domingo, 28 de dezembro de 2014

Fantasia e realidade


            No discurso informal os vocábulos fantasia e realidade referem-se, respectivamente, ao imaginário e ao concreto. Todavia contextualizadas na experiência humana, fantasia e realidade se fundem, numa vivência singular.
Mergulhando na intimidade subjetiva descobrimos que existir não é simplesmente sobreviver, mas viver por algo que transcende  o  vir a ser aqui-e-agora. A sobrevivência apoia-se em recursos biológicos automáticos e reflexos primários; mas existir implica na elaboração e construção de projetos estético-artísticos e ético-comunitários que ultrapassam o simples ato de viver e o justificam mediante a consagração de valores estéticos, morais e sociais. Nestes projetos a criatividade se traduz em atitudes e atos impregnados de um sentido social responsavelmente assumido.
A  realidade humana dispõe de dois  focos, um racional e  outro afetivo intuitivo. No primeiro destaca-se  a objetividade  limitada ao espaço-tempo cósmico; no segundo projeta-se a sensibilidade  que se prolonga  na magia da intuição e da imaginação.  Por sua condição de ser consciente e responsável ávido de um sentido definitivo para sua existência, o  homem se utiliza dos recursos que convergem nestes dois focos para contextualizar-se num todo absoluto significativo.  Nesse dinamismo existencial, fantasia e realidade são entidades  justapostas na atividade psicobiológica do vir a ser humano.  No plano cósmico a realidade se enclausura num mundo suicida  que caminha conforme a  2ª lei da termodinâmica para a completa desordem de todos os sistemas físicos, desordem dimensionada pela entropia[1]. No campo da sensibilidade manifesta-se a criatividade humana capaz de transformar a Natureza. Não há como  compatibilizar a criatividade humana com a limitação dos determinismos físico-químicos  biológicos para os quais se espera um desfecho entrópico[2]. Se a realidade universal se reduzisse à perspectiva da “morte térmica”, não haveria como justificar o arremate coerente  da ordem evolutiva na organização da matéria desde o big-bang até a consciência reflexiva. Essa coerência sugere a interveniência de um anti-acaso, tão grande é o acúmulo de coincidências bem sucedidas durante todo o processo evolutivo! A simultaneidade destas coincidências em prol da complexidade crescente levanta a expectativa de um desfecho diferente, mais criativo e grandioso para o processo evolutivo. A especulação sobre a complexidade crescente da Evolução revela uma intenção que por sua vez faz supor uma consciência universal cuja natureza transcendental  ultrapassa os limites de qualquer demonstração. Tudo isso conduz à certeza de que o paradigma racional não comporta a realidade toda.  Esta é muito mais  ampla e se reflete  pujante na intuição  de um todo significativo absoluto que não exclui o racional, mas vai além  do puramente sensível. Se o destino do homem é superar-se sempre, transcendendo-se pelo exercício da consciência reflexiva  pode-se inferir que seu último fim é compatível com um absoluto inalcançável pela razão, mas absolutamente necessário para consumar o fenômeno humano. Este absoluto intangível afirmado por um ato de fé ganha o status de realidade na medida em que inspira o ser consciente a abraçar a transcendência absoluta na qual logra um sentido definitivo. Precisamos criar o que não vemos[3], para superar  a insuportável limitação racional que deixa de fora grande parte da nossa própria realidade humana. E a força desta crença alimenta a dimensão transcendental do homem.
            Os sentidos auxiliam no conhecimento da realidade palpável da Natureza. Mas a capacidade criativa da imaginação é que confere um sentido a esta mesma realidade. Nessa perspectiva será imprópria a alternativa: fantasia ou realidade! De fato, à luz da análise fenomenológica da existência, fantasia e realidade são dimensões de um mesmo processo no qual ambas se integram completando-se misteriosa e mutuamente.
A tentativa de insistir em projetar a existência pessoal no plano  puramente lógico, racional e objetivo leva inevitavelmente ao fosso do absurdo vivencial, ou seja, ao desespero sem retorno de ser para nada. Aflição que é temporariamente camuflada por metas provisórias urgentes impostas como exigência mínima de sobrevivência.  O esforço para sobreviver absorve o homem na conquista do que é fundamental para manutenção da vida, envolvendo-o em questões práticas que exigem pronta solução. Não é à toa que  o maior índice de suicídios ocorre exatamente nos países mais desenvolvidos onde os problemas  materiais imediatos[4] de manutenção da vida foram resolvidos. Com a sobrevivência confortável garantida se torna mais premente a aspiração de superar a finitude, celebrando valores transcendentais em busca de um sentido definitivo para a “existência” pessoal. É maior então a exigência para a construção da humanidade. Quando falha a conquista do primeiro objetivo, a fome física maltrata e pode até matar, mas quando o homem não alcança o segundo objetivo a fome de sentido mata o desejo de viver, o que transforma a existência numa tarefa tão desesperadora que a própria morte se torna para a consciência inquieta e abandonada à sorte entrópica, uma maneira equivocada de o homem posicionar-se diante do aparente sem sentido de tudo. Obviamente, essa decisão desesperada não coincide com o objetivo a que se propõe a Evolução! Diante desse conflito existencial vale a pena  lembrar que a tarefa magna do ser consciente é harmonizar na existência pessoal as dimensões  material e  espiritual da condição humana, integrando a “realidade” e a “fantasia”, ao consolidar a afirmação criativa de fé num Absoluto significativo que dignifica a existência pessoal e dá sustentação à solidariedade universal.

                                               Everaldo Lopes




[1] Entropia- medida da quantidade de desordem de um sistema
[2] Relativo à desordem da matéria
[3] O que significa crer para Miguel de Unamuno
[4] Alimentares, sanitários, educacionais, de segurança , etc,

domingo, 30 de novembro de 2014

O idoso lúcido

                                                               Pudor
Quando fores descobrindo que o fulgor
Do teu ser se corrompe e a adolescência
Do teu gênio desmaia, perde a cor,
Entre penumbras em deliquescência,

Faze a tua sagrada penitência,
Fecha-te num silêncio superior,
Mas não mostres a tua decadência
Ao mundo que assistiu teu esplendor!

Foge de tudo para o teu nadir!
Poupa ao prazer dos homens o teu drama!
Que é mesmo triste para os olhos ver

E assistir, sobre o mesmo panorama,
A alegoria matinal subir
E a ronda dos crepúsculos descer.

