domingo, 10 de julho de 2011

Devaneio especulativo I

A intemporalidade do presente; o livre arbítrio, transcendência e imanência da “existência”.

É impossível delimitar o “presente” fugaz, mas nele se formaliza a escolha pela ação emergente. Neste transe o homem tem a liberdade de fazer sua opção. Embora esta liberdade esteja limitada por condicionamentos culturais e pela circunstância que envolve o ser humano, o indivíduo não está inteiramente privado de assumir uma postura existencial peculiar, de falar, e de agir de acordo com decisões pessoais. O “livre arbítrio” está vinculado a esta liberdade restrita. Neste contexto, a escolha feita no presente evanescente se eterniza pela atualização[1]! Em milésimos de segundo, define-se irrevogavelmente uma situação de fato. O gesto esboçado, a palavra dita, a ação praticada são imodificáveis, tornam-se eternos. O “presente” é a janela através da qual o ser consciente pinça e atualiza uma das infinitas possibilidades do “ser”. Isto constitui a base dinâmica da existência pessoal.
Embora não possa ter certeza absoluta sobre o acerto das suas escolhas, o homem precisa fazê-las para existir. E o faz, não obstante as limitações que o constrangem, vivenciando uma centelha de esperança no fundo da consciência de sua própria fragilidade. Não tem certeza de nada, mas espera superar dificuldades e realizar projetos que lhe são caros... É exatamente neste momento subjetivo da existência (saber-se frágil e carente de certezas) que, humildemente, o homem fica sensível à idéia mística de uma intervenção sobrenatural... Porém, coerentemente sabe que esta intervenção demanda uma intimidade essencial entre a criatura e o Criador[2]... Absurdo lógico[3] cuja aceitação cabal é a essência da fé[4]. Todavia, quando a fé já não se tenha manifestado, plenamente, como graça divina, não há uma metodologia eficaz para o seu ensino aprendizagem. Não basta um simples ato de vontade para crer. A fé envolve adesão e anuência a uma realidade transcendental absoluta inacessível à crítica racional. O intelecto pode colaborar, até certo ponto, oferecendo algum suporte para superar a contradição “existencial”[5] entre a contingência e a transcendência.
O existente deverá contextualizar-se num todo significativo que o transcenda, para que o discurso existencial seja assertivo, realista, criativo, esperançoso. Isto implica num envolvimento místico no qual o existente encontra o melhor remédio para o seu desamparo de criatura consciente. Na indigência de “ser” contingente o homem espera ouvir do Poder Supremo a promessa de que nunca será abandonado à sua sorte, e nada lhe será cobrado que não possa pagar... experiência subjetiva que exige condições psíquicas afetivas especiais presentes, igualmente, na ingenuidade da criança e na sabedoria do santo. Em ambos os casos a contingência e a transcendência se misturam numa vivência intuitiva de fé. Sem a “crença confiante” na transcendência que lhe é inerente, o ser consciente fica preso numa armadilha. Pela análise introspectiva da própria realidade subjetiva sabe que se transcende no ato da reflexão, mas não pode explicá-lo, objetivamente... sabe-se contingente, e não consegue realizar-se, integralmente, nesta condição... mas não concebe como harmonizar na sua unidade pessoal a transcendência e a imanência inerentes à condição humana. A “fé” intermedeia a imanência e a transcendência mediante uma intuição comovida –  chave do enigma pessoal e intransferível do ser consciente. A “entrega mística”, feita a uma “transcendência absoluta” vai além da pura reflexão, exige a submissão pessoal a um “absurdo lógico” assimilável, pela fé.
