domingo, 13 de janeiro de 2013

É simples assim



Vamos pensar juntos sem mascarar a realidade e sem pieguice. Por mais que se tente doirar a pílula, a idade avançada será sempre um estado peculiar biológico e psicossocial que gravita a proximidade da morte. De acordo com a ordem natural das coisas, teoricamente, a morte está mais perto dos idosos!
Ao envelhecer, as pessoas sentem dificuldade de elaborar a consciência incômoda das perdas físicas progressivas ao longo dos anos que caracterizam o declínio da vida, anunciando o fechamento do ciclo biológico. A inevitabilidade e irreversibilidade destas perdas sinalizam a finitude que atormenta o homem! Não podendo ignorar as marcas do tempo, a atitude mais racional e objetiva diante deste conhecimento será valorizar o que ainda ficou e não o que se foi com a enxurrada dos anos vividos. Obviamente, para a concretização deste comportamento não basta pensar corretamente, é fundamental aderir emocionalmente à valorização do que restou para viver. Mas, convenhamos, neste quesito todos estamos em débito. Não é fácil ver-se privado dos bens naturais desfrutados na juventude e na maturidade. Contudo não há outro caminho; do nascimento à morte, as mudanças indesejadas também fazem parte do ciclo biológico!
O idoso em pleno gozo de suas aptidões intelectuais, saudável, cônscio das limitações físicas próprias da idade vai, sabiamente, retirando-se com discrição das atividades para as quais lhe falte a disposição de antes, ou que lhe exijam esforço excessivo. Perspicazes, os papais e vovôs entrados em anos percebem que seus descendentes e circunstantes mais jovens reconhecem-lhes as limitações, mas não as comentam. Talvez experimentem inexplicável ansiedade ante a figura fisicamente decadente o seu ente querido[1]. O que torna delicada e menos espontânea a relação entre gerações muito distantes uma da outra. Para evitar conflitos desagradáveis, o velho prudente deverá ser o menos exigente possível no seu convívio com a juventude. É o pudor do idoso consciente de sua condição biológica e psicossocial que vê sem ressentimentos o isolamento imposto pela idade. Ele sabe que será procurado para aconselhar ou dirimir conflitos se houver despertado alguma admiração no espírito dos seus descendentes. Então, este será o momento pedagógico de passar sua mensagem de verdade, justiça e solidariedade. Fora disso, o idoso pé no chão, consciente de sua realidade não estranha o comportamento menos espontâneo, e delicadamente distante dos mais jovens, nos encontros fortuitos.  Ele reconhece a dificuldade de anular a diferença de hábitos e costumes construídos durante as décadas vividas em circunstâncias diferentes por ele mesmo e seus descendentes.
 Cada um de nós à medida que envelhece vai se adaptando á sua nova posição no seio da sociedade. Reconhecendo suas limitações naturais, o idoso será feliz se conseguir aceita-las, mesmo com alguma nostalgia do passado. Neste ponto distinguem-se os idosos que conservam a autocrítica, e os que a perderam parcial ou totalmente. Os primeiros aprendem a ser humildes, e procuram depender no mínimo possível dos seus filhos e netos. Os outros se tornam inconvenientes e por vezes arrogantes; um bom número perde mesmo o discernimento e fica incapaz de gerir a própria existência. Estes se tornam uma sobrecarga imensa para os familiares ou cuidadores, porém disso não se advertem e, portanto, não sofrem.
O cuidado a ser dispensado aos idosos constitui um problema muito atual. É uma questão aberta para a sociedade que de repente envelheceu. O número de idosos cresceu exponencialmente e nem as famílias nem o Estado estão preparados para atender às suas necessidades. Os parentes que se tornam cuidadores enfrentam dificuldades diferentes de acordo com o nível econômico da família e a disponibilidade de tempo e recursos humanos auxiliares que possam contratar. Ao Estado faltam políticas sociais adequadas para acolher o idoso dependente.
  O idoso lúcido vive o desafio heroico de abraçar a velhice com dignidade. Ainda que consiga apenas fazê-la a menos complicada possível. É feliz quando desfruta boa qualidade de vida e tem a manutenção garantida por aposentadoria merecida. Mais feliz ainda quando conserva a memória, a criatividade e o equilíbrio emocional para viver com certa autonomia.
De uma forma ou de outra, a doença e a morte têm uma feição  diferente quando atingem os idosos. São esperadas e não surpreendem ninguém. Embora seja sincero e profundo, o luto das pessoas que ficam acompanha-se da convicção de que chegara o momento de fechar aquele ciclo biológico. A morte resulta de um determinismo natural que vale para todos! A generalização desta realidade alivia o luto! Uma peculiaridade ocorre com as pessoas da mesma idade do morto, amigos, sobretudo, que carregam a dor de assistir ao esfacelamento de sua própria geração.  Já não conto nos dedos os meus coetâneos que se foram desta para melhor!
É simples assim!
Nada há para lamentar dentro da progressão e irreversibilidade do tempo vivido durante o qual construímos nossas existências.  Não há escapatória. O limite temporal de uma vida é irrevogável. Embora óbvia esta realidade precisa ser lembrada porque tendemos a viver como se fôssemos eternos! Todavia, a morte não tem hora marcada. Se ocorrer cedo suprimirá possibilidades de experiências inéditas; se vier tarde exporá à invalidez e à alienação que amesquinham a existência; mas o desfecho biológico é fatal.
Os acontecimentos que afetam a vida são influenciados por circunstâncias biopsíquicas e sociais peculiares que nunca são as mesmas para todas as pessoas. Mas em qualquer situação pode-se trabalhar a realidade pessoal com objetividade e determinação, cultivando na medida do possível a capacidade criativa para viver mais confortavelmente os percalços da existência em qualquer idade. Isso faz toda diferença. Com esta disposição, preservadas as funções psíquicas e na ausência de intercorrências patológicas graves, a velhice se torna menos vexatória. O pior a fazer é resistir inconformado às transformações que acompanham o curso implacável do tempo. Ajuda não pensar muito no além do agora, e alimentar sempre a esperança de poder acrescentar vida aos anos que estão por vir. Enquanto há lucidez não há porque desistir de multiplicar os vínculos criativos com a realidade.
É saudável não dar atenção demasiada a si mesmo. Porque quando moço, pensando a própria vida o indivíduo perde a oportunidade de vivê-la; e para o velho este hábito multiplica as ocasiões de vivenciar as marcas deixadas pelo tempo; isso também o impede viver plenamente o que ainda é possível.
É simples assim!
Afinal, viver e morrer são as duas faces de uma mesma realidade - a vida.  Cada instante vivido é riscado do calendário biológico para sempre, encurtando o porvir. Vive-se morrendo! Momento a momento, vai se dissipando, inevitavelmente, o tempo limitado que se tem para viver.  Este é o preço da própria vida. E só há duas posições a assumir diante desta realidade: viver ruminando a expectativa da morte, ou cultivando a atitude construtiva de quem decide priorizar a vida. Não padece dúvida ser esta última a decisão mais sábia.
Oxalá possamos todos dar suporte, com engenho e arte, a uma atitude realista madura diante da velhice e da morte. Sem descartar as possibilidades infinitas, transtemporais, do “espírito” que no homem se manifesta timidamente nas funções psíquicas superiores, mediante um servomecanismo psicobiológico complexo.
Everaldo Lopes


[1] Por associações inconscientes a figura do idoso pode antecipar na imaginação do jovem a visão do seu amanhã!