quarta-feira, 22 de junho de 2011

Generosidade


O egoísmo é tão arraigado no ser humano que custa crer na verdadeira generosidade. Mas, convenhamos, no dia a dia se confirma o sacrifício que muitos fazem para atender às necessidades de terceiros. Todavia, analisando caso a caso há sempre um ganho secundário implícito na doação que se supõe generosa. Embora este ganho não seja considerado prioritário na motivação do benfeitor. Seja o reconhecimento da nobreza do gesto, que massageia o ego do doador... seja um retorno merecido, nesta vida... seja a recompensa esperada num outro nível de existência... seja o sentimento camuflado de “poder”, ao proporcionar ajuda. O ego posto a nu é, por suas características psicodinâmicas, um poço de interesses. Esta observação exclui qualquer crítica desabonadora... a constatação implícita faz parte da condição humana. Então, fundamentados numa introspecção honesta, poderíamos descartar, inteiramente, um interesse egóico escondido no comportamento generoso? Por exemplo, a intenção de prevenir críticas desairosas, ou de saldar uma dívida moral, livrando-se do sentimento de culpa previsível face à eventual omissão da ajuda ao “outro”... É difícil deixar de lado a idéia que a generosidade totalmente indiferente a qualquer retribuição é exclusiva da magnanimidade de Deus!!!... Talvez o que mais se aproxime de um gesto puro de generosidade humana resulte da empatia diante da carência do “outro”... E mesmo assim, com o gesto empático o benfeitor está, indiretamente, servindo a si mesmo. Esta constatação suscita cogitações sobre o comportamento dos santos que chegaram a doar a própria vida para dar testemunho da sua fé. A conduta dos mártires sugere a reconsideração da tese que vínhamos desenvolvendo. Todavia, caberia ainda perguntar: deixar-se-iam martirizar até a morte se não tivessem a certeza (pela fé) de merecer, depois, as primícias da presença de Deus?  Dever-se-á admitir que a ação caridosa dos justos resulta apenas do envolvimento no desejo de estarem contribuindo, direta ou indiretamente, para o bem-estar da comunidade humana? Sem dúvida, a generosidade assim configurada só poderia ser qualificada como divina. Para aceitar esta magnanimidade sem reservas, será preciso admitir a transfiguração do homem por intervenção de uma força mística que qualifique e potencialize a “vontade de sentido”[1] centrada em servir ao outro, contra a tendência do egoísmo enraizado. Nesta leitura mística da “doação total”, a verdadeira generosidade só se tornaria possível em função do estado de graça que corresponde à absorção da própria criatura no Criador. Experiência de rara ocorrência. Cita-se a afirmação de São Paulo, depois da conversão: “Já não sou eu que vivo, mas Cristo que vive em mim”.
É óbvio que no exercício da consciência responsável o homem é induzido a assumir um comportamento ético solidário em relação aos seus semelhantes.  Mas o esforço voluntário sustentado para atualização deste potencial ético, habitualmente, tem limites e exige sacrifícios. A superação de todos estes limites vai além do “dever”, projetando no homem a própria essência do “amor[2]”... sugerindo  uma intervenção supranatural.
Não estamos querendo minimizar a grandeza das pessoas verdadeiras, justas e caridosas que se sacrificam no cumprimento do seu ideal. Apenas queremos mostrar que a ação solidária não é espontânea, demanda uma elaboração, supomos, mesmo para os que têm vocação religiosa.
 A propósito dos problemas inerentes à análise e julgamento do comportamento generoso na prática cotidiana consideremos uma situação emblemática. Nela estão presentes os elementos psicológicos contraditórios implícitos nas ações formalmente generosas, e a demonstração da dificuldade de avaliar com certeza a natureza efetiva do comportamento generoso formalizado (politicamente correto).
São inúmeros os idosos inválidos que vivem sob os cuidados dos filhos... sós com uma cuidadora assalariada, num apartamento alugado.
Os filhos se vêem na contingência de subvencionar as despesas dos pais alquebrados pela idade, porque a pensão que eles recebem não dá para cobrir as despesas com aluguel, cuidadores, alimentação, plano de saúde, medicamentos etc. Por alguma razão, peculiar a cada um, muitas vezes os filhos não querem abrigar os velhos “problemáticos” nas próprias casas. Porém, mesmo quando possuidores de recursos limitados e obrigações inadiáveis com a própria família (mulher e filhos) os descendentes, escrupulosos, têm pudor ou sentem ferida a vaidade diante da alternativa de colocar o ascendente num abrigo... E optam por brindá-lo com um “conforto” que não têm condição de bancar... O resultado é que todos, pelo menos teoricamente, se sacrificam financeiramente. O comportamento dos genitores (agora idosos e dependentes), durante a formação da prole deixou marcas diferentes, nem sempre positivas, em cada filho, refletidas, hoje, no tipo das relações filiais espontâneas.  Só Deus sabe o que se passa no íntimo de cada um... Afeto, gratidão, revolta, sentimento de culpa, e raiva contida... Impregnados desta mistura de sentimentos, impõem-se a obrigação de atender as necessidades básicas dos seus idosos, “sentindo”, intimamente, a sobrecarga econômica implícita, e o trabalho adicional a que se obrigam. A condição financeira precária dos descendentes gera dissensão entre eles. Sob pressão de cobranças mútuas, não conseguem unanimidade na divisão das responsabilidades assistenciais. Os velhos, por sua vez têm uma visão ingênua da situação de dependência em que vivem... Supervalorizam a aposentadoria que recebem e o que se convencionou chamar direitos paternos... avaliam, ressentidos, a ausência dos filhos, mas não conseguem inspirar-lhes admiração, nem liderá-los, tão pouco. Esta situação se arrasta, entremeada por crises polarizadas pelo aprofundamento das dificuldades materiais já mencionadas. E o custeio das necessidades do idoso no apartamento alugado torna-se pomo de discórdia entre os familiares que não conseguem uma distribuição equitativa de obrigações em relação à sua manutenção. Nesta conjuntura, pode-se imaginar a possibilidade de um conflito ético de certa forma monstruoso, mas compatível com a fragilidade da condição humana. Conscientemente, todos desejam a vida e felicidade do antepassado idoso; mas poder-se-ia afirmar com segurança que os descendentes mantenedores sacrificados financeiramente em virtude dos custos assistenciais assumidos estejam imbuídos só de pensamentos e sentimentos positivos de amor e carinho? Afinal sem o ônus a que os gerontes os obrigam estariam livres de um monte de problemas... Certamente os mantenedores não querem admitir, sequer, que tenham levantado, intimamente, esta questão e sofrem até com a possibilidade de haverem, num relance, vislumbrado em si mesmos a sombra de uma postura cruel... Mas... tudo é possível!
Voltemos ao questionamento original sobre a generosidade x egoísmo. No exemplo que acabamos de examinar, os velhos inválidos, ou quase, estão recebendo a melhor assistência que a família lhes pode oferecer. Todavia, haveria generosidade[3] pura no gesto dos descendentes que financiam as despesas do idoso? Ou o gesto generoso estaria condicionado ao cumprimento do “dever”, profilático do sentimento de culpa pela omissão? Ou estaria vinculado ao receio da crítica social?          De qualquer forma, o que é preciso valorizar é o ânimo dos descendentes em sacrificando-se para oferecer proteção ao idoso... mesmo que tenham de controlar a revolta, amansar a hostilidade, valorizando a alegria de servi-lo, e o desejo sincero de vê-lo feliz!
Everaldo Lopes