É angustiante perceber, racionalmente, que a solução do problema humano é mística, e não estar aquecido pela fé, o único caminho de acesso a uma transcendência que a razão não alcança. Para os que vivem esta dificuldade, todavia, a especulação coerente sobre o cosmo e a vida, a partir da ordem crescente que se constata no Universo constitui um ponto de partida para vencer as restrições impostas pelo “racionalismo materialista”. Esta especulação permite ilações que extrapolam o conhecimento positivo, abrindo espaço para a elaboração de uma mundividência espiritualista. Por exemplo, é razoável o argumento que se segue... Se há uma ordem na construção do mundo e da vida, se toda ordem pressupõe uma intenção, se não há intenção fora da esfera da consciência, é forçoso que haja uma Consciência Universal! Portanto, a lógica especulativa nos conduz a uma realidade abstrata que a própria razão não consegue entender e descrever objetivamente. Mas isto ainda não basta. A elaboração intelectual precisa transformar-se numa forte convicção, consolidada no sentimento de comunhão profunda com a “transcendência absoluta”, patenteada numa vivência da unidade criatura / Criador. Nisto reside a essência da experiência mística estruturada pela fé. O ser consciente só consegue superar cabalmente a angústia existencial diante da precariedade congênita de sua contingência, sob os auspícios da fé. Confiante no amparo transcendental, ele realiza o seu destino, imprimindo um sentido definitivo na sua existência ao participar da unidade comunitária de todas as consciências (em Deus[6]). Somente vivendo a presença inefável de Deus mediante o sentimento solidário de integração comunitária, o ser consciente ganha significado definitivo, integrando-se num “Todo” absoluto.
A mobilização intelectual, centrada na observação crítica da intemporalidade do “presente existencial” evidencia um contraponto - a eternidade... Vejamos. O passado e o futuro se configuram sempre em relação ao “presente”. Passado e futuro são definíveis, respectivamente, como “memória congelada” e “expectativa” a ser confirmada, separadas no “agora” pelo presente fugidio.  Especulativamente, poderemos considerar o “presente” como  um “ponto de acumulação”[7] que se move constantemente no “agora” sem que se possa fisgá-lo. Sabemos que no presente se atualizam a ação, o gesto, a atitude, só confirmados e manifestados subjetiva e objetivamente, ao tempo em que se tornam “lembranças” (passado); enquanto as expectativas permanecem como projetos, meros movimentos subjetivos que podem ou não consumar-se... quimeras que apontam para um futuro possível, mas não real, ainda. O “presente”, conquanto essencial, existencialmente, não tem expressão temporal definível como o “agora”. Ora o que é atemporal é eterno! O “presente”, então, só pode ser entendido como um corte no tempo que separa o passado e o futuro. Seria como a janela da eternidade no tempo. Nesta perspectiva, o pensamento tangencia a transcendência absoluta que escapa totalmente ao conhecimento racional. Na prática é o “agora” que o homem assume como seu presente. Na verdade, o presente real não seria um intervalo[8], mas uma fenda no tempo, preenchida pela eternidade. Assim essa análise especulativa do “agora” sugere à consciência crítica uma ligação entre a “existência” precária (temporal) e a “eternidade”, reino do Espírito que reúne todas as possibilidades. Desta forma, um raciocínio linear nos coloca de saída no âmago do caráter transcendental da existência. A abordagem racional da realidade não substitui a fé, mas abre uma janela para além do mundo visível, aparente, predispondo o descrente para as verdades de fé... Mesmo sem vivenciar a experiência mística, o existente abre a mente para a transcendência absoluta sumariamente negada pela abordagem materialista da realidade.
Continua no próximo texto.
Everaldo Lopes