                               Raul de Leoni


Consciente da própria finitude o homem reage inconformado ante o  envelhecimento e a morte. O soneto que prefacia o texto transparece uma atitude estoica, ou seja, de impassibilidade diante do infortúnio de envelhecer. Participando ou não dessa postura o idoso lúcido é sempre um crítico impiedoso de sua condição. Cônscio da própria decadência física estética e funcional assume a única postura decente para quem vive essa situação irreversível. Em respeito à própria dignidade e à sensibilidade dos demais cala a maior parte do tempo. E quando fala confere maior rigor à elaboração do seu discurso, selecionando melhor o teor de sua mensagem para torna-la objetiva e concisa. Dessa forma assegura-se de não ser repetitivo nos diálogos que protagoniza, ou invasivo da autonomia e tranquilidade dos que o cercam. Seguindo essa linha de comportamento, antes de falar pondera a coerência do que tem a dizer, sonda a verdade do que dirá e avalia o que sua intervenção pode acrescentar positivamente à realidade. Depois dessa triagem sobra muito pouco, quase nada para dizer, salvo nas oportunidades em que a experiência de vida do mais velho for solicitada para ajudar na solução de problemas pontuais. Obviamente a anosidade não é garantia de sabedoria. Todavia, quem já viveu muito uma existência analisada tem mais chance de ser sensato por haver acumulado maior experiência sobre como lidar com os percalços das relações humanas, garantia potencial de maior flexibilidade na solução das dificuldades que atropelam a convivência social. Todavia, neste ponto é oportuno salientar que numa participação social solidária, mais importante do que ter o conhecimento, é vivenciar um crescimento interior que envolva disciplina emocional, generosidade, e capacidade de tomar decisões.
O comportamento reservado e elaborado do idoso lúcido não é sinônimo de intransigência presunçosa. Ele não nega a dor moral das perdas que acompanham o passar dos anos, mas não se deixa afogar nelas nem as alardeia, antes procura alguma forma de compensá-las com os recursos de que ainda dispõe. Para suavizar o impacto da marcha biológica regressiva tenta ser tolerante no julgamento da desfiguração estética do envelhecimento,  e “desdramatiza” o sentimento de menos valia ao constatar a fragilidade física e o pobre desempenho funcional inerentes à idade. Consciente de sua autoavaliação objetiva realista, o idoso lúcido compreende sem ressentimento o distanciamento involuntário dos mais jovens que vivem ao ritmo de outro tempo e têm interesses diferentes. Sente-se bem quando é procurado por amigos, filhos e netos, mas não alimenta a  expectativa de ser o centro de suas atenções, e muito menos exige que o procurem, sem que essa postura ofusque o afeto que eles lhe inspiram.
É possível que alguns idosos conservem a criatividade e continuem cativando os circunstantes com sua capacidade de transmitir mensagens construtivas. Obviamente, quanto mais sábio e humilde for o idoso melhor aproveitará os seus talentos comunicativos. Mas é conveniente lembrar que mesmo os que não alcançam reproduzir um perfil excepcional podem tornar-se pessoas menos agressivas, mais tolerantes, em harmonia consigo mesmas. Com essas características, os que conservam as funções psíquicas superiores intactas, e estão dispostos a enfrentar corajosamente os revezes da idade com bom senso, sem mágoa, conseguem ser simpáticos e bem acolhidos por todos.
Faz parte da lucidez do idoso perceber que sua existência vai se tornando cada vez mais pobre de lances excitantes, prazerosos e, portanto, é urgente aprender a lidar com essa situação. A saída desse impasse depende dos quocientes intelectual e emocional do idoso, da visão de mundo na qual ele se contextualiza e de sua resiliência psíquica[1]. Uma resposta eficaz para as restrições que o afetam não exige, necessariamente, riqueza de conhecimento intelectual nem refinamento cultural, mas não dispensa a intuição do equilíbrio pessoal no exercício da razão, da sensibilidade afetiva e da vontade.
A consciência de um passado já longo e de um futuro que mingua, inevitavelmente anuncia a proximidade da  morte dos que já viveram mais de dois terços de suas vidas, o que os leva a pensar nela com mais frequência. Aparentemente não há como negar o clima de fim de  festa no último terço de suas vidas. Mas o idoso lúcido sabe que pode optar por não fazer da velhice um ritual de desistência da vida que ainda flui no seu corpo já muito vivido, e assumirá esta opção com proficiência tanto maior quanto maior for seu envolvimento com uma atividade criativa. Não se pode prever até quando o idoso sadio conservará sua lucidez, compatibilizando-a com uma atividade criativa que lhe confira o prazer de viver!  Certamente nessa evolução influem fatores socioeconômicos, pessoais, culturais e genéticos, além da mundividência na qual o homem assume uma posição definida, seja numa visão de mundo espiritualista, ou materialista. O idoso materialista evoluirá coerentemente para uma postura apática, indiferente que no vocabulário cético estoico se confunde com a ataraxia[2]. O idoso espiritualista encarna uma visão mística  inerente à fé em um dinamismo absoluto eternamente criativo que permanece na sua criatura. No homem este dinamismo alimenta a esperança de vida eterna como individualidade espiritual pessoal. Promessa que suaviza a aceitação da finitude biológica à qual está condenado. A entrega incondicional do sujeito consciente a um absoluto transcendental ameniza o sentimento de orfandade de uma existência desgarrada e vazia, razão do distanciamento de si mesmo que ameaça o idoso. Mas o pleno resultado prático desta entrega, traduzido em paz e serenidade, só se evidencia quando esta entrega está embasada numa crença autêntica que absorve inteiramente o homem de qualquer idade predisposto a crer numa transcendência absoluta sem questionar. Não se produz o mesmo efeito entre os mais racionais que recorrem a argumentos especulativos metafísicos para justificar a adesão intelectual a uma transcendência absoluta. A vivência de pertencimento a um todo significativo faz toda diferença no desdobramento da conduta do idoso lúcido. Alguns homens teimam em afirmar que podem  conviver sem sobressalto com a ideia de ser a morte biológica o seu fim definitivo; não sei até que ponto se pode confiar na integridade existencial desta afirmação! Em verdade é realmente mais razoável admitir o “dinamismo absoluto” que criou o cosmo e a vida, manifestando-se por fim como pessoa[3] no exercício das funções psíquicas superiores do homem. Como individualidade espiritual este dinamismo absoluto continua presente nas suas criaturas e sobreviverá à morte física do indivíduo. Nesta linha de raciocínio o místico aposta na comunidade universal de todas as consciências integradas na unidade do absoluto transcendental no qual se manifesta a perfeição por toda eternidade. Tudo isso pode encontrar respaldo em especulações filosóficas, mas a razão por si só não promove  a vivência de participação neste absoluto transcendental. Reafirmo, pois, o que disse no fechamento do texto anterior: felizes os que experimentam a vivência autêntica dessa expectativa mística amparados por uma fé ingênua,  prescindindo de cogitações filosóficas.
Obviamente, em qualquer dos casos, o sofrimento por doença é um complicador que cada  um terá de enfrentar de acordo com as reservas morais remanescentes! Em todo caso, embora seja o homem um ser de cultura, na ausência de uma experiência mística aquietadora, o idoso pode ainda confiar na ajuda da natureza para resolver os problemas criados por ela mesma; afinal, nascer e morrer são fenômenos que obedecem aos determinismos da natureza, e todos acabamos cumprindo nosso destino natural. A responsabilidade que pesa sobre o homem consiste em empenhar-se  para crescer e envelhecer com dignidade, cultivando a generosidade numa convivência social solidária.     