[1] Conceito central da Logoterapia – A força que move a psique nas relações consciência-mundo.
[2] Caridade – disposição espontânea favorável em relação a alguém em situação de inferioridade (física, moral, social etc.); compaixão, benevolência, piedade (Houaiss3)

[3] Caráter e sentimentos nobres, magnanimidade, liberalidade; disposição de dar com largueza, em quantidade maior do que o usual e o necessário.

12 comentários:

  1. Pois que bom que o ser humano pode derivar prazer em doar. Porque ha os que necessitam e ha muita pobreza no Brasil (e em Nova York - vc sabe que passei ano e meio la?.) Há pobreza em todos lugares e ha um grupo de pessoas tao abastados que nao sabem nem muito bem o que fazer com dinheiro e ha outro para quem 10 reais eh tao fundamental em certos momentos. Quem bom sim que as pessoas derivam um pouco de prazer em doar. E aqui ainda estendo tambem para outros tipos de doacao: tempo, atenção, paciencia.... A vida seria selvagem sem essas doacoes diárias. Oriana

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  2. Concordo. Sem dúvida é muito auspiciosa esta possibilidade. Todavia a cultura do "ter" está distanciando o homem de um comportamento genuinamente generoso. A fragilidade da condição humana e o egoísmo que lhe é inerente, manipulados pela propaganda acrítica tornam difícil para o homem comum elaborar gestos e ações generosos. Mesmo assim precisamos que se difunda a prática mais ampla da generosidade, para garantir a sobrevivência da espécie. Generosidade e solidariedade são fundamentais para a construção da comunidade humana. E se não formos capazes de edificá-la (a comunidade h.), não há futuro para o Homo sapiens sapiens.
    Oriana. Tenho boas lembranças dos papos que mantinha com seu pai, quando você ainda era uma criaça encantadora.Everaldo.