[1] No aristotelismo, movimento pelo qual uma realidade se atualiza, se efetiva, adquire sua forma final; passagem da potência ao ato.;
[2] Numa visão criacionista, monista  o Criador e a criatura estão indissoluvelmente unidos. Fora disso ter-se-ia que admitir dois princípios  absolutos, tese conceitualmente  inaceitável uma vez que o absoluto tudo inclui, nada lhe  fica de fora.
[3] Diferente do absurdo existencial!
[4] A primeira virtude teologal: adesão e anuência pessoal a Deus, seus desígnios e manifestações.
[5]  Modo de ser próprio do homem.
[6]  Princípio supremo de explicação da existência, da ordem e da razão universais, e garantia dos valores morais. (Aurélio Sec.XXI)
[7]  Ponto em cuja vizinhança arbitrária  existe sempre pelo menos um ponto de um conjunto; ponto-limite.
[8] Lapso de tempo que medeia entre dois momentos.

7 comentários:

  1. Gostei pai. Vou aguardar a próxima postagem!!
    Bjos

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  2. Painho,
    Esse é um texto inquietante porque subverte o pensamento do senso comum com algumas afirmações que revelam um pouco do "absurdo lógico" da existência; por exemplo, falar da possibilidade de uma "intimidade essencial entre a criatura e o Criador"; que "o presente é eternidade" e que “a solução do problema humano é mística" são afirmações inteligentes e ao mesmo tempo ousadas. Digo isso porque é comum pensamos em Deus como uma entidade intocável, distante e inacessível aos comuns dos mortais; porque sempre que falamos do presente, pensamos em algo que acontece no “aqui e agora”, jamais como “eternidade” ou “intemporalidade”; e também, estamos acostumados a pensar que os problemas postos pela modernidade serão resolvidos pelo “racionalismo materialista”.
    O seu texto pauta-se num “discurso existencial” que reúne o que você mesmo defende: um discurso “assertivo, realista, criativo e esperançoso”. Se bem entendi, seu escrito revela que essa postura existencial pressupõe viver a fé e aderir a uma “realidade absoluta inacessível à crítica racional”. Fico pensando que a experiência mística é privilégio de bem poucos. Como experimentar a “entrega mística”? Será um caminho único para cada único ser vivente?
    É preciso coragem para assumir que não podemos explicar a realidade subjetiva objetivamente. Admitir essa incompletude compreensiva pressupõe humildade. Reconhecer a contingência e a imprevisibilidade da vida é uma atitude necessária, mas exige maturidade existencial. Você diria que adotou uma “mundividência espiritualista”?
    Concluindo o que pude captar de suas reflexões, entendi que a “experiência mística”, que está estruturada pela fé, constitui um caminho seguro para enfrentar a “angústia existencial”, mediante a constatação da “precariedade” e a “contingência” da vida humana. Gostei de sua reflexão conclusiva: “Somente vivendo a presença inefável de Deus mediante o sentimento solidário de integração comunitária, o ser consciente ganha significado definitivo, integrando-se num “Todo” absoluto, eterno”.
    Fica, então, o desafio: como levar esse pensamento que gera práticas mais e mais humanitárias para os viventes do século XXI?
    Ainda vou ler seu texto algumas vezes para conseguir captá-lo em sua integralidade, e para entender sua mensagem existencial.
    Beijo da filha,
    Ruth.

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  3. Ruth, minha filha.
    Eu já esperava que a leitura do texto objeto do seu comentário provocasse estranheza no leitor atento. Daí a escolha do título “Devaneio Especulativo”. A intenção subjacente é minimizar o impacto esperado, ao apresentar conceitos que talvez não sejam novos, mas são pouco divulgados, como uma divagação teórica baseada em raciocínio abstrato, para satisfazer minha necessidade de explicar o inexplicável. Fantasia? Sei que o absurdo lógico da “existência”; a relação íntima imanência / transcendência no ser consciente; a eternidade no presente; o desdobramento místico, obrigatório, do fenômeno humano são idéias inabituais para o senso comum. Todavia, mesmo correndo o risco de ser olhado de soslaio como pensador extravagante, resolvi postar este e os dois textos próximos, todos relacionados entre si.
    A título de preâmbulo, preciso definir o objetivo dos “Devaneios Especulativos”. Como você sabe, o homem é um ser problemático, exatamente, porque sua existência não é um dado natural, mas uma construção cultural... é uma interrogação a ser respondida por ele mesmo... Sua visão de mundo influencia as escolhas que faz e dá um colorido pessoal à existência pessoal. Para alcançar a resposta de que precisa, para posicionar-se conta com a razão, a intuição e a fé como instrumentos que definem o seu caminhar em busca da realização pessoal plena. Este esforço é o pano de fundo da Mitologia, da Filosofia e da crença Religiosa, visando dar fôlego à necessidade de transcender, e anular ou suavizar a angústia existencial do homem diante da fragilidade e finitude de sua própria existência.
    Desde muito cedo me dei conta da minha contingência e nunca mais deixei de me interrogar sobre as clássicas questões filosóficas... O que sou, de onde venho e para onde vou? Depois de consultar o pensamento de muitos Filósofos, perambulando entre lucubrações relacionadas a estas interrogações, senti necessidade, ao longo dos anos, de mergulhar fundo no fenômeno humano a fim de reunir os dados de um arcabouço teórico coerente para explicar-me o mundo e a vida consciente. Você fez uma leitura correta... acabei aderindo a uma cosmogonia criativa, monista espiritualista em moldes muito pessoais.
    A tese materialista me parece inconsistente, e qualquer concepção maniqueísta de dois princípios absolutos soa inviável, considerando a impossibilidade lógica de dois absolutos . A existência, como resultado do exercício da consciência reflexiva põe a nu a contradição que se manifesta no homem, de saber¬¬-se finito, ou, ser para a morte... assim a existência se torna absurda, a menos que o existente consiga dar-lhe um sentido. Mas o sentido histórico da existência pessoal não satisfaz senão parcialmente a necessidade de transcender que caracteriza o “ser consciente no mundo”.

