domingo, 2 de setembro de 2012

A essência do homem



Ao nascer o ser humano carrega em potencial a consciência e a liberdade; depois, define ao longo do tempo o “homem” que será. Mediante a capacidade de pensar e refletir o ser consciente faz escolhas entre as alternativas que se apresentam na sua circunstância, construindo-se a partir da própria existência. Neste sentido tem razão Sartre ao anunciar que no homem “a existência precede a essência”.
Na perspectiva existencialista há que distinguir a vertente materialista, da cristã. Em ambos os casos a consciência e a liberdade estão intimamente ligadas e são fundamentais. Mas na linha espiritualista, o exercício da liberdade deve ater-se a uma ordem inerente às Leis eternas da Criação, que precedem a existência e permanecem influindo no vir a ser existencial, sob a forma de valores universais formadores do pensamento humanístico e posturas éticas correspondentes.  
Para orientar-se no seu devir, o homem necessita de critérios seguros que o capacitem a julgar e decidir. Pressionado por esta necessidade, filosofa, busca descobrir por meio da razão os critérios fidedignos de valor, mas permanece atônito ante a responsabilidade que a liberdade lhe impõe. O mistério do “ser” esconde a verdade primordial, suporte absoluto dos valores essenciais infalíveis do comportamento humano. Mas ninguém explica o “ser em si”, nem consegue comunicar a intuição através da qual ele se revela ao homem. O cientista debruça-se sobre o Universo, disposto a esmiuçá-lo e encontrar o fundamento racional do “ser”; esbarra, porém, no fenômeno que manifesta o “ente” sem revelar a sua essência. O místico mergulha em dimensões vertiginosas da subjetividade, e emerge com a vivência de maravilhas incomunicáveis. Nem o cientista mais criativo e determinado, nem o místico mais espiritualizado são capazes de traduzir numa linguagem dialética o enigma do “ser”.  É emblemático o exemplo de São Tomaz de Aquino (1225 – 1274), o Filósofo mais importante da Idade Média. Segundo seus biógrafos, ao despertar de um êxtase místico ele teria confidenciado a um discípulo dileto que não escreveria mais nada, porque tudo que havia escrito lhe “parecia palha” ante o que vira na sua experiência mística. É importante registrar que a esta altura ele já publicara os inúmeros e alentados volumes da Suma Contra os Gentios e da Suma Teológica, suas principais obras.
O “ser” enquanto “ser” é indefinível, todavia todos vivem a realidade deste enigma sob o impacto de um olhar compassivo e amoroso, num abraço emocionado, ouvindo uma melodia tocante... Vivendo estes momentos ímpares, por um átimo, o homem vislumbra a transcendência do “ser” na vivência de plenitude do “si mesmo”[1], uma experiência pessoal intraduzível, mas indiscutível. Vivência a partir da qual se abrem possibilidades infinitas de realização existencial, mediante escolhas livres que, rigorosamente, devem ser responsáveis em relação aos valores universais que presidem a dinâmica social do homem. A criatividade no exercício da liberdade consciente tem suas raízes nos estratos profundos da psique individual. Mas só quando o homem vive em plenitude a relação com os “outros” e com o mundo, suas virtudes criativas ganham dimensão objetiva.
Parece óbvio o fosso que separa a materialidade do servomecanismo biopsíquico (o Sistema Nervoso Central), e suas funções psíquicas superiores, intelectual, afetiva e volitiva. Mas as especulações cosmogônicas evolutivas contradizem a separação entre a consciência e o mundo... O homem é um prolongamento do cosmo; através dele o Universo toma conhecimento de si mesmo. Portanto, por definição, a separação entre a consciência (espiritual), e o mundo físico é apenas uma aparência fenomênica, tendo em vista a ideia que repousa na crença em um absoluto, Princípio único constitutivo de toda a realidade.
O homem comum vive a unidade consciência / mundo nas práticas familiares, sociais, profissionais, e políticas, definidas em modelos culturais. Nesta trilha, ao longo da sua História, o ser consciente, constrói uma cultura feita de tabus, mitos, hábitos e costumes, supostamente capazes de atender à necessidade de entender a realidade e cultivar valores que deem um “sentido” às escolhas feitas na condução do vir a ser existencial. Assim a cultura emerge como uma linguagem através da qual o homem se relaciona com os outros e com a Natureza. Inventariando a interpretação dos fenômenos físicos e psíquicos, a cultura cria uma interface entre a consciência e o mundo, aproximando-os. No vir a ser temporal a conexão assim construída se traduz, objetivamente, nas transformações adaptativas que afetam a Natureza e o homem, com reflexos na sua organização social. Neste sentido a “linguagem” comunitária configura o ideal de convivência humana fundamentada na prática da solidariedade expressa nas relações interpessoais amorosas, verdadeiras e justas. Mesmo cumprindo formalmente seu papel social, familiar, profissional e político, sem viver a experiência solidária o homem termina sua jornada histórica, consciente do dever cumprido, mas cônscio, também, de não haver alcançado a plenitude existencial almejada. Donde se conclui que a realização plena da Humanidade repousa na prática do amor que transcende o apelo dos sentidos, e vai além das interações puramente éticas. A razão é indispensável para quantificar o mundo físico e distinguir o verdadeiro e o falso, expandindo as possibilidades humanas de resolver problemas práticos. Mas a verdadeira realização do homem é eminentemente intuitiva afetiva, liberta da tirania dos sentidos, uma experiência mística. Nesta perspectiva a razão e o sentimento não conflitam necessariamente; porém não basta que afinem pelo mesmo diapasão, é preciso que ambos se integrem na intuição reveladora da unidade pessoal que os envolve. Na construção desta unidade[2] a razão e o sentimento se complementam nos seus limites interagindo livremente. Assim, a essência do homem é criativa, algo mais do que a interação de funções psíquicas complexas. Excede qualquer definição formal, e, paradoxalmente, é imanente e transcendente aos fenômenos psíquicos superiores que tornam possível o exercício da consciência e da liberdade.
 Everaldo Lopes