  Everaldo Lopes   





[1] Capacidade de recuperação depois de uma agressão emocional.
[2] Estado em que a alma, pelo equilíbrio e moderação da escolha de prazeres sensíveis e espirituais atinge o ideal supremo de felicidade: a imperturbabilidade;
[3] Pessoa –Individualidade física e espiritual, portadora de qualidades quais sejam a racionalidade, a consciência de si, a capacidade de agir conforme fins determinados e o discernimento de valores éticos.

sábado, 15 de novembro de 2014

Temas para meditação


O cosmo, a vida, o homem são realidades cuja complexidade desafia o entendimento racional. Contudo, astrofísicos, paleontólogos, arqueólogos, biólogos e antropólogos tentam compreender cada vez mais os segredos que envolvem a origem do mundo, a estrutura da vida e a condição humana. Suas investigações nos oferecem, hoje, uma visão impressionante do que  possivelmente  aconteceu. Os dados obtidos através da observação científica são estonteantes. E mesmo  assim tudo que sabemos é apenas uma aproximação da realidade. À luz da teoria do big bang a matéria surgiu há 15 bilhões de anos, depois de uma grande explosão fenômeno que deu o nome à citada teoria. Por muito tempo após a fantástica explosão a matéria  primitiva permanecera caótica,  feita de radiações que alternavam com partículas subatômicas movendo-se a velocidades próximas à da luz, submetidas a temperaturas altíssimas  e a pressões inimagináveis. Nesse ambiente físico não havia condição sequer para a organização de um simples átomo de hidrogênio, o mais simples de todos. Com o resfriamento paulatino as subpartículas foram se organizando em átomos, moléculas e corpos compostos, numa complexificação crescente, e há 5 bilhões de anos surgiu a Terra, obviamente, ainda despovoada de qualquer forma de vida. Muito depois, há 3,5 bilhões de anos surgiram nos oceanos primitivos organismos monocelulares equivalentes a bactérias e algas. Em seguida, através de muitos ensaios biológicos evolutivos sobrevieram sucessivamente, os moluscos, os peixes, os anfíbios, os répteis, as aves, os mamíferos e dentre estes os antropóideos, os hominídeos e finalmente o homem capaz de reconhecer-se como  consciência reflexiva. Nele há 1 milhão de anos começaram a desabrochar capacidades como a de pensar logicamente, a de imaginar, a de refletir, e de articular uma intenção. Mas só há 200.000 anos desenvolveu-se do gênero homo, a espécie sapiens capaz de dominar o raciocínio abstrato, de fazer introspecção e resolver problemas, assim como introduzir mudanças programadas no meio ambiente. Há 50.000 anos na subespécie sapiens sapiens da qual somos representantes, o homem alcançou a melhor performance dessas características. Mas só 3.000 anos antes de Cristo nasceu a primeira escrita silábica, marcando a passagem da pré-história para a história. Grosso modo podemos dizer que o patrimônio cultural humano com registro escrito se estende durante os últimos 5.000 anos.
            A cultura progressivamente construída pelo homem é cumulativa, por isso o acervo cultural evolui de forma exponencial. Mas durante um longo período esse processo caminhou a um ritmo muito lento. Só há muito pouco tempo o crescimento cultural exponencial se tornou mais evidente. Examinando os fatos que marcaram a Evolução mais recente, constata-se que embora a subespécie que representamos exista há 50.000 anos, surpreendentemente, nos últimos 65 anos o progresso científico e  tecnológico foi maior do que o que ocorreu nos 49.935 anos anteriores.            Estamos sentindo, hoje, na própria pele a repercussão cultural deste progresso.
  Para evidenciar uma visão panorâmica temporal da Evolução, Carl Sagan propôs comprimir o tempo de existência do universo em um ano  do calendário solar. Nessa escala o big bang teria ocorrido no segundo inicial do dia primeiro de janeiro do calendário cósmico, e a história escrita do homem estaria se desenrolando nos últimos segundos do dia 31 de dezembro deste mesmo ano.
 Não obstante o avanço cultural constatado em nossos dias, o mundo apresenta-se ainda dividido em centros de excelência civilizacional ao lado de grandes bolsões de pobreza e ignorância caracterizados por precárias condições alimentares, habitacionais e sanitárias de grupos humanos numerosos. Essa disparidade ameaça a própria Evolução que a fim de seguir adiante deve contar com a solidariedade comunitária de todos os homens, incompatível com as diferenças econômicas e sociais excludentes. A razão desse descompasso da caminhada evolutiva é que  avançamos muito do ponto de vista científico e tecnológico, porém muito pouco do ponto de vista emocional, e solidário. Em verdade essa discrepância repousa em que para ampliar o conhecimento objetivo da realidade basta fazer uso apropriado da razão; enquanto a capacidade de interagir com o próximo em função da solidariedade coletiva exige muito mais,  demanda esforço pessoal competente e mantido no combate ao egoísmo e à ambição, coadjuvado pelo compromisso com o bem comum. Aliás, como já sinalizamos antes, dessa conquista depende o futuro da própria Humanidade. O homem ocupa na linha da Evolução o momento em que o vetor  do movimento  evolucionário muda de direção, da estruturação e aprimoramento biológico dos indivíduos humanos, para a organização social dos mesmos. Ou seja, a partir do homem a Evolução dependerá da capacidade dos indivíduos de organizarem-se em comunidade. Os humanos devem impor-se livremente uma organização social flexível que garanta a sustentabilidade da espécie, mediante comportamento criativo, original, diferentemente de tentativas evolutivas anteriores de organização social confiada a determinismos instintivos (sociedade das abelhas e das formigas). Dessa forma recai sobre o ser consciente a responsabilidade de contribuir com sua ação livre, criativa, para o desfecho da própria Evolução. Mas, não obstante assumir no processo evolucionário a dimensão de parceiro voluntário do próprio “Dinamismo absoluto criativo”, o homem continua vivenciando sua condição de criatura, finito, preso às limitações temporo-espaciais. Continua prisioneiro dos prazos inextensíveis da vida biológica, escravo de sua contingência incerta, com tempo de validade determinado e previsível. Diante das incertezas inerentes à própria contingência, na sua caminhada evolutiva o homem sente necessidade de um referencial totalmente confiável que o oriente sem deixar dúvidas sobre os caminhos a seguir e a forma correta de participar da evolução. Sem um referencial totalmente confiável o projeto existencial fica limitado por um sistema de referência incapaz de definir com autoridade o papel que cabe  ao homem protagonizar na história da Evolução. A ciência, por sua  própria natureza objetal não pode propor um valor absoluto transcendental que sirva de referência ao processo evolutivo. Então, para preencher essa necessidade o homem recorreu em diferentes épocas a uma autoridade externa representada ora por entidades mitológicas, ora por divindades cultuadas mediante práticas religiosas. De qualquer forma fica bem claro que para sua completa realização o homem  necessita arrimar-se num absoluto transcendental.  Ora este absoluto transcendental ultrapassa os limites da matéria sugerindo uma  realidade espiritual que fundamenta o mundo, revela-se na condição humana, e nela o  homem se realiza plenamente. Realidade eventualmente  vivenciada numa experiência subjetiva essencialmente mística[1]  (existem relatos históricos de místicos famosos). Ao admitir  uma mundividência espiritualista  torna-se presumível que quando a morte sobrevier a consciência assumirá sua essência transtemporal, num outro nível de vida.
Do que ficou dito depreende-se que reconhecendo a própria contingência  a segurança e a felicidade do homem nessa vida consiste na sua contextualização  num todo absoluto, essencialmente significativo com o qual mantenha uma relação de confiança. Nesta contextualização o ser consciente conta com a certeza de que na unidade absoluta  tudo tem sentido, desfazendo-se nela todas as contradições. Mesmo que jamais venhamos a entender nessa vida por que as coisas acontecem do jeito que acontecem, a favor ou contra o nosso desejo, os desencontros temporais que transtornam a realidade histórica não perturbarão a harmonia da unidade absoluta de tudo quanto existe. No vir a ser histórico do homem o sofrimento é tão fugaz quanto o prazer que a vida pode oferecer. Conceitualmente podemos dizer numa linguagem mística que só a unidade transcendental (em Deus) de todas as consciências reúne toda paz e felicidade possíveis para todo o sempre. Especulações metafísicas podem dar suporte remoto a essa visão espiritualista criacionista do cosmo, da vida e do homem. Mas a fé filosófica que busca apoiar-se nestas especulações  não tranquiliza tanto quanto a crença ingênua que não procura um amparo racional para consagrar  a existência individual a um Deus pessoal interessado em sua criatura.  
Everaldo Lopes