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  3. Painho,
    Entendo que toda ação humana se funda no próprio sujeito. O outro pode até participar da decisão de nossa ação, mas a motivação de um ato está circunscrita numa esfera eminentemente pessoal e subjetiva. Quando somos amorosos com um amigo, uma amiga, um filho, uma filha, um pai, uma mãe, um irmão ou irmã, enfim, um conhecido ou desconhecido, somos, em alguma medida, beneficiados pelo gesto que praticamos. Se o meu ato faz bem ao outro, e ao mesmo tempo também me faz bem, podemos dizer que atingimos uma situação ideal. É um privilégio vivenciar a harmonia de desejos em nossas relações interpessoais. Não há problema em assumir que gosto de fazer algo que o outro se beneficia porque isso me faz bem. A própria expressão "meu bem" revela que o ser amado faz o "meu bem", por isso é amado. Lógico que existem as perversões; existem os que se realizam em fazer o mau e os que se preenchem ocupando o lugar de "sujeito mal amado".
    As múltiplas culturas vivenciam o querer-bem de forma diferente; as vezes de forma estranha. Nós, que somos fortemente marcados pela cultura ocidental, superdimensionamos o valor das trocas. Tanto é assim, que quando fazemos algo pelo outro, algo que nos faz bem, a primeira pergunta que surge é: "o que essa pessoa quer em troca?". Muitas vezes a troca é instantânea: faço o seu bem porque isso me faz bem. Não há nenhum demérito nisso, principalmente porque o resultado de uma situação onde existe uma coincidência entre o meu desejo de dar, e o desejo do outro de receber, é realmente fabulosa. Quando um quer oferecer (por um interesse subjetivo pessoal) amor, carinho, bondade e generosidade e o outro aceira receber (por um interesse pessoal) o amor, o carinho, a bondade e a generosidade, entendo que constitui uma vivência fundamentada no verdadeiro sentido do que denominamos RECIPROCIDADE AMOROSA E AFETIVA.
    Nem sempre as relações são de troca material, como é realçado pela cultura ocidental. As trocas amorosas, afetivas, sentimentais são muito preciosas; e são as que mais engrandecem a nossa humanidade.
    Sentir um bem estar por doar alguma coisa a alguém conhecido ou desconhecido, é um sentimento eminentemente humano. Acredito, painho, que podemos nos realizar praticando o amor, a generosidade, a doação, a renúncia, a solidariedade, o desprendimento, a lealdade, a compreensão, o carinho, enfim, podemos experimentar a felicidade quando conseguimos exercer práticas que consideram o outro como um humano-sujeito ao tempo em que consideramos nossa própria condição de sujeito humano.
    Esse tema me encanta!
    Receba um beijo da filha que te ama muito, Ruth.