[1] No sentido Junguiano de “self”; centro da psique.
[2] Tendo em vista a dificuldade dialética de discorrer verbalmente sobre este tema, dele falaremos alegoricamente no texto seguinte: “Amar com a cabeça e pensar com o coração”.

8 comentários:

  1. Painho,
    Entendi, a partir de suas reflexões, que nascemos com a potência de ser um sujeito pleno, capaz de fazer escolhas livres, criativas e responsáveis. Sabemos, no entanto, que existe a possibilidade de passarmos por nossa "jornada histórica" sem ter experimentado o exercício da liberdade com responsabilidade, desconhecendo os valores humanitários e os princípios éticos que nos possibilitariam exercer a capacidade de pensar e refletir para poder julgar e decidir a vida em direção à realização de uma plenitude existencial.
    Penso que seria importante fazer essa discussão filosófica levando em consideração as condições históricas, sociais, políticas, econômicas e culturais em que os sujeitos estão inseridos, pois essas condições podem constituir fatores facilitadores ou restritivos para o devir e a realização existencial dos humanos. Não podemos negar que o acesso ao capital econômico, social, cultural e intelectual interferem nas possibilidades do vir a ser dos sujeitos no campo existencial. Por isso proponho essa reflexão, ainda que entenda que a experiência da plenitude de práticas existenciais e o encontro existencial não está restrita aos que disfrutam de bens econômicos e da inclusão social.
    Trago esses elementos para tentarmos refletir sobre a complexidade de perceber esses aspectos filosóficos e existências na vida daqueles que estão submetidos a condições sociais objetivas marcadas pela extrema precariedade, onde a experiência de exclusão, de não reconhecimento e desamparo fazem do cotidiano um fardo, uma dor e um sofrimento para além do que está posto em termos da fragilidade e precariedade da própria condição humana.
    Até que ponto a criatividade e a inventividade ficam suspensas mediante tantas privações, ou seria exatamente o contrário: as privações ampliam as possibilidades de criar e inventar porque essa seria uma exigência indispensável para a produção da própria sobrevivência? Como inserir essa discussão filosófica e existencial na vida dos pobres e excluídos? Até que ponto poderíamos afirmar que mesmo nas condições de exclusão, os sujeitos podem exercer suas potencialidades criativas que ampliariam as possibilidades de realização existencial?
    ...

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  2. ...
    Penso que o acesso ao capital cultural, ao capital econômico, ao capital social e intelectual põe os sujeitos em posições diferenciadas no espaço social; mas essas condições objetivas não suspendem a possibilidade dos sujeitos vivenciarem práticas de solidariedade no âmbito de suas relações sociais e interpessoais. Aliás, é mais comum encontrarmos essa prática de solidariedade entre os pobres que entre os ricos; pois, a disposição de dividir o pouco que se tem com o outro é mais comum do que a disposição de dividir o muito que tem com os outros.
    Não estou supondo que os pobres e excluídos não possam encontrar um “sentido às escolhas feitas na condução do vir a ser existencial”. Às vezes até sinto que os pobres, levando a vida com mais simplicidade, conseguem encontrar um sentido para a vida que alguns milionários não conseguem. O fato é que não há um sentido único para a existência, e cada um terá que encontrar o seu “tesouro”. O que compõe esse tesouro são múltiplos objetos ou sentimentos, e “um” único tesouro não bastaria para cobrir todas as expectativas e desejos existenciais, pois, somos marcados por um singularidade absolutamente contingencial.
    Você afirmou que a “linguagem comunitária conjuga o ideal da convivência humana fundamentada na prática da solidariedade expressa nas relações interpessoais amorosas, verdadeiras e justas”. Nesses termos, não seria a condição econômica que restringiria a experiência amorosa e solidária entre os humanos. Da mesma forma, a experiência mística não depende de circunstâncias objetivas, mas sim, de uma disposição subjetiva para a prática do amor. Assim, poderíamos afirmar que a possibilidade de viver uma integração e sintonia entre razão e sensibilidade estaria para além das condições socio-econômicas dos sujeitos? Essas foram questões suscitadas a partir da leitura de seu texto. Não sei se lhe provocam desejo de resposta; portanto, não se sinta na obrigação de entrar nas querelas de minhas inquietações momentâneas.
    Não preciso dizer que, como sempre, adorei ler o seu texto!
    Beijo da filha, Ruth.