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  4. O homem tem a vocação de transcender-se ao infinito! Vocação absurda para um ser temporal! Por outro lado, se o mundo (cosmo) não pode ser autor de si mesmo, não pode também permanecer no “ser” por sua própria conta. Daí a necessidade lógica da intimidade essencial da criatura e do Criador... Ele é, pois, um Dinamismo Absoluto Eternamente Criativo, porquanto uma Presença permanente, indispensável à continuidade da própria contingência, por mais que isto pareça absurdo. Mas, paralelamente à expectativa de assimilar este absurdo pela fé, tentamos descobrir seus sinais no tempo. Já havíamos percebido a impossibilidade de dimensionar, temporalmente, o presente fugidio... Ninguém é capaz de surpreender o presente... quando tentamos fisgá-lo ele já é passado. Nesta perspectiva, o nosso presente existencial (operacional) é o “agora” ou seja, a soma de lembranças (passado) e expectativas (futuro) separadas pela ação que ao se definir já é passado. Ora, se o presente não tem expressão temporal, é uma brecha no tempo como falei no texto comentado por você... e o que não tem tempo é eterno... É coerente admitir, portanto, que o presente é um corte no tempo (atemporalidade), uma manifestação da eternidade que separa o passado e o futuro.
    Devo concordar com você em que, realmente, a experiência mística autêntica é privilégio de bem poucos, e não há pedagogia que ensine a sua prática. Exatamente porque esta se baseia na fé que não é manipulável. Estou convencido de que não basta elaborar uma mundividência teórica criacionista monista, espiritualista. Mas acredito que este apoio especulativo pode aplainar os caminhos para uma crença que solidarize a criatura e o Criador nas nossas mentes ocidentais, racionalistas. Todavia, é preciso saber que só inspirado por uma fé viva, o ser consciente alivia o peso da angústia existencial e, humildemente criativo, conduz a existência com leveza e desambição. Aspiro, profundamente, ser avassalado pelo conforto místico de uma fé verdadeira!
    Como disse, os dois próximos textos vão versar sobre o mesmo tema, visto de ângulos diferentes. No fim deste esforço intelectual, se não formos visitados pela fé, não teremos progredido muito na conquista da plenitude existencial, da paz interior, mas certamente estaremos mais convencidos da nossa insignificância... o que já é um passo gigantesco rumo à integração comunitária. Um beijo do pai. Everaldo

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  6. Painho,
    Já lhe disse, algumas vezes, que você não veio ao mundo para fazer de conta que está vivendo; ao contrário, você vive de verdade e leva a vida com muita seriedade. Trata-se de uma postura rara e, ao mesmo tempo, muito especial. Como você mesmo reconhece, desde cedo se ocupa com indagações filosóficas, existenciais, buscando encontrar um sentido para a existência, já que este sentido já não está posto e pré-determinado de uma vez por todas.
    Não pense que divergimos quanto a isso, nem em relação a muitas reflexões que apresenta em seu texto. Na verdade, comungo com você a respeito da preciosidade da experiência mística, fundada na fé. Já experimentei entregar-me a Deus, assumindo minha absoluta vulnerabilidade e insuficiência; e experimentei uma sensação de profundo conforto, paz e acolhimento espiritual. Indizível a sensação de preenchimento, completude e unicidade que vivenciei. É realmente um privilégio poder entregar-se a Deus, reconhecendo-se na radical condição de sujeito finito e contingente.
    Também concordo que o reconhecimento da existência de Um Deus misericordioso ajuda-nos a suportar "o peso da angústia existencial", aceitando humildemente a transitoriedade da vida terrena. Li hoje, em algum lugar, que a batalha da vida é a única batalha que entramos já sabendo, antecipadamente, que acabaremos mortos. Isso não subtrai o encanto da vida. Sabendo-nos tão transitórios, temos uma obrigação ainda maior de fazermos desse curto tempo da vida terrena um momento criativo, inventivo e radicalmente original. Tudo isso conduzido com leveza e desapego... Continuo tendo você como uma grande referência, que me ajuda a encontrar o sentido para a minha existência.

    OBS: Em relação à questão do tempo, pude entender que o presente, quando pensado, já não é mais presente; mas sim, passado. É isso que define a intemporalidade do presente!

    Beijo da filha,
    Ruth.

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