segunda-feira, 20 de agosto de 2012

O desejo e o dinamismo existencial


O “sim” e o “não” autênticos refletem escolhas pautadas por valores responsavelmente assumidos. Obviamente, perde autenticidade quem afirma ou nega com o objetivo de mascarar interesses espúrios. Mesmo assim o protagonista fraudulento pode teatralizar a impostura, e o seu interlocutor não ter como desmascará-lo. Por má-fé o mentiroso faz uso de argumentos inescrupulosos, inviabilizando o diálogo. Para evitar discussões estéreis a vítima da mentira astuciosa deverá, não sem algum esforço interior, conter a indignação no limite da cortesia e reafirmar serena e decididamente seu ponto de vista, sem alimentar a expectativa de alcançar uma interlocução proveitosa. Sua serenidade sábia fundamenta-se na convicção de que a realidade possui uma consistência ontológica cuja essência a mentira não pode alterar.
Somos livres para escolher e temos a obrigação moral de adotar comportamentos ilibados, embora sejamos todos susceptíveis de nos corrompermos. Daí a possibilidade permanente de tropeços éticos. Tudo dependerá do ânimo pessoal para superar as fraquezas humanas. Diante da falta cometida pelo “outro” a prática da compassividade vai além da postura serena à medida que o interlocutor injuriado acrescenta o perdão à compreensão da dinâmica psicossocial do comportamento condenável. Quem perdoa reconhece humildemente que ninguém é perfeito, e sabe que na profundidade subjetiva do sujeito consciente o “sim” e o “não” escondem dúvidas que jamais serão esclarecidas! Além do que, ao perdoar está se libertando de afogar-se na ira e no ódio.
O homem é um animal inteligente que afinal aprendeu a ler algumas das leis que governam o Universo. E esse conhecimento lhe permite trabalhar a Natureza, e a realidade psicossocial na qual está contextualizado, em proveito próprio e no da espécie. Assim, desbrava o mundo e edifica civilizações. Na corrida civilizatória o homem não sabe a quem passará o bastão, mas espera que alguém o tomará e a memória cultural dará  continuação às conquistas de cada geração, que repercutem sobre as seguintes. Afinal, todos somos responsáveis pelo destino da Humanidade.
No processo de interação consciência / mundo um imenso edifício cultural foi construído por conta da vontade humana heroica de seguir em frente, abrindo novos horizontes mediante conquistas científicas, tecnológicas e políticas... Avanços que assegurariam bem estar a um número cada vez maior de indivíduos no seio da coletividade, não fora a falta de uma organização política, social e econômica suficientemente inclusiva. No âmbito deste processo a intenção solidária faz toda diferença na prática existencial, impondo um “valor”[1] para ordenar as escolhas pessoais.
Uma vez isolado do seu contexto civilizacional o homem é uma criatura destoante da ordem cósmica. Visto sem o envolvimento com os valores que representam uma interface entre a consciência reflexiva e o mundo, sua existência não teria sentido[2]. Só o homem engajado na unidade evolutiva universal assume a dignidade ética que lhe cabe. Nesta perspectiva, participando de um todo significativo, o homem salva-se de ser para nada... Vivendo sua condição de ser consciente e responsável dará sentido à própria existência, construindo-a em torno de valores que o transcendem, e orientam o seu comportamento. Não há um modelo natural do homem; ele se constrói através das suas escolhas, decisões e ações. 
A subjetividade criativa emerge então como cerne da existência, e por seu caráter abstrato abre espaço para especulações metafísicas, evidenciando-se no vir a ser consciente uma transcendência inexplicável pelas leis que regem o universo material. Transcendência que remete à ideia de liberdade como fundamento da própria consciência[3]. Afinal, ter consciência é transcender-se constantemente...   o que equivale a libertar-se continuamente de algo, para alcançar alguma coisa diferente. Este movimento subjetivo dá lugar à especulação sobre um substrato espiritual eterno universal escondido na organização biológica na qual se manifesta a consciência sob a forma de um “movimento intencional voltado para o mundo”[4]. Esta especulação pressupõe um absoluto transracional cuja afirmação se sustenta necessariamente num ato de fé. Uma vez que é impossível afirmar ou negar racionalmente o “absoluto”, só uma crença firme o reconhece como Verdade, ou seja, um “Princípio” de certeza que liberta o ser consciente da insegurança, nas suas escolhas e decisões existenciais. Este “Princípio” corresponde a um Valor assumido pelo próprio homem no qual ele “aposta todas as fichas”. Então, crendo ele o cria, ao afirmar o que não vê, e dá suporte ao sentido de sua própria existência. Esta dinâmica faz da “existência” um empreendimento de risco. E o “desejo” é o motor da “existência”, derrubando a resistência ao temor de arriscar.
Assim, entre a razão e a o homem constrói sua história pessoal, e envelhece, frequentemente sem realizar o “encontro existencial” com que sonhara. Não lhe morre o desejo, e nem perde a esperança de plenitude, mas vive a realização deste sonho como “...Um adiamento eterno que se espera, / Numa eterna esperança que se adia...”[5]
Enfim, atropelado pela precariedade da própria finitude o homem fica sensível ao pensamento místico. Abre-se-lhe a porta dessa experiência, quando se lhe manifesta na subjetividade insegura o desejo de acolhimento por um Poder Absoluto paternal e provedor no seio do qual se sentiria protegido. Mas desejar esta acolhida só beneficiará o sujeito consciente se houver a disposição de completa rendição existencial... a verdadeira entrega a um Poder maior, que exige total autenticidade. Só assim o desejo que dinamiza a existência será humilde, não se arrogará o direito de fazer jus a qualquer recompensa. A entrega há que ser gratuita para ser verdadeira. Nesta entrega o homem há que desejar amando, e não pedindo ou mandando. A entrega ao amor divino implica numa vivência sutil de bem-aventurança que projeta o homem para além do tempo, numa intimidade espiritual resultante da perfeita reverência da criatura à majestade divina, sedimentada na cumplicidade confiante criatura / criador. Nesta entrega ao Absoluto, os componentes biológico, psicológico e espiritual do homem se integram num desejo humilde de completude como fonte de inspiração existencial.
 Everaldo Lopes