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  3. Filha.
    Antes de tudo quero agradecer-lhe o comentário que me dá oportunidade de esclarecer um pouco mais o tema versado no texto que você comentou.
    À primeira vista é muito pertinente a sugestão de contextualizar social e economicamente o processo das escolhas que cada um faz na construção da própria existência. Todavia devo justificar a omissão deste viés que para mim é circunstancial na discussão sobre a essência do homem. Sob o meu ponto de vista, efetivamente, as condições socioeconômicas fazem diferença na roupagem do exercício responsável da consciência, mas não ajudam a entender o seu núcleo essencial.
    Comungo o Princípio que o império da coerência lógica e da racionalidade em relação ao desdobramento comportamental faz parte da constituição da própria consciência, como uma pauta inata cuja função é guiar a aplicação dos valores no devir existencial. Portanto, o imperativo da coerência lógica e da racionalidade independe das circunstâncias nas quais a consciência se manifesta. Isto significa que a natureza humana está centrada numa realidade própria, não é uma tábula rasa na qual se escreve, arbitrariamente, um programa de conduta; ou seja, ela supõe a preexistência de uma pauta metodológica intrínseca da subjetividade humana (consciência reflexiva) que regula o alinhamento ético das práticas existenciais de conduta. Portanto implica em admitir preliminarmente uma originalidade metafísica da natureza humana. Por outro lado, no exercício coerente e inteligente das potencialidades humanas, racionais, afetivas e volitivas se evidencia a universalidade dos valores que incarnam a Verdade, a Justiça, e a Solidariedade, assim como a possibilidade de praticá-los.
    É perfeitamente compreensível que as Ciências ditas humanas, a Sociologia, a Psicologia, a antropologia etc. cujos métodos são necessariamente materialistas mantenham certa distância da crença no núcleo metafísico que está implícito nas especulações filosóficas sobre a essência do homem. Não sendo objetivamente analisáveis, as essências não são objeto de estudo das Ciências. O que não significa uma defecção da Filosofia, nem da crença num absoluto Criador, porém, apenas reforça a evidência de que o caráter metafísico da consciência não pode ser abordado pelos métodos científicos. Essa conclusão não diminui a Ciência, nem privilegia a Filosofia, mas põe em evidência a necessidade de a Ciência e a Metafísica confluírem para uma realidade mais ampla, unificada, na qual ambas se completem. Aliás, a Física Quântica como “Ciência das Possibilidades” abre espaço para cogitar a imprecisão do limite entre o Físico e o Metafísico! Na verdade, a Ciência e a Filosofia podem caminhar de mãos dadas um longo caminho, mas não conseguem afinar pelo mesmo diapasão quando se trata de comungar um conceito metafísico.
    Nas nossas cogitações sobre a essência do homem, consciência e liberdade se confundem. E neste ponto já se introduz na discussão um elemento metafísico, a Liberdade. Começam, então, as dificuldades de integração Ciência / Filosofia, posto que a Liberdade não é cientificamente equacionável.

