quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Homenagem merecida

*10.02.1902
+04.04.1986
                       Seu Cláudio. Assim era chamado, respeitosamente, por todos quantos o procuravam profissional e socialmente. Farmacêutico licenciado, competente e muito dedicado à profissão foi um exemplo de integridade em todos os sentidos. Na nossa convivência à moda antiga, como primogênito, cedo conheci de perto o rigor ético com que meu pai conduzia a própria existência. Só muito depois é que descobri o outro lado da sua personalidade... Então ele já havia deixado o nosso convívio... Minha irmã (Maléa) encontrara entre seus pertences algumas composições poéticas manuscritas que me mostraram a sensibilidade e capacidade intelectual deste homem diligente e responsável. Lamentei, tardiamente, os hábitos patriarcais que presidiram nossas relações familiares e que não nos facilitaram uma aproximação maior... Durante a minha infância, entre as poucas lembranças dos momentos em que eu me senti emocionalmente mais próximo do meu pai, guardo a memória da expressão de orgulho no olhar ufano que ele não conseguia esconder quando seus filhos se sobressaiam nas tarefas escolares e no comportamento exemplar.
Foi com imenso orgulho filial que descobri as virtudes intelectuais e a sensibilidade estética do meu pai... Ele proporcionou educação superior a todos os seus filhos, mas, por circunstâncias da vida não havia tido este privilégio... Todavia, no seu ramo de atividade destacou-se de tal modo que ganhou insofismável prestígio na cidade onde mantinha seu estabelecimento farmacêutico[1] e nos municípios vizinhos.
Com família numerosa, meu pai acalentava o sonho de educar todos os filhos... sabia que a educação era o caminho para garantir-lhes futuro promissor.   Sei que ele nunca se deixou abater pelas dificuldades que se opunham ao seu projeto, e quanto lutou por tudo aquilo em que acreditava ser possível realizar no seu horizonte familiar, social e político. Não obstante todos os atropelos, manteve até o fim de sua jornada a fé num Deus magnânimo, providencial e compassivo... Empolgado por um otimismo romântico, nunca recuou diante dos obstáculos que as circunstâncias lhe punham no caminho!
            Na verdade, o interesse do meu pai pela poesia começou muito cedo. Comprova-o este soneto sem título, escrito por ele em dezembro de 1923, aos 21 anos de idade. O desabafo de um homem apaixonado, curtindo a dor de um amor distante.
Saudade de quem amo e aqui não vejo,
 dor  que amarga o coração mais forte...
Dias que não trazem o mínimo desejo
de mais viver... só me consola a morte.

Hoje Natal, todos alegres e gozando
do  seu lar, do seu amor, o próprio amor...
E eu sozinho, triste, soluçando,
Carpindo tão somente esta grande dor.

Mas... um consolo; o tempo irá passando...
Como hoje, aurora, me definha o eu,
amanhã  o crepúsculo me fará, pensando...

Como passei, como estou, como persisto
num  eterno delírio de encanto,
sem  saber se morto, sem saber se existo.
                     Cláudio Lopes Ferreira

        Não menos romântica é esta declaração emocionada do amante que tenta descrever seu sentimento, sabendo-se, todavia, incapaz de narrá-lo... Tão grande e tão puro...
                         Querer bem
Querer bem é guardar dentro d’alma escondida,
como  um relicário, a lembrança  de  alguém.
É sonhar acordado e ter suspensa a vida...
É um olhar que não sabe o encanto que tem.

Querer bem é uma crença forte e nunca desmentida.
Aquilo que se espera e que talvez não venha.
É uma dor atroz e nunca compreendida
que a gente vai sentindo e não diz a ninguém.

Querer bem é perdoar o que ninguém perdoa...
Melodia do céu que dentro d’alma soa...
Evangelho de luz que o coração ensina.

É o desejo de ver feliz quem nos maltrata.
É a esperança que consola a dúvida que mata.
E a saudade depois, quando tudo termina.
                     Cláudio Lopes Ferreira
         Moído pelas decepções que a vida lhe impingiu, na sua sétima década de existência seu Cláudio escreveu os versos abaixo transcritos... Neles demonstrando sua perplexidade diante da realidade hostil com a qual deparou, depois de uma longa caminhada existencial calcada na esperança.
                  Minha desilusão.
De que alegria de viver eu era possuído;
não importando a pobreza nem a intensa lida;
mas como quem desperta de um sono mal dormido,
vejo, então, quanta ilusão morreu em minha vida.

Elas eram para mim uma força, uma energia
que  me  faziam um homem forte  e convencido
de, no palco da vida, sem pompa e fantasia,
haver, com vaidade, o meu dever cumprido.

Tudo mudou. Não mais alimento essa ventura,
nem atino a que devo tamanho desalento,
que me leva  a suportar tanta amargura...

