relação de causa e
efeito fica diluída. Então, dado que tudo tem a ver com tudo, a
imprevisibilidade do desdobramento do vir a ser contingente se torna evidente. Sob
uma visão complexa da realidade, é problemática qualquer avaliação antecipada
do resultado da integração de todos os fatores influentes possíveis na
emergência de cada evento. Com o advento da consciência e da liberdade abre-se
uma janela para a criatividade humana que introduz elementos novos na evolução
dos acontecimentos. Por isso cresce a imprevisibilidade do vir a ser histórico.
No universo das relações humanas, o exercício da liberdade sobreleva-se aos
determinismos cósmicos, ampliando as fronteiras do possível até então. Só para
exemplificar. De um homem amadurecido espera-se um comportamento equilibrado. Todavia,
não obedecendo rigorosamente aos determinismos biológicos psicossociais, ele
pode reagir violentamente, de forma inesperada, a uma palavra perturbadora
(para ele) no desenrolar de uma conversa aparentemente inocente. Visando sua
reação, isoladamente, tudo acontece de forma inusitada, inexplicável porque a simples
sucessão de dois momentos subsequentes inerentes à situação em foco é insuficiente
para a compreensão da realidade complexa. Contudo, contextualizando a turbulência
do comportamento insólito daquele homem, habitualmente calmo, na complexidade da
rede infinita de influências envolvendo suas experiências pregressas e colaterais,
poder-se-ia descobrir a razão verdadeira do seu comportamento inusitado. As experiências
vividas deixaram marcas influentes na maneira de aquele homem experiente, ponderado,
interpretar o estímulo provocador do seu comportamento atual diferente do
habitual. Estas influências esquecidas no inconsciente o teriam predisposto a
maior sensibilidade diante de estímulos evocadores das emoções suscitadas por
uma experiência anterior marcante, induzindo comportamentos inesperados. Os
estímulos capazes de despertar variações incomuns da conduta podem estar
relacionados com o conteúdo do evento em curso ou com a maneira de proceder dos
interlocutores envolvidos. A sensibilidade exaltada também pode reagir
anomalamente à postura, à simples atitude reticente de um deles, ao seu tom de
voz, interpretando-os como agressivos, o que resulta numa resposta inesperada.
Então, o acontecimento inusitado no presente que, isoladamente, parecera inexplicável
se torna uma probabilidade previsível.
O reconhecimento da
complexidade psicossocial causal do comportamento humano justifica duas
afirmações que ouvimos com certa frequência, muitas vezes repetidas num tom de
sabedoria impenetrável: “Nada acontece por acaso” e “Não há castigos, há
consequências”. Estas afirmações remetem à ideia que a realidade é una e não se
pode avaliar qualquer fato isolado do seu contexto histórico. Embora, para fins
práticos, as limitações do raio de observação do sujeito consciente obriguem,
até juridicamente, a restringir a avaliação das ações pessoais inteiramente aos
seus atores e às circunstâncias mais próximas, ignorando a influência das anteriores
e colaterais. Obviamente a responsabilidade dos atores destas ações, se analisada
no contexto da complexidade histórico-evolutiva ficaria diluída entre tantos outros
(atores) que se chegaria à conclusão que, evolutivamente, todos somos responsáveis direta ou indiretamente por tudo que
acontece. Tendo em vista o ideal de justiça absoluta não se teria como dosar,
rigorosamente, o grau de culpa de cada um diante do crime de que alguém é
acusado. Nem o próprio réu seria capaz de avaliar as influências que o levaram
ao desfecho criminoso. Isso não o inocenta, mas alerta para o grau de
responsabilidade de quantos ao correr da história contribuíram para o crime em
julgamento. Sob esta ótica os códigos penais são tentativas práticas
necessárias para disciplinar o comportamento humano atual, mas sua aplicação
não pode ter a pretensão de fazer Justiça. Numa perspectiva holística a
verdadeira justiça envolveria o comprometimento de todos os homens uma vez que
na imensa rede de relações sociais e ambientais as ações humanas estão sempre
na ponta de um processo multipolar que começou com a emergência da consciência e da liberdade na história
da Evolução, e se expandiu através das pessoas, numa cascata de influências,
até nossos dias. Para ser integralmente responsável, a prática do livre
arbítrio implicaria num alerta absoluto da consciência individual, na tentativa
da percepção instantânea de todas as influências convergentes para uma
determinada escolha, tarefa que é impossível para as limitações existenciais,
pois ultrapassa a condição precária do eu consciente. Mesmo assim os códigos e os
consensos consuetudinários[2], apesar de
insuficientes são indiscutivelmente necessários para medir as responsabilidades
pessoais, e para manter a ordem social.
Todos reconhecem as
dificuldades inerentes ao comportamento virtuoso, o que faz sobressair a
importância das interdições psicológicas e sociais. Reconhecimento que evidencia
ser a humildade a base de todo esforço real para a prática virtuosa. Ninguém está
em condições de dizer que nunca errou. Caberia aqui lembrar a sabedoria do
Mestre dos mestres quando diante da mulher adúltera desafiou os seus (dela)
supostos algozes dizendo: quem nunca pecou atire a primeira pedra. E todos
sabem o desfecho desta passagem bíblica.
Essas considerações nos
levam a ser mais humildes e compassivos nos nossos julgamentos e ações. Afinal,
cada evento está na ponta de um processo do qual não se pode avaliar com
precisão a malha das influências que o afetam, a partir das escolhas de quantos
participaram retrospectivamente como intermediários desconhecidos, mas
influentes na origem do evento atual. Em resumo, do ponto de vista ético
evolutivo, considerando a unidade histórica da humanidade, não há como
tergiversar diante da participação imediata ou remota de cada um no erro do
outro. Se todos estão envolvidos no processo evolutivo ninguém está isento de
erro. Só para fins práticos, esgotados os recursos investigativos disponíveis,
se convenciona atribuir a culpa do erro a um único indivíduo como executor
imediato do crime pelo qual toda humanidade deveria responder. Mas como todo
homem pode sempre reavaliar sua conduta e reinventar-se, torna-se soberana a
máxima cristã que manda condenar o pecado e perdoar o pecador. A Justiça
perfeita é impossível, mas para garantir em nível aceitável o equilíbrio social,
“julgar” e “punir” dentro de suas limitações faz parte da precariedade
contingente do homem.
Everaldo Lopes