[1] Experiência subjetiva em que um indivíduo dá testemunho de ter tido um encontro ou uma união com  entidade divina, ou ter tido contato com uma realidade transcendental.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

A missão do homem

 “ A vida  nada mais  é  do  que  uma  sombra  que   passa ; um  pobre  comediante  que  se  pavoneia  e  se  agita  no breve  instante  que  lhe  reserva  a  cena  e , depois ,  nada  mais  se  ouve  dele . É  uma  história  contada  por  um    idiota , cheia  de  fúria  e  tumulto , nada significando.”
William  Shakespeare


A fala de “Macbeth” na cena V do ato V da tragédia que leva seu nome está impregnada de um pessimismo perturbador. A repercussão dessa peça teatral no mundo inteiro durante os  quase quatro séculos que se seguiram à sua publicação dá testemunho de que o texto escrito por Shakespeare mexe com a psique humana. Ao reconhecer o brilho estético da obra do grande dramaturgo Inglês, cremos oportunas algumas considerações paralelas que destacam um  olhar positivo sobre a vida.
O otimismo e o pessimismo são modos de encarar a realidade que interferem na conduta das pessoas. Ninguém pode negar que o otimismo e o pessimismo exagerados podem levar, respectivamente, à negligência leviana e à inação depressiva. Por isso é oportuna a intervenção da crítica na orientação prática da conduta pessoal tanto dos que se inclinam ao otimismo, como dos que são mais propensos ao pessimismo. Esta intervenção dá lugar ao que poderíamos chamar de otimismo e pessimismo críticos, pois, não obstante a disposição de espírito subjacente em cada caso, o sujeito consciente pode sempre fazer uso da liberdade pessoal para escolher um comportamento diferente. No processo evolutivo do qual participamos cabe ao homem refletir  livre e responsavelmente antes de fazer suas escolhas.
Distinto dos demais seres vivos, o homem é reflexivamente consciente da própria finitude e capaz de avaliar tanto o acerto como o desacerto do seu comportamento. A consciência reflexiva e o livre arbítrio, aptidões inéditas no universo pré-humano permitem ao homem escolher e deliberar sobre o próprio comportamento.  Essa capacidade  torna possível a dimensão ética inerente à condição humana.  Independente de sua inclinação otimista ou pessimista, o homem ético está sempre predisposto a escolher dentre as várias alternativas comportamentais que se apresentam cada momento, uma que satisfaça os valores assumidos.  
Senhor do seu vir a ser o homem pode mudar o rumo dos acontecimentos e cumpre fazê-lo em favor da própria Evolução. No desempenho desse papel contextualiza-se com autenticidade num projeto que o transcende, empenhando na realização dessa escolha seus dons superiores racionais, afetivos e volitivos. Neste projeto, o referencial histórico que dá sentido ao devir peculiar do homem e que o dignifica é a disposição de construir a comunidade de todos os homens. Solidária, centrada na verdade e na justiça, a organização comunitária é indispensável à sobrevivência da espécie Homo Sapiens sapiens. Agindo dessa forma o homem escapa da “idiotia” e colabora para dar seguimento à Evolução, dignificando o vir a ser pelo qual se torna responsável. Nesse ritual de dedicação aos valores humanísticos éticos, o fator decisivo do sucesso é a vivência genuína de solidariedade que cada um, idealmente, é capaz de experimentar na convivência social. A fidelidade a esse vínculo recíproco de pessoas  dignifica o modo de ser pessoal de cada um. Fora desse contexto a vida efêmera do homem realmente “nada  mais  é do que uma sombra que passa ”. Esquivando-se de sua missão no processo evolutivo o homem parecerá sem dúvida “um  pobre  comediante  que  se  pavoneia  e  se  agita  no  breve   instante  que   lhe  reserva  a cena  e ,  depois , nada  mais  se  ouve dele.”   
Com prazo marcado para realizar sua missão temporal, o homem precisa estar atento às oportunidades de realização dos projetos construtivos que se lhe oferecem. Ao priorizá-los, sem perder o foco comunitário cada um poderá desfrutar coerentemente o prazer dos sentidos e as alegrias espirituais, ancorado no exercício do autoconhecimento e da disciplina emocional.  
A inquietação perdura, a consciência da finitude e as incertezas inerentes continuam estimulando o desejo humano, impossível, de eternidade e de segurança total. Para os que têm fé, a superação desse desassossego é reforçada pela expectativa de integração transtemporal num absoluto unitário (Deus) no qual se desfazem todas as contradições.  Essa esperança se alimenta da confiança num clímax representado pela integração pessoal num todo significativo absoluto que, do ponto de vista estritamente racional é tão impossível provar, como negar. Todavia, o cientificismo ao qual estamos condicionados dispõe que “os métodos científicos podem e devem ser estendidos a todos os domínios do conhecimento”. Ora, isso implica na dificuldade racional de justificar a existência do cosmo e da vida. A matéria, por ser contingente, não se autoproduziu nem apareceu por geração espontânea. Tudo que existe no tempo e no espaço é finito e teve um começo, vem de algo anterior, tem uma causa; portanto retrocedendo no tempo até um primeiro momento  impõe-se concluir  que um absoluto criador[1] precedeu o universo conhecido ou lhe é concomitante. Esse é o argumento milenar da necessidade de uma primeira causa não causada, o motor imóvel proposto por Aristóteles, que não pode ser objetivado num experimento cientifico.
Provisoriamente confirmada em 14 de março de 2013, o Boson de Higgs  partícula elementar  que, teoricamente, surgiu logo após o Big Bang validaria o modelo padrão atual de partículas, e representaria a chave para explicar a constituição da massa das outras partículas elementares. Por isso, foi cognominada impropriamente a partícula de Deus. Denominação inadequada porque esta partícula não pode prescindir de um Absoluto criador, uma vez que sendo uma contingência por si só ela não existiria. Resta-nos, então, a proposta intuitiva do Poeta[2]  que na sua obra “A velhice do Padre Eterno”  nos diz: “Um dia, a humanidade inteira, numa só aspiração reunida há de fazer da razão e da fé os dois olhos da alma; da verdade e da crença os dois polos do mundo”! Mas permanecendo no terreno da razão, apoiados em especulações metafísicas, concebemos ser racionalmente defensável o objeto de fé que completa as lacunas do conhecimento objetivo da realidade.
Especulativamente ganha corpo a ideia de uma consciência universal que antecede e determina a ordem evolutiva desde a matéria primitiva até a organização comunitária da coletividade humana. Mas esta organização histórica, temporal, só se consumaria, à perfeição, prolongando-se na comunidade transtemporal de todas as consciências numa unidade absoluta. Um absoluto cuja transcendentalidade só pode ser vivida, como crença, mediante um ato de fé.  Todavia, com ou sem fé a vida humana só ganha significado quando preenche seu papel na Evolução Universal, promovendo a organização social comunitária da humanidade. Seguindo este roteiro comportamental, a vida do homem já não seria “...uma história  contada  por  um  idiota, cheia  de  fúria  e tumulto, nada significando” . O comportamento individual dignificado pela prática da solidariedade comunitária torna a vida humana uma consagração pessoal aos ideais de Verdade, de Beleza e Justiça que transcendem a contingência temporal, promovendo a plenitude da existência.
                   