Se ao tempo que destrói, mata, invalida;
se à evolução do mundo, reinante no momento;
ou se a mim próprio que não soube proceder na vida.
                     Cláudio Lopes Ferreira
                                      Recife, 27 de junho se 1970
          Provavelmente nesta mesma década, enfrentando as dificuldades práticas que teve de superar a vida inteira, seu Cláudio escreveu, ferido pelas frustrações associadas aos percalços de sua luta heróica:
Ingenuidade
Eu amava o mundo, a natureza,
o trabalho, a menor coisa que fazia;
não sentia o desconforto da pobreza.
O mundo era eterna fantasia.

Eu era vivo, alegre e divertido;
e  no meu presente  e  no meu passado
o menor mal não era permitido,
desejando  Deus sempre do meu lado.

Fiz um mundo de amor e de esperança,
depositando  nele  a minha crença,
mas  tudo não passou de curto sonho.

Restando-me reunir forças que já não tenho,
e conduzir assim o meu pesado lenho...
Enquanto aos pés de Deus o meu destino ponho.
                             Cláudio Lopes Ferreira
                        
Esperança e desengano
Aos sete anos enfermo e bem doente,
quando entreguei a Deus a minha sorte,
a esperança andou à minha frente,
e jamais pensei na minha morte.

Aos quarenta e um anos, quando enfermo,
com moléstia de bem alto porte,
a esperança andou à minha frente,
e jamais pensei na minha morte.

Aos setenta e sete anos com saúde,
sentindo-me perfeitamente forte,
nada mais neste mundo  me  ilude,
e jamais posso esquecer minha morte.
                     Cláudio Lopes Ferreira.
         
              Os pensadores, os homens que enxergam fundo a realidade existencial, geralmente são solitários. Com certeza, num desses momentos em que o espírito procura companhia em si mesmo, meu velho pai escreveu “Matando o tempo”... Quartetos rimados que tratam das contingências da vida humana. A esta altura perdera, já, sua fiel companheira, Dona Lourdes, minha querida mãe, a quem sobreviveu por nove longos anos. O golpe o deixou ainda mais solitário. Desta produção tardia destaco alguns quartetos...

Matando o tempo
      Como é triste viver o fim da vida,
quando mortas estão as ilusões.
É como caminhar na estrada infinda,
ouvindo das corujas os tristes sons,

como viver num mundo diferente,
querendo viver sem gosto de querer,
a viver esta vida tão somente,
para adiar a hora de morrer!
..............................
No futuro já não penso;
muito menos no passado.
Estou vivendo o presente,
só muito cheio de enfado.
.............................
Castelo no pensamento
é bem fácil construir;
mais  fácil é depois o vento
bem depressa destruir.

Pra tudo precisa tempo,
sem tempo nada se faz;
o próprio tempo sem tempo
de nada será capaz.
.............................

Diz prudente o ano velho
ao ano novo que vem,
adeus, adeus ano novo,
que velho serás também.

Do mundo nada se leva
quando  vamos de uma vez;
nossa  alma só se eleva
com  aquilo que a gente fez.
..............................
Agora eu te quero tanto
quanto  quis naquele dia,
quando  derramei meu pranto
quando  te perdi Maria.

No momento não pensei
que  irias e não voltavas;
quando  depois acordei,
é que vi que me faltavas.

Me  faltavas para sempre,
p’ra mim e p’ra meu viver.
Me  transformei  tão  somente
num  triste, n’um pobre ser.

Se este amor fosse medido
pelos olhos da paixão,        
de quantos anos seguidos
não seria a extensão...

Quem amou como eu amei
sabe bem o que é sofrer...
Ainda explicar não sei,
esse  grande bem querer.
........................
Não sei se foram os anos
que me fizeram assim,
ou se foram os desenganos
que foram muitos pra mim.

Triste é não ter esperança,
sem um sopro da ilusão
que  encha de vida a lembrança
que  alimenta o coração.

O verso que faço agora
Já não alegra ninguém;
nele  é  que a  tristeza mora
saudosa de ti meu bem.
               Cláudio Lopes Ferreira

         Não sei quanto se perdeu da produção literária do meu pai que, na sua simplicidade, nunca pensou em publicar o que escrevera. Todavia espero que os versos aqui reproduzidos sejam um registro duradouro da sua sensibilidade, da sua inteligência, e do amor que dedicou à família.
  Cidadão exemplar deixou posteridade numerosa que conta, hoje, com 6 filhos, 20 netos, 40 bisnetos, e 1 trineto... Neles está frutificando o seu exemplo de seriedade existencial, de amor à família e de cidadania atuante.  Até o presente momento, somamos 67 descendentes. Juntos desejamos proclamar nosso carinhoso reconhecimento. Parabéns seu Cláudio!
                                                           Everaldo Lopes



[1] Farmácia Sta. Terezinha, em Quipapá, cidade do interior de Pernambuco.