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  4. Feitas estas considerações volto ao texto comentado, para salientar o que no mesmo ficou dito implícita ou explicitamente. Ou seja, a educação e condições socioeconômicas são sempre circunstanciais, nunca determinantes da linha ética do comportamento. Não estamos negando a importância da educação e da garantia de boa alimentação e abrigo confortável e seguro; mas estas condições ocupam uma posição secundária na discussão sobre a essência do homem. Em defesa desta tese seria oportuno lembrar a experiência emblemática de Victor Fraenkl (1905 – 1997) nos Campos de Concentração da Alemanha nazista durante a 2ª Grande Guerra Mundial. Vivendo em condições infra-humanas ele decidiu assumir uma atitude de solidariedade e de ajuda aos que com ele, reduzidos às piores condições físicas e psicológicas, esperavam a sentença final.
    A coerência da prática responsável da consciência pode exprimir-se em ações a atitudes... As circunstâncias podem nos negar a oportunidade de agir como desejáramos, porém nem as piores restrições podem impedir uma atitude interior livre, a menos que se altere o substrato físico-químico do servomecanismo psicobiológico que torna possível a manifestação da consciência... mas então o comportamento resultante já não seria uma prática consciente. É necessário que haja um mínimo de integridade das funções biopsíquicas superiores para que se manifeste a consciência / liberdade... porém havendo este mínimo, em tese, a circunstância não pode impedir a escolha de uma atitude digna, ainda que tenha sido negada ao sujeito consciente a possibilidade prática de uma ação compatível com sua verdade pessoal. Enfim, o núcleo metafísico sede da originalidade das pessoas, expresso pela Consciência / Liberdade transcende a circunstância. Por isso, como você disse no seu comentário, é certo que as condições socioeconômicas não suspendem as práticas éticas; e eu acrescento: podem apenas dar-lhes roupagens diferentes.
    São múltiplos os interesses humanos e variadas as formas de satisfazê-los. Porém, mantida a pauta de coerência e racionalidade no exercício do livre arbítrio haverá uma espinha dorsal ética para dar sustentação às formas de realização pessoal; e este fio condutor é que reúne os homens num mesmo patamar. Não há uma resposta única para a satisfação de todas as demandas humanas, mas todas as respostas possíveis só são realmente humanas se não conflitarem com a originalidade pessoal no dinamismo que preside a prática social consciente e responsável, seja mediante ações verdadeiras e justas, seja mediante uma atitude pessoal digna do ser humano. E esta originalidade criativa vista através de uma ótica espiritualista não se confunde com uma secreção do cérebro, nem depende das condições circunstanciais, é um Princípio metafísico.
    Um beijo do pai.
    Everaldo Lopes

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  5. Meu caro tio Evaraldo, os densos textos de vossa autoria: A essência do homem e A existência, se seguem um ao outro. Talvez, não por acaso ou intenção. Tema da muita sustança, me arvoro apenas a dizer que para mim são valiosos, pressionado desejo reflexivo, me alegro com o vosso trabalho .Timidamente, um movimento intuitivo, afetivo, e, pensante me encorajam a tocar em um ponto. Trata-se da essência do ser, do ser dos entes, tantas vezes focados com maestria. Cá com meus botões reconheci grande valia e lembrei de já ter lido que a essência do homem é a existência. Comecei a fazer uns pensamentos defeituosos, culpa dos meus apoucados recursos. Imaginei razão e sentimento como criadores da existência potentes quando sintonizam os nossos desejos mais genuínos. No sentido, do cerne, do que nos constitui de mais autentico. Lastro-base da invenção do ser do ente. E, pensando mais radicalmente, o humano, é a inauguração da sua existência, que não é mas, tem ser. Tem que ser ,criativo, inventar-se. Como falavam na minha infância ``tem que esta nos conformres´´. Fomos laçados numa cultura: sistema de crenças, códigos morais, após expulsos do paraíso, sem um mapa Que Deus não me dê crime .Provera Deus! YÊDO

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  8. Meu caro Yêdo.
    Sinto-me compensado por haver despertado o seu interesse esclarecido.
    O ser enquanto ser é o problema central da ontologia , certamente o mais difícil, porque sua abordagem racional exige abstração do 3º grau em que o intelecto vai considerar o objeto do conhecimento apenas nos seus aspectos mais universais. É o conhecimento que tenta demonstrar o que torna as coisas o que elas são. Sem aprofundar seria a essência que assume uma forma e passa a existir; uma potência que se atualiza. Para Aristóteles, nos entes a essência precede a existência, ambas entendidas respectivamente como potência e ato.
    Você compreendeu com propriedade, no homem, a precedência da existência em relação à sua essência. Uma vez que ao nascer o bebê traz apenas a condição humana (de ser capaz de desenvolver a consciência reflexiva, necessariamente, livre e responsável). O homem em que este bebê vai se tornar (seu ser culturalmente definido) dependerá das escolhas que fará ao longo da vida, como sujeito consciente, livre e responsável, auxiliado pela razão, pelo sentimento e pela vontade. Através destas escolhas a partir de sua facticidade cada homem se constrói o que será depois reconhecido como sendo ele mesmo, a sua essência.
    Esses temas me fascinam e lamento não ter uma formação filosófica acadêmica para poder desenvolvê-los com mais proficiência.
    Estimei reencontrá-lo depois de tantos anos!
    Abraço do tio.
    Everaldo

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