domingo, 28 de dezembro de 2014

Fantasia e realidade


            No discurso informal os vocábulos fantasia e realidade referem-se, respectivamente, ao imaginário e ao concreto. Todavia contextualizadas na experiência humana, fantasia e realidade se fundem, numa vivência singular.
Mergulhando na intimidade subjetiva descobrimos que existir não é simplesmente sobreviver, mas viver por algo que transcende  o  vir a ser aqui-e-agora. A sobrevivência apoia-se em recursos biológicos automáticos e reflexos primários; mas existir implica na elaboração e construção de projetos estético-artísticos e ético-comunitários que ultrapassam o simples ato de viver e o justificam mediante a consagração de valores estéticos, morais e sociais. Nestes projetos a criatividade se traduz em atitudes e atos impregnados de um sentido social responsavelmente assumido.
A  realidade humana dispõe de dois  focos, um racional e  outro afetivo intuitivo. No primeiro destaca-se  a objetividade  limitada ao espaço-tempo cósmico; no segundo projeta-se a sensibilidade  que se prolonga  na magia da intuição e da imaginação.  Por sua condição de ser consciente e responsável ávido de um sentido definitivo para sua existência, o  homem se utiliza dos recursos que convergem nestes dois focos para contextualizar-se num todo absoluto significativo.  Nesse dinamismo existencial, fantasia e realidade são entidades  justapostas na atividade psicobiológica do vir a ser humano.  No plano cósmico a realidade se enclausura num mundo suicida  que caminha conforme a  2ª lei da termodinâmica para a completa desordem de todos os sistemas físicos, desordem dimensionada pela entropia[1]. No campo da sensibilidade manifesta-se a criatividade humana capaz de transformar a Natureza. Não há como  compatibilizar a criatividade humana com a limitação dos determinismos físico-químicos  biológicos para os quais se espera um desfecho entrópico[2]. Se a realidade universal se reduzisse à perspectiva da “morte térmica”, não haveria como justificar o arremate coerente  da ordem evolutiva na organização da matéria desde o big-bang até a consciência reflexiva. Essa coerência sugere a interveniência de um anti-acaso, tão grande é o acúmulo de coincidências bem sucedidas durante todo o processo evolutivo! A simultaneidade destas coincidências em prol da complexidade crescente levanta a expectativa de um desfecho diferente, mais criativo e grandioso para o processo evolutivo. A especulação sobre a complexidade crescente da Evolução revela uma intenção que por sua vez faz supor uma consciência universal cuja natureza transcendental  ultrapassa os limites de qualquer demonstração. Tudo isso conduz à certeza de que o paradigma racional não comporta a realidade toda.  Esta é muito mais  ampla e se reflete  pujante na intuição  de um todo significativo absoluto que não exclui o racional, mas vai além  do puramente sensível. Se o destino do homem é superar-se sempre, transcendendo-se pelo exercício da consciência reflexiva  pode-se inferir que seu último fim é compatível com um absoluto inalcançável pela razão, mas absolutamente necessário para consumar o fenômeno humano. Este absoluto intangível afirmado por um ato de fé ganha o status de realidade na medida em que inspira o ser consciente a abraçar a transcendência absoluta na qual logra um sentido definitivo. Precisamos criar o que não vemos[3], para superar  a insuportável limitação racional que deixa de fora grande parte da nossa própria realidade humana. E a força desta crença alimenta a dimensão transcendental do homem.
            Os sentidos auxiliam no conhecimento da realidade palpável da Natureza. Mas a capacidade criativa da imaginação é que confere um sentido a esta mesma realidade. Nessa perspectiva será imprópria a alternativa: fantasia ou realidade! De fato, à luz da análise fenomenológica da existência, fantasia e realidade são dimensões de um mesmo processo no qual ambas se integram completando-se misteriosa e mutuamente.
A tentativa de insistir em projetar a existência pessoal no plano  puramente lógico, racional e objetivo leva inevitavelmente ao fosso do absurdo vivencial, ou seja, ao desespero sem retorno de ser para nada. Aflição que é temporariamente camuflada por metas provisórias urgentes impostas como exigência mínima de sobrevivência.  O esforço para sobreviver absorve o homem na conquista do que é fundamental para manutenção da vida, envolvendo-o em questões práticas que exigem pronta solução. Não é à toa que  o maior índice de suicídios ocorre exatamente nos países mais desenvolvidos onde os problemas  materiais imediatos[4] de manutenção da vida foram resolvidos. Com a sobrevivência confortável garantida se torna mais premente a aspiração de superar a finitude, celebrando valores transcendentais em busca de um sentido definitivo para a “existência” pessoal. É maior então a exigência para a construção da humanidade. Quando falha a conquista do primeiro objetivo, a fome física maltrata e pode até matar, mas quando o homem não alcança o segundo objetivo a fome de sentido mata o desejo de viver, o que transforma a existência numa tarefa tão desesperadora que a própria morte se torna para a consciência inquieta e abandonada à sorte entrópica, uma maneira equivocada de o homem posicionar-se diante do aparente sem sentido de tudo. Obviamente, essa decisão desesperada não coincide com o objetivo a que se propõe a Evolução! Diante desse conflito existencial vale a pena  lembrar que a tarefa magna do ser consciente é harmonizar na existência pessoal as dimensões  material e  espiritual da condição humana, integrando a “realidade” e a “fantasia”, ao consolidar a afirmação criativa de fé num Absoluto significativo que dignifica a existência pessoal e dá sustentação à solidariedade universal.

                                               Everaldo Lopes




[1] Entropia- medida da quantidade de desordem de um sistema
[2] Relativo à desordem da matéria
[3] O que significa crer para Miguel de Unamuno
[4] Alimentares, sanitários, educacionais, de segurança , etc,