 Everaldo Lopes




[1] O que existe em si e/ou por si, causa de si mesmo.
[2] Guerra Junqueiro

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

O Pessimista e o Realista Crítico

Depois de longa ausência dois amigos de infância encontraram-se na sala de espera de um aeroporto, e após os cumprimentos de praxe  logo reataram a antiga intimidade. Ambos inteligentes, mas completamente diferentes. Quarentões profissionalmente bem sucedidos, um era Pessimista (P) e o outro Realista Crítico (RC). Enquanto esperavam a chamada para embarque sentaram lado a lado na grande sala climatizada do aeroporto. Sabiam que a espera seria longa e começaram a conversar sobre os mais variados assuntos. Inteiraram-se sumariamente dos caminhos percorridos por cada um até aquele momento. Sentiam-se emocionalmente muito próximos ao reviverem uma amizade de infância e pela expectativa comum de mais uma aventura aérea. Sim, pois em verdade, por mais seguras que sejam as aeronaves, voar é sempre uma aventura na avaliação secreta da maioria dos homens! Obviamente, o Pessimista era o mais tenso dos dois e, num dado momento do bate-papo desabafou.
P – Não sei como você se sente, mas fico inquieto quando tenho de viajar de avião. Por mínimo que seja o risco, incomoda-me saber-me sobrevoando a superfície do nosso planeta a 12.000 metros de altura, inteiramente à mercê de uma máquina e da habilidade dos pilotos. Se já me sinto ansioso no meu dia a dia, só de saber-me vulnerável, incapaz de controlar inteiramente os eventos do momento seguinte, pior fico ao sair da rotina tendo que enfrentar novos desafios.
RC- Pensando bem, acho que a intranquilidade que você acaba de relatar, com maior ou menor intensidade é uma vivência comum a todos   nós seres conscientes da própria contingência. Quem não sente a fragilidade da vida? Somos felizes quando conseguimos viver a vulnerabilidade aos males do corpo e da mente com espírito crítico capaz de distinguir as possibilidades, das probabilidades. No campo das possibilidades tudo pode acontecer, mas somente os eventos mais prováveis ocorrerão de fato. A imensa maioria dos acontecimentos possíveis só muito raramente se confirma. Porém, não raro o medo pode criar fantasias catastróficas envolvendo possibilidades remotas. Para  evitar o pânico é fundamental administrar as operações subjetivas, interpondo certa distância entre o eu cognoscente e as previsões fantasiosas que ampliam a insegurança pessoal. Esse distanciamento torna possível analisar a situação, e avaliar o que nestas previsões há de real, e de imaginário.
P – Confesso que tenho dificuldade para fazer esse controle. O menor indício do inesperado indesejável, invariavelmente, me provoca uma reação de alarme como se estivesse diante de uma situação real concreta ameaçadora. Gostaria de livrar-me disso, mas é difícil consegui-lo!
RC – Sem dúvida sua confissão evidencia uma forma sofrida de encarar a realidade. Permanentemente sob o peso das incertezas você convive mal com a finitude e a insegurança implícitas no simples ato de existir, vivenciando permanentemente a angústia existencial. Eu costumo utilizar mecanismos racionais de controle para amenizar o mal-estar das incertezas ameaçadoras.
P – A dificuldade que sinto de exercer esse controle me faz pensar que minha predisposição pessimista está associada a uma experiência negativa durante o processo de individuação. Esse tropeço evolutivo explicaria a tendência que me aflige de encarar tudo pelo lado negativo.
RC- Certo. E nos casos mais graves do transtorno comportamental inerente à formação da personalidade a libertação do medo ligado à expectativa do pior implica numa verdadeira superação pessoal. O que muitas vezes levanta a necessidade de ajuda especializada. Entre os pessimistas, o medo escapa ao controle consciente, desestabilizando-os emocionalmente. O sujeito consciente normal e lúcido sabe racionalmente que de momento a momento o perigo de adoecer e morrer é real como possibilidade, mas como probabilidade tem muito pouca chance de acontecer no instante em que desponta o temor. E ao avaliar cada situação procura enfatizar os aspectos positivos mais prováveis, sem se envolver em preocupações inúteis.
P. Evidentemente é fundamental separar criteriosamente a realidade e a fantasia na apreciação da experiência em curso. Mas para isso há que afugentar o pânico, e ser determinado para concentrar toda atenção apenas no real concreto, corrigindo os exageros da inclinação pessimista. Essa é a minha grande dificuldade!  
RC- Diante de sua perplexidade sinto-me encorajado a falar da minha experiência pessoal. Reconheço e assumo que na avaliação das situações que defronto a imaginação pode urdir divagações pessimistas em torno da realidade objetiva. Esta representa à luz da consciência a atualização de uma probabilidade real; a divagação  se perde em fantasias possíveis porém improváveis. Usando o bom senso aposto nos conteúdos racionais objetivos, mantendo a certa distância ou anulando o medo que acompanha os devaneios  pessimistas.
P – Reconheço que esse seria o comportamento ideal. Porém sabe-lo racionalmente sem o suporte emocional correspondente não basta para tornar-me menos temeroso. Sinto-me Intimidado ante a fatalidade de nunca poder livrar-me da incerteza do que está para acontecer! E a preocupação decorrente  desse estado de espírito é torturante.
RC- Sem dúvida, os riscos continuam presentes, disso não se pode fugir. Mas posso afiançar-lhe: quando eles são vividos com um pé na realidade ameaçam menos, e não produzem tanto sofrimento. Como isso funciona? Ora, desde que você não seja vítima de um conflito inconsciente não resolvido absorverá o resultado da análise racional da realidade que reduz a participação imaginária dos riscos possíveis, limitando-os aos prováveis. Assim procedendo, você enfraquece o pânico que é seu verdadeiro inimigo e dessa forma, automaticamente, aliviará a pressão interna da ameaça  de perigo imediato.
P - Começo a entender a lógica psicodinâmica do medo!
RC- Mas isso não é tudo. O inconsciente é ladino e sinuoso, não desiste nunca do seu intento. É preciso ficar alerta porque, alheia aos conteúdos conscientes do sujeito psicológico, a raiz inconsciente do medo vai continuar produzindo “metáforas[1]” e “metonímias[2]” para alimentar a ansiedade. Concordo que muitas vezes se faz necessária a intervenção do Psicanalista. Mas nos casos em que há apenas traços neuróticos na personalidade, poder-se-á tirar proveito da adesão voluntária a uma conduta dirigida pela razão. Ou seja, mesmo quando o temor inflaciona os conteúdos conscientes, ainda é possível que o pessimista selecione, voluntariamente, os conteúdos positivos conscientemente concebidos, concentrando-se neles. E repetindo essa operação mental “n” vezes é possível que se criem novas trilhas  subjetivas na busca de segurança e completude, controlando, pelo menos parcialmente, o medo inerente aos conteúdos sinistros de fantasias inspiradas no inconsciente. É isso que espera alcançar a terapia comportamental. Acredito em que a proposição voluntária de uma expectativa otimista pode influir positivamente nos acontecimentos que estão por vir. Uma das inteligências mais brilhantes da humanidade chegou a afirmar: “A imaginação é tudo, é a prévia das construções do futuro”.[3] Dessa forma, um grande Físico reconhecia a força criativa da imaginação, grandeza abstrata que vai além da própria intuição.
P- Esta é uma boa dica. Vou tentar.
O alto falante anunciou a última chamada para o embarque do Realista Crítico. Os amigos se despediram calorosamente e o Pessimista ficou remoendo as informações que lhe foram passadas naquele encontro.
                                               Everaldo Lopes




