O “sim” e o “não” autênticos refletem escolhas
pautadas por valores responsavelmente assumidos. Obviamente, perde
autenticidade quem afirma ou nega com o objetivo de mascarar interesses espúrios.
Mesmo assim o protagonista fraudulento pode teatralizar a impostura, e o seu interlocutor
não ter como desmascará-lo. Por má-fé o mentiroso faz uso de argumentos
inescrupulosos, inviabilizando o diálogo. Para evitar discussões estéreis a
vítima da mentira astuciosa deverá, não sem algum esforço interior, conter a
indignação no limite da cortesia e reafirmar serena e decididamente seu ponto
de vista, sem alimentar a expectativa de alcançar uma interlocução proveitosa. Sua
serenidade sábia fundamenta-se na convicção de que a realidade possui uma
consistência ontológica cuja essência a mentira não pode alterar.
Somos livres para escolher e temos a
obrigação moral de adotar comportamentos ilibados, embora sejamos todos susceptíveis
de nos corrompermos. Daí a possibilidade permanente de tropeços éticos. Tudo
dependerá do ânimo pessoal para superar as fraquezas humanas. Diante da falta cometida
pelo “outro” a prática da compassividade vai além da postura serena à medida
que o interlocutor injuriado acrescenta o perdão à compreensão da dinâmica psicossocial
do comportamento condenável. Quem perdoa reconhece humildemente que ninguém é
perfeito, e sabe que na profundidade subjetiva do sujeito consciente o “sim” e
o “não” escondem dúvidas que jamais serão esclarecidas! Além do que, ao perdoar
está se libertando de afogar-se na ira e no ódio.
O homem é um animal inteligente que
afinal aprendeu a ler algumas das leis que governam o Universo. E esse
conhecimento lhe permite trabalhar a Natureza, e a realidade psicossocial na
qual está contextualizado, em proveito próprio e no da espécie. Assim, desbrava
o mundo e edifica civilizações. Na corrida civilizatória o homem não sabe a quem
passará o bastão, mas espera que alguém o tomará e a memória cultural dará continuação às conquistas de cada geração, que
repercutem sobre as seguintes. Afinal, todos somos responsáveis pelo destino da
Humanidade.
No processo de interação consciência / mundo um imenso edifício
cultural foi construído por conta da vontade
humana heroica de seguir em frente, abrindo novos horizontes mediante
conquistas científicas, tecnológicas e políticas... Avanços que assegurariam bem
estar a um número cada vez maior de indivíduos no seio da coletividade, não
fora a falta de uma organização política, social e econômica suficientemente
inclusiva. No âmbito deste processo a intenção solidária faz toda diferença na
prática existencial, impondo um “valor”[1]
para ordenar as escolhas pessoais.
Uma vez isolado do seu contexto
civilizacional o homem é uma criatura destoante da ordem cósmica. Visto sem o envolvimento
com os valores que representam uma
interface entre a consciência reflexiva e o mundo, sua existência não teria
sentido[2]. Só
o homem engajado na unidade evolutiva universal assume a dignidade ética que
lhe cabe. Nesta perspectiva, participando de um todo significativo, o homem salva-se
de ser para nada... Vivendo sua condição de ser consciente e responsável dará
sentido à própria existência, construindo-a em torno de valores que o
transcendem, e orientam o seu comportamento. Não há um modelo natural do homem;
ele se constrói através das suas escolhas, decisões e ações.
A subjetividade criativa emerge então
como cerne da existência, e por seu caráter abstrato abre espaço para
especulações metafísicas, evidenciando-se no vir a ser consciente uma
transcendência inexplicável pelas leis que regem o universo material. Transcendência
que remete à ideia de liberdade como fundamento
da própria consciência[3]. Afinal,
ter consciência é transcender-se constantemente... o que equivale a libertar-se continuamente de algo, para alcançar alguma coisa
diferente. Este movimento subjetivo dá lugar à especulação sobre um substrato
espiritual eterno universal escondido na organização biológica na qual se
manifesta a consciência sob a forma de um “movimento intencional voltado para o
mundo”[4]. Esta
especulação pressupõe um absoluto transracional cuja afirmação se sustenta
necessariamente num ato de fé. Uma vez que é impossível afirmar ou negar
racionalmente o “absoluto”, só uma crença firme o reconhece como Verdade, ou
seja, um “Princípio” de certeza que liberta o ser consciente da insegurança, nas
suas escolhas e decisões existenciais. Este “Princípio” corresponde a um Valor assumido
pelo próprio homem no qual ele “aposta todas as fichas”. Então, crendo ele o
cria, ao afirmar o que não vê, e dá suporte ao sentido de sua própria
existência. Esta dinâmica faz da “existência” um empreendimento de risco. E o
“desejo” é o motor da “existência”, derrubando a resistência ao temor de
arriscar.
