Para avaliar os comportamentos
pessoais é preciso entender as dificuldades inerentes à “existência”[1]. Quando percebemos a
intrincada malha psicossocial da vida em grupo salta aos olhos a complexidade das
relações humanas, e torna-se possível avaliar com imparcialidade as atitudes e
reações dos indivíduos.
Ao tomar conhecimento pela
primeira vez do próprio “vir a ser”, sem se dar conta ainda claramente de sua
realidade existencial, o homem defronta-se, com a “Esfinge”[2] a desafia-lo com uma
pergunta singular: “Que sentido queres dar à tua vida?” Cada um se esforça para
construir-se como pessoa, nem sempre consciente de estar respondendo à esfinge.
É que a resposta ao enigma da “vida consciente”[3] é irredutível a um
jogo lógico de ideias claras. Deverá ser modulada pelos talentos individuais
nas condições impostas pela facticidade[4], ao modo de um acordo
temático criativamente elaborado entre a razão e o sentimento com o auxílio da
vontade, tendo em vista um propósito definido. Nesta modulação se inscreve o
sentido que o indivíduo dá à sua existência. O homem responde à pergunta
exigente da esfinge assumindo responsavelmente, mediante suas posturas e ações,
as decisões inerentes às escolhas que faz no seu vir a ser existencial.
As incertezas inerentes
à contingência humana geram ansiedade. Mas, por trás da angústia do devir
incerto, o ser consciente tem a intuição nebulosa de uma totalidade universal organizada,
um “absoluto” que unifica o mundo e a consciência. Este todo harmônico cuja
complexidade é apenas entrevista reflete-se na visão de um mundo que o homem tem
a responsabilidade de completar através de escolhas e ações coerentes com o
eixo temático de sua existência. Nesta perspectiva define-se a função da
liberdade inerente à vida consciente no contexto da Evolução do universo. Tendo
em vista que a solidariedade humana é o resultado de relações interpessoais livres, pode-se dizer que a introdução
da liberdade no processo evolutivo preenche um propósito implícito na Ordem do
universo. Avaliando, hoje, retrospectivamente o caminho percorrido pela “Evolução”
pode-se concluir que a intervenção da consciência está centrada na organização
social solidária. Isto implica na transição da “inteligência instintiva”
(presente na organização social das abelhas e das formigas) para a “inteligência
racional”, consciente, capaz de criar livremente
uma forma de convivência solidária que é condição indispensável para a
sobrevivência da espécie Homo Sapiens sapiens. Esta mudança evidencia o papel
do homem no plano da Evolução, remetendo o indivíduo ao esforço permanente no
sentido de consolidar o autoconhecimento, a disciplina emocional e a determinação,
ingredientes da maturidade psicossocial que garantem o equilíbrio do vir a ser
existencial no convívio solidário. Este esforço acompanha o exercício
responsável da liberdade.
Ninguém pode ter certeza absoluta do
acerto da sua resposta à Esfinge exigente. Mas, quando a consciência está
centrada na construção de uma existência significante engajada no processo
evolutivo universal, o eu reflexivo vivencia a paz e o sentimento de dignidade
que são indicadores do acerto das decisões assumidas no curso da vida.
O
tecido psicossocial é feito de desejos, esperanças e atos cujos protagonistas
se atritam em busca da realização pessoal através de experiências intra e
intersubjetivas. Nas relações sociais cada um de nós tem expectativas quanto ao
tratamento que merece receber do outro. Opinião direcionada pela consideração
que imaginamos merecer em vista da autoavaliação favorável que cada um faz de si
mesmo. Portanto, o outro, obviamente, alimenta expectativa semelhante à minha,
igualmente tributária de uma autovalorização propícia. Pode-se imaginar como é
frágil a malha social cujos fios são pressupostos comprometidos na sua origem com
avaliações privilegiadas baseadas na autoestima de cada um. Além disso para uma
relação interpessoal equânime é indispensável o consenso dos interlocutores quanto a que
ninguém é melhor do que o outro, nem dono da verdade... que cada um define o
ponto de corte dos julgamentos que faz, mediante ideias e valores produzidos
por sua contingência falível, tidos momentaneamente como certos. Daí a
importância que assume a tolerância mútua dos que dialogam. Então, as posturas adotadas
por cada um não devem ser cultivadas como se fossem irretocáveis. Quando elas
são inflexíveis refletem a tirania dos valores culturais, gerando a intolerância
mãe de todos os preconceitos. Na verdade, só enriquecido pela sabedoria da
maturidade o indivíduo baixa a guarda e admite que a razão pode estar com o
outro. Desta maturidade depende o futuro do homem na face da Terra!
Quando a expectativa das
pessoas em relação às demais não corresponde ao esperado entre elas ocorrem
turbulências ameaçadoras da confiança recíproca e da paz social. É a hora de
cada um reavaliar sua participação pessoal na formação da onda turbulenta para
aliviar as tensões atuais, e programar as medidas preventivas de crises futuras.