[1] Transferência do sentido próprio de uma palavra num contexto determinado, que se fundamenta  numa relação de semelhança subentendida.
[2] Designação de um objeto por palavra designativa de outro objeto que tem com a primeira uma relação de causa e efeito. (Ex.: trabalho por obra)
[3] Albert Einstein

sábado, 13 de setembro de 2014

O comportamento ético, modo de ser peculiar do homem.

Faz alguns anos, nos reuníamos semanalmente uns três ou quatro amigos para desfrutar um bate-papo descontraído, focado em problemas humanos relevantes. Talvez quiséssemos discutir nossas “verdades”, quiçá, descobrir novos caminhos!  O encontro ao qual me reporto agora ocorreu num bar restaurante recém-inaugurado. O piano espalhava sonoridade nostálgica na sala ampla. Alguns clientes bebericavam ou faziam sua refeição habitual. Nós ocupávamos uma mesa mais isolada em um canto do salão menos movimentado, onde podíamos conversar mais à vontade.  
A carta de bebidas encadernada com capa vermelha que nos foi entregue pelo garçom oferecia grande variedade de vinhos. Feito o pedido o garçom o anotou, mas logo depois voltou sem jeito com um riso amarelo nos lábios a pedir desculpas por haver zerado o estoque do vinho solicitado. Decidimos contentar-nos com outro tinto disponível. Para tira-gosto pedimos queijo mussarela e presunto cortados em cubos. O piano continuava encantando nossos ouvidos, ora em ritmo de valsa, ora em compasso de Fox, ou samba canção. O pianista caprichava na escolha de músicas que mexiam com antigas lembranças nossas.
Servida a primeira taça um dos presentes falou para o grupo.
- Gente na última vez que nos reunimos, fui sorteado para conduzir, hoje, o nosso “papo filosófico”. Escolhi conversarmos sobre os valores que devem presidir a relação dinâmica entre os indivíduos na convivência social. Reuni alguns tópicos polêmicos que servirão como pontos de partida para uma abordagem analítica do tema escolhido. E leu um resumo digitado em duas laudas de papel A-4; depois interrogou os presentes com o olhar.
Um dos ouvintes comentou:
- No seu relato evidencia-se o potencial conflituoso entre os aspectos imediatos e transcendentais, respectivamente egoístas e éticos, das aspirações individuais. Estes  aspectos conflitam muitas vezes e devem ser trabalhados até a elaboração do comportamento ético justificado por um valor absoluto. Trabalho que implica no disciplinamento do egoísmo para garantir a harmonia das relações sociais. Sem esta disciplina, a satisfação descontrolada dos interesses individuais imediatos dá lugar a injustiças sociais que prejudicam pessoas ou grupos. No plano econômico os privilégios de uma minoria  acabam criando um fosso entre os ricos e os pobres. Para contornar as consequências das injustiças e desequilíbrio social tem-se apelado, historicamente, para o controle do Estado político no sentido de garantir os direitos fundamentais a todos os cidadãos. Nessa perspectiva não ficou muito claro para mim seu posicionamento com respeito à solução do conflito entre os interesses individuais e a dinâmica social.
O companheiro alvo do comentário retrucou:
- Já foi dito, que a dificuldade de os homens autodisciplinarem-se ensejou a necessidade da intervenção de uma autoridade externa no processo socioeconômico. Não me posicionei sobre a maior ou menor intervenção do Estado político na vida social e econômica porque a minha função hoje é a de provocar. Mas endosso a orientação humanística que você sinalizou ao apontar o esforço a ser empreendido a fim de alcançar o equilíbrio entre as demandas individuais e sociais, em função de um valor ético universal.  
Na sequência, o seu comentarista acrescentou:
- Conquistar para todos os homens condições humanas de vida, anulando as diferenças financeiras e culturais entre as “classes sociais” será sempre um objetivo nobre e consistente. Só temo as consequências da associação inadvertida do ideal socialista com uma tese materialista como faz Marx! Esta associação é muito restritiva, e prejudicial ao desenvolvimento do humanismo integral.
O autor do texto lido concordou e ajuntou:
– Aliás, é bom deixar claro desde agora que se equivoca aquele que reduz o problema social a uma questão puramente material. Estou convencido de que vitoriosa a revolução social nos termos marxistas, o problema existencial persistiria! Mesmo bem alimentado, abrigado, assistido, o homem continuaria a se perguntar sobre como tudo começou e como terminará o mundo visível; permaneceria curioso sobre o sentido da sua própria vida, incomodado com a consciência angustiante da sua própria finitude incontornável! Curiosidades e vivência que são motivos de sobra para alimentar a angústia existencial que tortura o ser consciente e exigem elaborações plausíveis. Uma prova disso é a alta  frequência de suicídios nos países desenvolvidos nos quais os problemas sociais básicos estão resolvidos. Curiosamente, uma frequência equivalente à de homicídios nos países subdesenvolvidos! Estou convencido de que no plano pessoal mais profundo, o alimento espiritual de que precisa o homem para agir eticamente e libertar-se da angústia existencial é uma experiência mística que lhe satisfaça a dimensão transcendental da existência.
            Iniciada a discussão, as intervenções se multiplicaram, e os comentários paralelos atropelaram o debate. Acalmados os ânimos, o mais sisudo do grupo manifestou sua opinião:
