sexta-feira, 10 de outubro de 2014

O Pessimista e o Realista Crítico

Depois de longa ausência dois amigos de infância encontraram-se na sala de espera de um aeroporto, e após os cumprimentos de praxe  logo reataram a antiga intimidade. Ambos inteligentes, mas completamente diferentes. Quarentões profissionalmente bem sucedidos, um era Pessimista (P) e o outro Realista Crítico (RC). Enquanto esperavam a chamada para embarque sentaram lado a lado na grande sala climatizada do aeroporto. Sabiam que a espera seria longa e começaram a conversar sobre os mais variados assuntos. Inteiraram-se sumariamente dos caminhos percorridos por cada um até aquele momento. Sentiam-se emocionalmente muito próximos ao reviverem uma amizade de infância e pela expectativa comum de mais uma aventura aérea. Sim, pois em verdade, por mais seguras que sejam as aeronaves, voar é sempre uma aventura na avaliação secreta da maioria dos homens! Obviamente, o Pessimista era o mais tenso dos dois e, num dado momento do bate-papo desabafou.
P – Não sei como você se sente, mas fico inquieto quando tenho de viajar de avião. Por mínimo que seja o risco, incomoda-me saber-me sobrevoando a superfície do nosso planeta a 12.000 metros de altura, inteiramente à mercê de uma máquina e da habilidade dos pilotos. Se já me sinto ansioso no meu dia a dia, só de saber-me vulnerável, incapaz de controlar inteiramente os eventos do momento seguinte, pior fico ao sair da rotina tendo que enfrentar novos desafios.
RC- Pensando bem, acho que a intranquilidade que você acaba de relatar, com maior ou menor intensidade é uma vivência comum a todos   nós seres conscientes da própria contingência. Quem não sente a fragilidade da vida? Somos felizes quando conseguimos viver a vulnerabilidade aos males do corpo e da mente com espírito crítico capaz de distinguir as possibilidades, das probabilidades. No campo das possibilidades tudo pode acontecer, mas somente os eventos mais prováveis ocorrerão de fato. A imensa maioria dos acontecimentos possíveis só muito raramente se confirma. Porém, não raro o medo pode criar fantasias catastróficas envolvendo possibilidades remotas. Para  evitar o pânico é fundamental administrar as operações subjetivas, interpondo certa distância entre o eu cognoscente e as previsões fantasiosas que ampliam a insegurança pessoal. Esse distanciamento torna possível analisar a situação, e avaliar o que nestas previsões há de real, e de imaginário.
P – Confesso que tenho dificuldade para fazer esse controle. O menor indício do inesperado indesejável, invariavelmente, me provoca uma reação de alarme como se estivesse diante de uma situação real concreta ameaçadora. Gostaria de livrar-me disso, mas é difícil consegui-lo!
RC – Sem dúvida sua confissão evidencia uma forma sofrida de encarar a realidade. Permanentemente sob o peso das incertezas você convive mal com a finitude e a insegurança implícitas no simples ato de existir, vivenciando permanentemente a angústia existencial. Eu costumo utilizar mecanismos racionais de controle para amenizar o mal-estar das incertezas ameaçadoras.
P – A dificuldade que sinto de exercer esse controle me faz pensar que minha predisposição pessimista está associada a uma experiência negativa durante o processo de individuação. Esse tropeço evolutivo explicaria a tendência que me aflige de encarar tudo pelo lado negativo.
RC- Certo. E nos casos mais graves do transtorno comportamental inerente à formação da personalidade a libertação do medo ligado à expectativa do pior implica numa verdadeira superação pessoal. O que muitas vezes levanta a necessidade de ajuda especializada. Entre os pessimistas, o medo escapa ao controle consciente, desestabilizando-os emocionalmente. O sujeito consciente normal e lúcido sabe racionalmente que de momento a momento o perigo de adoecer e morrer é real como possibilidade, mas como probabilidade tem muito pouca chance de acontecer no instante em que desponta o temor. E ao avaliar cada situação procura enfatizar os aspectos positivos mais prováveis, sem se envolver em preocupações inúteis.