[1]A solidariedade
[2] Sentido aqui considerado não apenas em sua dimensão existencial  histórica inerente ao desejo de satisfazer uma falta objetiva,  mas também e principalmente em sua dimensão  metafísica de  preencher  a “falta” original representada pelo   nada absoluto sobre o qual se constrói a existência.

[3] Esta foi a grande intuição de Sartre ao interpretar criativamente a Fenomenologia de Husserl.
              [4] Definição fundamentada  na Fenomenologia de Husserl. 
[5]Raul de Leoni em seu soneto “Legenda dos Dias”.

Um comentário:

  1. Painho,
    Dentre os vários temas que o seu texto aborda, ficarei com o complexo tema da autenticidade. E como é difícil a conquista dessa autenticidade! Essa dificuldade passa não só porque desconhecemos muito de nós mesmos, mas, também porque o mundo cria convenções, estabelece papéis, define normas e leis que nem sempre correspondem aos nossos projetos e desejos existenciais. Nesse sentido, a conquista da independência existencial, a capacidade de ser, sem estar preso aos determinismos e convenções externas, pode ser um dos principais desafios para aqueles que decidem pela coragem de ser autêntico, mesmo que para isso tenha que pagar o preço com a própria vida.
    Já concordamos que a vida em sociedade exige a feitura de renúncias, de composições e articulações no âmbito das relações sociais e interpessoais. A descoberta de que para compor o tecido social é preciso estabelecer limites no campo dos desejos individuais foi um passo decisivo para o processo civilizacional. Essa mesma descoberta deixou uma “regra de ouro” ainda hoje vigente em nossa sociedade: preciso impor limites aos meus desejos, pois o exercício de minha liberdade exige que considere o outro com quem partilho minha existência. Assim, as interdições passam a ser, de fato, uma regra de ouro para a convivência coletiva, mas, inevitavelmente, se coloca como uma fonte de frustração no campo dos nossos desejos individuais.
    Todas essas renúncias pulsionais precisam acontecer a despeito de não termos garantias de que agindo dessa forma não seremos vítimas de “tropeços éticos”, de atos inescrupulosos e mentirosos que inviabilizam o encontro dialógico entre os sujeitos. Afinal de contas, as “fraquezas humanas” são constitutivas da própria condição humana; e nenhuma convenção social apaga a inscrição da insuficiência e precariedade dos seres humanos. Evidentemente, quanto mais sólidos os valores e princípios norteadores das ações humanas no campo social, ficaremos menos expostos aos golpes, indecências, indelicadeza e ocorrências de descortesias nas relações socais e interpessoais.
    A complexidade dos nossos tempos reside no fato de estarmos vivendo os efeitos de uma certa frouxidão ética e moral onde muitos não se sentem responsáveis pela “passagem do bastão” para as novas gerações; essa passagem seria indispensável para a transmissão de uma memória cultural construída com muitos erros e acertos no percurso da história. Nesse sentido, é muito desconcertante assistir a esse descompromisso histórico, bem presente nas gerações de jovens que, pelo menos aparentemente, parecem “viver para o nada”, sem qualquer compromisso com o futuro, aprofundando o sentimento da vida como um “empreendimento de risco”.
    Fico pensando, meu Velho Pensador, se essa postura existencial comprometeria para sempre a raríssima experiência mística onde o sujeito experimenta o pleno “acolhimento” e a completa rendição existencial em relação ao divino. Alguns dizem que pagaremos para sempre pelo anúncio da morte de Deus. Agindo dessa forma, a humanidade teria perdido a possibilidade de experimentar a indizível experiência mística através da qual se vive a plenitude da entrega e da “cumplicidade confiante” entre criador e criatura.
    Assim, como continuo acreditando em Deus, quero acreditar que um dia poderei ser contemplada por esse milagre! Será que para viver essa experiência teria que pagar o preço de viver com autenticidade?
    Tomara que minhas reflexões façam sentido para você. Vivo um tempo de muitas inquietações e o seu texto ajudou a pensar essas questões..
    Beijo da filha,
    Ruth.

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