– Concordo com o pronunciamento que acabamos de ouvir. A satisfação das necessidades primárias do homem não basta. Impõe-se uma prática ética humanística que sacie harmoniosamente a fome do corpo e da alma. O conflito entre as demandas individuais e sociais é emblemático e exige um posicionamento honesto. Historicamente é notório que para atingir as metas materiais colimadas, o estatuto socialista mais radical justifica todos os meios. Dessa forma, a dinâmica político-social adotada pelo ativista marxista-leninista desfigura os princípios humanísticos integrais fundamentados na prioridade do exercício da consciência livre e responsável. A ditadura do proletariado perdeu-se num passado distante. Mas a sombra deste passado ainda amedronta os grupos radicais conservadores. Urge estimular o convívio democrático e solidário evolutivo. Gandhi resumiu magistralmente a metodologia capaz de conduzir o aprimoramento das transformações sociais necessárias ao desenvolvimento da humanidade: “É preciso ser a mudança que queremos ver no mundo a fim de contribuir para a construção de uma verdadeira comunidade humana”. E isso exige autenticidade e determinação.
Um dos componentes do grupo que se mantivera calado até então falou:
– Nesses termos a questão fica muito bem posta. Aliás, complementando o que ficou dito, acho pertinente definir um parâmetro avaliativo universal a fim de estimar o ideal do comportamento humanístico integral. Na minha apreciação a ordem evolutiva centrada na construção da comunidade humana seria o referencial padrão-ouro para a caracterização da missão evolutiva histórica do homem. Essencialmente, na trilha do ideal comunitário a verdade ética estaria sempre associada à solidariedade livremente escolhida e praticada.
Retomando o debate, o mais velho do grupo interveio reportando-se ao depoimento anterior.
- Isso faz sentido. Os valores inerentes à proposta evolutiva que objetiva a comunidade humana deverão ser considerados referenciais seguros para distinguir o certo e o errado nos modelos que plasmam as relações sociais. A coerência ética em relação ao existir pleno solidário só será uma realidade no seio da comunidade humana. Portanto é nesse sentido que a humanidade deve caminhar. Em  verdade o homem é capaz de amar e de odiar, de criar e destruir, de aderir à verdade ou à mentira! E será, afinal, o resultado de suas escolhas. Nessa perspectiva não é mais um ser natural, porém um ser de cultura. Quando falamos do existir pleno, estamos conceituando uma construção cultural (a existência) e não um evento natural (o simples ato de viver). Os valores que satisfazem a prática solidária são os marcos regulatórios desta construção.
 Um dos presentes comentou oportunamente:
- Aliás, no contexto existencial já está implícita a relação eu-tu que é o cerne da própria dimensão social solidária do homem. O “eu” não existe sem o “tu”. Da relação harmoniosa de ambos resulta o “nós” que abre a porta para uma sólida interação comunitária. A corresponsabilidade dos indivíduos os obriga a respeitarem-se e, na melhor hipótese, a serem solidários. O comportamento regido por uma moral humanística nunca se alinha com fins alheios à dignidade pessoal. Portanto, só a ética solidária garante o padrão ouro das relações sociais humanas. Não  podemos esperar que a sociedade feita de indivíduos assuma formas cada vez mais perfeitas, enquanto os indivíduos fenecem descaracterizando-se eticamente, visto que o comportamento ético é a forma de ser peculiar do homem. A existência sem a empolgação  com o ideal moral solidário vira uma rotina pueril que beira o ridículo.
O autor do texto em discussão retomou a palavra:
- Certo. Estamos sempre em processo de mudança. E para mudar evolutivamente, mais importante do que teorizar sobre os valores ideais, é que cada um os pratique de forma plena no convívio com os outros.  Resumindo, é fundamental que cada um incorpore em si mesmo um protótipo humano que reúna a competência necessária para distinguir o maior número de alternativas nas várias situações vividas, e a aptidão para selecionar consciente e responsavelmente aquela (alternativa) que melhor convier aos propósitos comunitários. A maturidade humana é alcançada com a total consciência do indivíduo de estar em processo de mudança, permanentemente aberto a qualquer experiência nova que reforce os valores comunitários básicos. Nesse sentido é preciso que cada um confie no próprio julgamento, capaz de assumir atitudes éticas, sem rigidez ou insegurança.  Nessa perspectiva, as decisões pessoais podem conflitar com os cânones sociais eventualmente defasados por sua própria inércia histórica, criando obstáculos às mudanças necessárias. Muita calma e ponderação nessa hora. A ação reformadora que vai além dos limites do padrão cultural vigente, não pode perder o foco do ideal comunitário universal. E, fiel a este ideal, quando necessário o indivíduo precisa ter a coragem de reformular comportamentos que se demonstram incapazes de promover níveis mais elevados de integração comunitária. De outra forma jamais teriam ocorrido as transformações sociais indispensáveis à própria Evolução. Um observador simples e virtuoso, intuitivo, sábio diria que o  caminho ideal desta conquista é a prática do amor caridade entendido como um sentimento calmo, duradouro desinteressado, criativo, que não faz exigências, indulgente, respeitoso, responsável, que nasce do conhecimento profundo do ser amado!
Já era tarde quando os amigos se despediram até um próximo encontro. 