Assim, entre a razão e a fé o homem constrói
sua história pessoal, e envelhece, frequentemente sem realizar o “encontro existencial” com que sonhara. Não
lhe morre o desejo, e nem perde a esperança de plenitude, mas vive a realização
deste sonho como “...Um adiamento eterno que se espera, / Numa eterna esperança
que se adia...”[5]
Enfim, atropelado pela precariedade da
própria finitude o homem fica sensível ao pensamento místico. Abre-se-lhe a
porta dessa experiência, quando se lhe manifesta na subjetividade insegura o desejo
de acolhimento por um Poder Absoluto paternal e provedor no seio do qual se sentiria
protegido. Mas desejar esta acolhida só beneficiará o sujeito consciente se
houver a disposição de completa rendição existencial...
a verdadeira entrega a um Poder maior, que exige total autenticidade. Só assim o
desejo que dinamiza a existência será humilde, não se arrogará o direito de
fazer jus a qualquer recompensa. A entrega há que ser gratuita para ser
verdadeira. Nesta entrega o homem há que desejar
amando, e não pedindo ou mandando. A entrega ao amor divino implica numa vivência sutil de bem-aventurança que
projeta o homem para além do tempo, numa intimidade espiritual resultante da
perfeita reverência da criatura à majestade divina, sedimentada na cumplicidade confiante criatura /
criador. Nesta entrega ao Absoluto, os componentes biológico, psicológico e espiritual
do homem se integram num desejo
humilde de completude como fonte de inspiração existencial.
Everaldo Lopes
[1]A
solidariedade
[2]
Sentido aqui considerado não apenas em sua dimensão existencial histórica inerente ao desejo de satisfazer uma
falta objetiva, mas também e
principalmente em sua dimensão
metafísica de preencher a “falta” original representada pelo nada
absoluto sobre o qual se constrói a existência.
[3]
Esta foi a grande intuição de Sartre ao interpretar criativamente a
Fenomenologia de Husserl.
[5]Raul
de Leoni em seu soneto “Legenda dos Dias”.
Painho,
ResponderExcluirDentre os vários temas que o seu texto aborda, ficarei com o complexo tema da autenticidade. E como é difícil a conquista dessa autenticidade! Essa dificuldade passa não só porque desconhecemos muito de nós mesmos, mas, também porque o mundo cria convenções, estabelece papéis, define normas e leis que nem sempre correspondem aos nossos projetos e desejos existenciais. Nesse sentido, a conquista da independência existencial, a capacidade de ser, sem estar preso aos determinismos e convenções externas, pode ser um dos principais desafios para aqueles que decidem pela coragem de ser autêntico, mesmo que para isso tenha que pagar o preço com a própria vida.
Já concordamos que a vida em sociedade exige a feitura de renúncias, de composições e articulações no âmbito das relações sociais e interpessoais. A descoberta de que para compor o tecido social é preciso estabelecer limites no campo dos desejos individuais foi um passo decisivo para o processo civilizacional. Essa mesma descoberta deixou uma “regra de ouro” ainda hoje vigente em nossa sociedade: preciso impor limites aos meus desejos, pois o exercício de minha liberdade exige que considere o outro com quem partilho minha existência. Assim, as interdições passam a ser, de fato, uma regra de ouro para a convivência coletiva, mas, inevitavelmente, se coloca como uma fonte de frustração no campo dos nossos desejos individuais.
Todas essas renúncias pulsionais precisam acontecer a despeito de não termos garantias de que agindo dessa forma não seremos vítimas de “tropeços éticos”, de atos inescrupulosos e mentirosos que inviabilizam o encontro dialógico entre os sujeitos. Afinal de contas, as “fraquezas humanas” são constitutivas da própria condição humana; e nenhuma convenção social apaga a inscrição da insuficiência e precariedade dos seres humanos. Evidentemente, quanto mais sólidos os valores e princípios norteadores das ações humanas no campo social, ficaremos menos expostos aos golpes, indecências, indelicadeza e ocorrências de descortesias nas relações socais e interpessoais.
A complexidade dos nossos tempos reside no fato de estarmos vivendo os efeitos de uma certa frouxidão ética e moral onde muitos não se sentem responsáveis pela “passagem do bastão” para as novas gerações; essa passagem seria indispensável para a transmissão de uma memória cultural construída com muitos erros e acertos no percurso da história. Nesse sentido, é muito desconcertante assistir a esse descompromisso histórico, bem presente nas gerações de jovens que, pelo menos aparentemente, parecem “viver para o nada”, sem qualquer compromisso com o futuro, aprofundando o sentimento da vida como um “empreendimento de risco”.
Fico pensando, meu Velho Pensador, se essa postura existencial comprometeria para sempre a raríssima experiência mística onde o sujeito experimenta o pleno “acolhimento” e a completa rendição existencial em relação ao divino. Alguns dizem que pagaremos para sempre pelo anúncio da morte de Deus. Agindo dessa forma, a humanidade teria perdido a possibilidade de experimentar a indizível experiência mística através da qual se vive a plenitude da entrega e da “cumplicidade confiante” entre criador e criatura.
Assim, como continuo acreditando em Deus, quero acreditar que um dia poderei ser contemplada por esse milagre! Será que para viver essa experiência teria que pagar o preço de viver com autenticidade?
Tomara que minhas reflexões façam sentido para você. Vivo um tempo de muitas inquietações e o seu texto ajudou a pensar essas questões..
Beijo da filha,
Ruth.