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  4. Filha.
    Seus comentários são sempre bem-vindos porque me estimulam a aprofundar mais o tema abordado.
    Começo por concordar com a sua afirmação; “Se o meu ato faz bem ao outro e, ao mesmo tempo, também me faz bem podemos dizer que atingimos uma situação ideal.” Contanto que façamos uma ressalva... Isto só é verdadeiro numa conjuntura em que há sintonia de interesses por livre escolha de ambas as partes, num relacionamento amoroso. Ou seja, o bem que um está disposto a prodigalizar é o mesmo que o outro deseja receber em função de uma atração mútua, livre e respeitosa, criativamente flexível. Um acontecimento raro que se choca com a diversidade de interesses entre as pessoas, mesmo as de um mesmo grupo ou etnia. Daí porque a ocorrência “ideal” não é encontradiça na realidade humano-social em que vivemos todos, recheada de egoísmos mascarados. A cultura tenta homogeneizar os comportamentos mediante práticas de facilitação para alguns (comportamentos) e de interdição para outros. Lamentavelmente, a metodologia inerente a estas práticas explora mais frequentemente a punição como castigo pela desobediência à norma, do que a recompensa estimulante do bom comportamento. Nestas condições sobressai a natureza ética da relação em que as pessoas se orientam por normas morais estabelecidas pelo grupo social para assegurar a manutenção da ordem necessária à sua organização.
    O Amor é soberano, dita suas próprias leis, é espontaneamente generoso, pródigo, e perdoa com facilidade permitindo-se, com magnânima independência, flexionar o comportamento sem prejuízo da integridade da relação. Diferentemente do Amor, a Ètica é submissa a preceitos (valores) impostos culturalmente, limitando a criatividade do eu agente. No comportamento ético, a generosidade se confunde com a obediência aos mandamentos éticos que se apresentam sob a forma de resoluções ditadas pela necessidade de manter o equilíbrio social. Isto representa, finalmente, o cumprimento de regulamentos rígidos que levam a comportamentos rigorosos, fiscalizados por uma autoridade externa. O Amor é criativo e não teme inventar o insólito, sob a égide do respeito e da confiança mútua. Enquanto a conduta ética é suspicaz e está sempre na mira da crítica que se preocupa mais com a formalidade do que com a motivação do gesto ou ação virtuosos.
    As leis universais do amor são compatíveis com os parâmetros definidos na “situação ideal” descrita no início deste texto, desde que prevaleça a normalidade (higidez) das pessoas envolvidas. Sem este reparo ao universalizar, como princípio ético formal, a “situação ideal” descrita inicialmente incluem-se situações patológicas nas quais o equilíbrio não assenta sobre a saúde mental dos interlocutores, como é o caso de uma relação sado-masoquista em que os indivíduos interagentes estão de pleno acordo vivendo uma prática perversa, induzidos por um desvio psíquico que lhes rouba a liberdade de escolher conduta alternativa. Por isso seria necessário reexaminar a afirmação de que “ A ação humana se funda no próprio sujeito... a motivação de um ato está circunscrita numa ênfase eminentemente pessoal e subjetiva.” Sim, isto é válido quando o livre arbítrio preside os requisitos psíquicos afetivos(subjetividade) indutores do desejo de cada um. Porém há a considerar que: 1º) a subjetividade é uma construção estruturada no curso da individuação, sob as mais variadas influências. Embora prevaleçam as influências da cultura na qual se processou (a individuação), podem ocorrer desvios desnaturantes no curso do processo; 2º)a motivação de um ato, para ser generosa precisa estar afinada com valores universais humanitários de proteção à integridade social, mediante ações livres... Nesta perspectiva, rigorosamente, não há generosidade sem Amor.

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  5. Mesmo num movimento ecumênico no qual convivem culturas diferentes há que haver valores universais aos quais todos os grupos estão vinculados. E quando estes valores não são incorporados por Amor a uma Ordem Superior impõe-se interdição às condutas desviadas que ferem estes mesmos valores.
    As proibições nunca são assimiladas espontaneamente... exigem elaboração muitas vezes sofrida porque as interdições contrariam desejos pessoais muito íntimos. Por isso o próprio Amor na prática humana (perfectível) se negaria a si mesmo se o amante não carregasse a sensibilidade empática e disponibilidade para renunciar, de bom grado, ao bem estar pessoal em favor do outro... Tudo isso implica uma disciplina da vontade, dirigida no sentido do comportamento elaborado cuja origem continua na esfera do subjetivismo, porém pressupõe uma ordem que o transcende. Talvez nisso resida a diferença entre Amor e Paixão.
    Concluindo. A natureza humana é perfectível mas nunca atinge a perfeição. Daí porque não se pode esperar que a generosidade praticada pelo homem exclua qualquer tipo de recompensa. Mesmo a alegria de haver, com uma conduta generosa, promovido o bem estar do outro é uma recompensa... nobre, mas sempre algo esperado como resposta ao gesto generoso. Por isso disse eu no texto comentado: “Só Deus pode dispensar total magnanimidade a sua criatura”.
    Como vê, filha, longe de esgotarmos o tema percebemos que a generosidade (inseparável da humildade), que fundamenta uma relação intersubjetiva sadia, comporta discussões sutis, e nunca é completa num relacionamento apenas ético. A generosidade autêntica está vinculada ao background subjetivo da formalidade do gesto e ação generosos que envolvem, sempre, empatia e solidariedade.
    Um beijo dom pai.
    Everaldo