Everaldo Lopes

domingo, 24 de agosto de 2014

O neto curioso

As crianças brincavam no Parque sob o olhar atento dos pais e cuidadores. O corre-corre alegre da meninada contrastava com a disciplina dos adultos que caminhavam ou corriam para manter boa forma física e mental. Um homem idoso de aspecto saudável sentado num banco à margem da “pista de Cooper” interrompera por um instante a leitura que fazia. Tinha sobre a perna cruzada um livro entreaberto com o dedo indicador de uma das mãos marcando a última página lida. Olhando as árvores do Parque agora crescidas e frondosas que ele vira plantar há muitos anos, acudiram-lhe outras recordações. Absorto, entretinha-se com antigas lembranças quando um neto que fazia sua corrida habitual deteve-se beijou o avô na careca, cumprimentando-o, e sentou-se ao seu lado. Encorajado pela intimidade respeitosa característica da relação entre os dois, o jovem perguntou.
- Vô, sempre que o vejo nessa postura meditativa fico pensando nos assuntos que alimentam suas reflexões. Conhecendo-o como conheço não consigo imaginá-lo vazio de pensamentos nesses instantes de aparente alheamento.
-Meu neto. Fico feliz por despertar sua atenção.  Agradeço a Deus   haver-me conservado a lucidez necessária para satisfazer sua curiosidade e falar da minha experiência pessoal. Em verdade, avesso a lamentações eu prefiro viver minha precariedade existencial sem enganações. E para entender cada vez mais profundamente minha realidade mais íntima,  medito a natureza espiritual da consciência reflexiva, a liberdade e a responsabilidade que caracterizam a condição humana. Temas inesgotáveis de implicações fascinantes que esbarram nos limites da nossa temporalidade.
-Vô, você não acha doloroso insistir em refletir acerca da  angústia inerente à consciência da finitude? Não seria preferível fugir um pouco dessa ansiedade embaraçosa?
-Meu querido neto. Você tem razão, em parte. É bom que uma vez ou outra a gente se dê a oportunidade de um recreio espiritual. Mas o distanciamento da fonte principal de nossa ansiedade não ajuda a responder aos questionamentos impostos pela condição humana; embora essa distração tenha seu momento, a  intervalos, como um merecido repouso da mente cansada de pensar o mistério do mundo e da consciência.
            -Vô. Nessa perspectiva como você sente a velhice?
-Sinto-a como um declínio progressivo da possibilidade de experimentar os prazeres da juventude. Acho impossível adocicar o envelhecimento. A aceitação é a única forma de vivê-lo sem mistificações. Mas aceitar as próprias limitações com naturalidade e criatividade não é algo que a gente possa impor-se. Demanda mais do que autoconhecimento, disciplina emocional e uma leitura filosófica da realidade. Exige humildade para lidar com as perdas que acumulamos durante os anos vividos. A ruína do vigor físico e a redução ou supressão dos prazeres da cama e da mesa são alguns dos sinais indeléveis do declínio biológico. Todavia avalio esse processo na sua justa medida como um conjunto de eventos regressivos inevitáveis. Reconheço-os, dimensiono-os e os enfrento com os recursos interiores de que disponho. Imponho-me assistir ao meu próprio envelhecimento sem me deixar abater pelas  limitações da idade, e sem negá-las tão pouco. Procuro encarar cada novo dia como o primeiro dos que ainda  hei de viver, e não como o último dos que já vivi.  Mas não posso deixar de sentir a  melancolia de um fim de festa; preciso ficar alerta para não deixar este sentimento minar minha disposição de ir além.
-Vô. Vejo que envelhecer é um processo que exige compreensão profunda da realidade humana e grande determinação! Você faz muito esforço para levar adiante sua proposta?
-Meu neto. Não é fácil encarar com naturalidade a expectativa do fim previsível da jornada histórica pessoal. É desoladora a dificuldade de preencher o vazio de emoções e interesses absorventes que se amplia com a idade. A consciência da precariedade  temporal do ser biológico tem início muito cedo, torna-se cada vez mais desafiadora com o passar dos anos, e depois da oitava década de vida, por motivos óbvios, faz-se ameaçadora. A vivência acompanhante da expectativa de um futuro cujo limite está cada vez mais próximo é incômoda. As cogitações metafísicas que teorizam um destino transcendental para o homem amenizam a inquietação provocada pelo sentimento de finitude que constrange a existência, mas não suprime a angústia. Todavia, essa transcendência cogitada (necessariamente unificadora) é o desfecho mais compatível com o Universo totalmente integrado no qual tudo tem a ver com tudo e a morte é a transição da vida para a “vida”, uma vez que a criatura e o Criador são inseparáveis[1]. Comparo o tempo histórico em que as criaturas se movem a uma bolha no seio da eternidade que finalmente a absorve.
-Vô. Foi bom ouvi-lo tratar a questão por esse ângulo. O que você acaba de me dizer implica em admitir um absoluto. Diante desta implicação certamente a fé religiosa é o recurso mais poderoso para apaziguar a angústia da finitude vivenciada. Mas percebo em alguns textos postados no seu blog que para você as especulações metafísicas têm sido um suporte eficaz na construção de sua visão mística do mundo e da consciência!
-Correto. Todavia devo confessar que a experiência mística do amor à verdade que  abraça sem questionar o absoluto em cuja unidade (Deus) se desfazem todas as contradições é o melhor caminho para viver a esperança de vida plena. A pura especulação metafísica conquanto dê suporte a uma expectativa animadora não integra emocionalmente o pensador num todo significativo. Contando apenas com a abordagem filosófica algum esforço pessoal é sempre necessário para sobreviver com dignidade às perdas inerentes à idade, e à consciência da finitude. Seguramente, a “fé  ingênua”[2] é o que mais ajuda no combate à angústia existencial decorrente da vivência de ser perecível. Mas nas horas de crise, muitos dos que não possuímos a robustez da fé ingênua nos apoiamos em especulações metafísicas para dar suporte a aspirações transcendentais (fé crítica).
           
-Vô, você não imagina como sua postura diante da vida me inspira e tranquiliza. Ela me dá a certeza de que por pior que seja envelhecer ainda pode ser uma experiência excitante. Confirma que a existência é uma luta heroica que avalia a inteligência, a criatividade e o valor moral de cada um de nós.
            -Fico feliz de poder contribuir para que você pense assim. No processo de envelhecimento é preciso assumir atitudes muito firmes para superar as dificuldades que sobrevêm com a idade. No vir a ser do idoso restringem-se progressivamente a independência e a produtividade o que o expõe a crises existenciais que podem evoluir para a depressão psíquica ao lhe faltar a capacidade de aceitar as mudanças restritivas. Sem flexibilidade intelectual e afetiva para assumir os percalços do envelhecimento, o idoso percebe a realidade deficitária da velhice como uma tristeza rebelde que faz contraponto com reminiscências românticas perdidas no passado, e revolta-se. Falta-lhe a humildade necessária para assimilar sem constrangimento a dependência progressiva a que leva o envelhecimento, enquanto continua aceso o desejo de viver. É compreensível que o velho não deseje a morte, mas a verdade é que ela se torna cada vez menos mortal para os seus sonhos que estão fenecendo, ou já morreram. Obviamente, viver mais é um anseio espontâneo, o tempo todo ameaçado pela finitude biológica geneticamente programada.
            -Vô. Entendo que sua visão da velhice não oferece alternativa concreta de plenitude existencial aqui na Terra, mas não é pessimista. É uma postura comedida que associa o bom senso ao enfrentamento objetivo da realidade inerente ao “envelhecer”!
-Você é perspicaz meu rapaz. Não preciso enfatizar que para o idoso tudo se torna mais complicado. O equilíbrio biológico é mais delicado e a sensação de estar sadio nunca é completa; o equilíbrio psicológico diante dessa fragilidade é um desafio. Mas o Criador não nos propõe problemas que não possamos resolver, senão com ações, pelo menos com atitudes. Resumindo: o idoso lúcido que conserva intactas as funções psíquicas superiores sente que no plano biológico a vida útil tem um prazo de validade, e constata que o seu já expirou, mas não perde a esperança de aproveitar as virtudes e os talentos remanescentes para arrematar sua existência com dignidade.
    Everaldo Lopes




[1] A criatura não tem a força da subsistência; para existir precisa manter-se unida ao absoluto criador.
[2] De quem nega, preliminarmente, qualquer dúvida quanto à existência de um Absoluto criador; diferente da “fé crítica” de  quem analisa a dúvida inerente à crença no objeto de fé e encontra na realidade evolutiva do mundo e do homem argumentos racionais para refutá-la (a dúvida).