P. Evidentemente é fundamental separar criteriosamente a realidade e a fantasia na apreciação da experiência em curso. Mas para isso há que afugentar o pânico, e ser determinado para concentrar toda atenção apenas no real concreto, corrigindo os exageros da inclinação pessimista. Essa é a minha grande dificuldade!  
RC- Diante de sua perplexidade sinto-me encorajado a falar da minha experiência pessoal. Reconheço e assumo que na avaliação das situações que defronto a imaginação pode urdir divagações pessimistas em torno da realidade objetiva. Esta representa à luz da consciência a atualização de uma probabilidade real; a divagação  se perde em fantasias possíveis porém improváveis. Usando o bom senso aposto nos conteúdos racionais objetivos, mantendo a certa distância ou anulando o medo que acompanha os devaneios  pessimistas.
P – Reconheço que esse seria o comportamento ideal. Porém sabe-lo racionalmente sem o suporte emocional correspondente não basta para tornar-me menos temeroso. Sinto-me Intimidado ante a fatalidade de nunca poder livrar-me da incerteza do que está para acontecer! E a preocupação decorrente  desse estado de espírito é torturante.
RC- Sem dúvida, os riscos continuam presentes, disso não se pode fugir. Mas posso afiançar-lhe: quando eles são vividos com um pé na realidade ameaçam menos, e não produzem tanto sofrimento. Como isso funciona? Ora, desde que você não seja vítima de um conflito inconsciente não resolvido absorverá o resultado da análise racional da realidade que reduz a participação imaginária dos riscos possíveis, limitando-os aos prováveis. Assim procedendo, você enfraquece o pânico que é seu verdadeiro inimigo e dessa forma, automaticamente, aliviará a pressão interna da ameaça  de perigo imediato.
P - Começo a entender a lógica psicodinâmica do medo!
RC- Mas isso não é tudo. O inconsciente é ladino e sinuoso, não desiste nunca do seu intento. É preciso ficar alerta porque, alheia aos conteúdos conscientes do sujeito psicológico, a raiz inconsciente do medo vai continuar produzindo “metáforas[1]” e “metonímias[2]” para alimentar a ansiedade. Concordo que muitas vezes se faz necessária a intervenção do Psicanalista. Mas nos casos em que há apenas traços neuróticos na personalidade, poder-se-á tirar proveito da adesão voluntária a uma conduta dirigida pela razão. Ou seja, mesmo quando o temor inflaciona os conteúdos conscientes, ainda é possível que o pessimista selecione, voluntariamente, os conteúdos positivos conscientemente concebidos, concentrando-se neles. E repetindo essa operação mental “n” vezes é possível que se criem novas trilhas  subjetivas na busca de segurança e completude, controlando, pelo menos parcialmente, o medo inerente aos conteúdos sinistros de fantasias inspiradas no inconsciente. É isso que espera alcançar a terapia comportamental. Acredito em que a proposição voluntária de uma expectativa otimista pode influir positivamente nos acontecimentos que estão por vir. Uma das inteligências mais brilhantes da humanidade chegou a afirmar: “A imaginação é tudo, é a prévia das construções do futuro”.[3] Dessa forma, um grande Físico reconhecia a força criativa da imaginação, grandeza abstrata que vai além da própria intuição.
P- Esta é uma boa dica. Vou tentar.
O alto falante anunciou a última chamada para o embarque do Realista Crítico. Os amigos se despediram calorosamente e o Pessimista ficou remoendo as informações que lhe foram passadas naquele encontro.
                                               Everaldo Lopes




[1] Transferência do sentido próprio de uma palavra num contexto determinado, que se fundamenta  numa relação de semelhança subentendida.
[2] Designação de um objeto por palavra designativa de outro objeto que tem com a primeira uma relação de causa e efeito. (Ex.: trabalho por obra)
[3] Albert Einstein