Há que haver predisposição dos interlocutores para a análise psicossocial
compassiva das situações que induzem o comportamento de cada um, sem fugir das
verdades universais que devem presidir o julgamento imparcial dos conflitos
emergentes. O melhor a fazer nestes momentos de inquietação é descrever com
precisão objetiva o fato concreto determinante da aflição vivenciada. Ao
expô-lo à luz da razão, a distância subjetiva criada entre a instância crítica racional
e a representação mental vivenciada do fato em questão enseja uma trégua
emocional, permitindo redimensionar com isenção as ações a serem implementadas.
É o momento de apreciar os aspectos positivos possíveis da situação, valorizando-os;
de tentar compreender as razões do outro e argumentar desapaixonadamente para
equacionar os termos conflitantes de uma situação frustrante. Estes
procedimentos fundamentam-se no respeito à dignidade própria e à do outro, e se
consolidam no difícil aprendizado da compaixão. Seguindo esta linha de conduta,
aos poucos se vai aprendendo a conduzir as relações sociais com objetividade e
brandura... Calar é muitas vezes o comportamento mais sábio. Não há que discutir
a razão e as consequências de uma discórdia interpessoal a menos que os
interlocutores tenham assimilado os pressupostos do diálogo[5]... De outra forma a
discussão seria desgastante e improdutiva. Finalmente, para tornar eficiente o desempenho
do homem no âmbito da Evolução cumpre conservar a disposição de perdoar sempre,
por mais difícil que pareça. Nesta perspectiva, o maior desafio é o de lidar
com uma pessoa de boa índole, mas inconformada com as próprias limitações
intelectuais, culturais, sociais e econômicas, ofuscada pelo desejo de ser
reconhecida e valorizada num patamar superior ao de sua envergadura pessoal. É
difícil, mas indispensável, trata-la com serenidade quando num esforço
comovente esta pessoa procura superar-se, sem a necessária disciplina
intelectual e emocional, valendo-se de um discurso improvisado afoito e
tendencioso, ou arriscando-se em projetos que não tem condições de realizar...
e ainda chama a isso de coragem! Na verdade falta-lhe a humildade necessária
para aceitar-se como é sem perder a perspectiva de possíveis conquistas
pessoais. Obviamente, faltando-lhe a prudência crítica esta pessoa foge da
realidade e, perdida no esforço desordenado de sustentar uma autoimagem
idealizada, diz e faz coisas que não pode comprovar nem justificar. Nestes
lances, sem o necessário controle emocional, não percebe que desrespeita a
inteligência e a dignidade dos demais com os quais convive. Agressões que os
circunstantes só podem superar relevando-as, compassivamente.
Depreende-se desta análise sumária
que as relações sociais sensatas exigem,
necessariamente, autoconhecimento, disciplina emocional e o reconhecimento humilde
das dificuldades inerentes ao desempenho da condição humana. A partir do
momento em que cada um se reconhece exposto aos mesmos impasses diante da exigência
de uma existência virtuosa, todos compreendem melhor uns aos outros e se tornam
mais aptos a exercitar a empatia e o perdão. Entendemos afinal que a pergunta
da “esfinge” não é um desafio intelectual, mas um apelo disfarçado ao empenho existencial
na luta de cada um contra as armadilhas da libido descontrolada, do orgulho
imoderado, da vaidade, da ambição e do medo, que permeiam o vir a ser incerto do
“ser consciente”.
Everaldo Lopes
[1] Modo de ser próprio do
homem; consciente e responsável.
[2] Na Grécia antiga, monstro fabuloso
com corpo, garras e cauda de leão, cabeça de mulher, asas de águia e unhas de
harpia, que propunha enigmas aos viandantes e devorava quem não conseguisse
decifrá-los
[3] Existência
[4] Caráter próprio da
condição humana pelo qual cada homem se encontra sempre já comprometido com uma
situação não escolhida. Dic.Aurélio.
[5] Autoconhecimento,
disciplina emocional e respeito à dignidade do outro.
Painho,
ResponderExcluirSeu texto é uma verdadeira aula de filosofia e sociologia do cotidiano. Um texto em que você consegue traduzir para a vida cotidiana alguns conceitos que são muito caros e indispensáveis à compreensão da dinâmica social, tais como o de sociabilidade, de trocas simbólicas, de construção social da realidade, de caráter, de responsabilidade, etc. Mas, principalmente, seu texto revela uma profunda sensibilidade para apreender a complexidade da partilha da vida em sociedade. Adorei tudo que li.
Fiquei pensando que no percurso da vida tentamos responder a pergunta da esfinge e que, suponho darmos várias respostas no percurso de nossa existência. Nem existe uma única resposta à pergunta, nem essa resposta tem um valor permanente e imutável. Isso porque o sentido de nossa existência vai modificando com o passar dos anos e, às vezes, algo que era a razão da própria vida deixa de sê-lo em função de novas descobertas que fazemos. Gostei muito mesmo o seu texto, ele fala por si só.
Sim ... ando em busca do "autoconhecimento", da "disciplina emocional" e da humildade... quero distanciar-me, cada vez mais, "do orgulho imoderado, da vaidade, da ambição e do medo"...acredito que essa seja a luta de todos que tentam levar a vida a sério.
Beijo da filha,
Ruth.