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  6. Painho,

    Já havia me convencido de que não existem ações puramente altruístas entre os humanos. Isso não implica dizer, no entanto, que eu não acredite que possam existir ações virtuosas nas relações interpessoais circunscritas no tecido social. Depois de ter vivenciado muitas desilusões, em função das (in)correspondências entre as minhas e as intenções do outro, perdi a minha ingenuidade em acreditar que pudesse existir o encontro perfeito, ideal. (OBS: por incrível que pareça isso não apagou de mim o meu romantismo).
    Bem, não entendi porque você não concorda comigo quando afirmo que todo ato humano se funda no próprio sujeito. Não pode ser diferente! Não há outro caminho para pensar nossas ações na construção de nossas vidas. A decisão última de fazer qualquer coisa sempre está no sujeito. Isso não pressupõe que ele aja com coerência, clareza ou consciência do que está fazendo, nem que tenha dimensão das conseqüências do ato que produz. Mas, não há como negar que cada um de nós é mobilizado por interesses, intenções, objetivos, enfim, metas estabelecidas. Nossas ações dependem de nossa adesão a um projeto (individual ou coletivo, ético ou a-ético, verdadeiro ou falso etc). Não é o outro que faz por mim; sempre eu é que ago, e me inscrevo naquilo que faço.
    Minha perplexidade em relação ao incontido e à dimensão errática da condição humana, ainda não me levou a afirmar que “vivemos todos, recheada de egoísmos mascarados”. Ainda acredito que existam pessoas que não pensam apenas em si mesmos, e que buscam praticar ações humanitárias, que façam a diferença na vida do outro. Desejo que eu sempre encontre razões para exercer uma generosidade amorosa nas relações que estabeleço com aqueles que fazem parte de minha vida.
    Não sei se dialoguei bem com as suas reflexões... Sei, no entanto, que manteremos uma discordância que não compromete, absolutamente, nosso diálogo nem apaga os pontos de encontro e concordância entre os nossos pensamentos.

    Beijo da filha,

    Ruth.

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  7. Filha.
    Reli minha réplica ao seu comentário acerca do ensaio sobre “Generosidade” e conclui que fui impreciso, quiçá desinformado, em algumas das colocações que fiz.
    Entendo que o comportamento ético é um processo que exige sempre esforço disciplinar sobre o ego exigente de auto satisfação. Esta disciplina é uma forma voluntária de “maquiar” a tendência egóica natural do homem. Digo maquiar porque as tendências egóicas não são suprimidas, porém, redirecionadas (desfiguradas), em benefício do convívio social. Neste sentido é que falei estar a realidade humana social “recheada de egoísmos mascarados”. Animava-me o propósito de caracterizar uma extensão do humano (a ética), valorizando-a como um esforço virtuoso, desejável, até, ao preencher com um comportamento digno as lacunas do amor (caridade) que idealmente enriqueceria a relação social. É evidente que não se pode viver em sociedade satisfazendo o ego sem restrições... as interdições são necessárias. E uma vez que o amor soberano, inspirador da conduta caridosa autêntica não é encontradiço (não se mostra com frequência, não é fácil de encontrar), mais frequentemente, a generosidade se manifesta através do comportamento responsável, ético. Por ser disciplinada, voluntariamente, a conduta ética não amesquinha a ajuda a quem é alvo do gesto generoso. Este preâmbulo explica a forma como analisei, conceitualmente, o fundamento da ação no sujeito, em se tratando do sujeito consciente – o homem.
    Estou de acordo com a afirmação de que “a ação humana se funda no próprio sujeito”... é o sujeito que escolhe, decide e age. Porém, na réplica mencionada associei a validade desta afirmação ao exercício do livre arbítrio, à integridade do processo de individuação na construção da subjetividade, e à afinação do “sujeito” com os valores universais que dignificam a condição humana. Enfim, vinculei o conceito de “sujeito” a uma determinação ética. Deixei implícito que, em se tratando do homem, só o preenchimento dos requisitos assinalados fundamentaria a ação propriamente humana. Nesta perspectiva já se inclui no conceito do “sujeito” a responsabilidade ética de respeitar os valores universais. Todavia você me alertou: “A decisão última de fazer qualquer coisa sempre está no sujeito. Mas isso não pressupõe que ele aja com coerência”. E acrescentou: “ Não há como negar que cada um de nós é mobilizado por interesses, intenções, objetivos, enfim metas estabelecidas. Nossas ações dependem de nossa adesão a um projeto (individual ou coletivo, ético ou aético, verdadeiro ou falso etc.)”. Declaração que reflete uma postura indiferente do sujeito em relação ao conteúdo da sua ação.

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  8. Depois de ler seu segundo comentário, revi o conceito do vocábulo “sujeito” e constatei que o verbete dicionarizado que lhe corresponde não contém qualquer conotação ética... E sendo assim, formalmente, você tem razão... Porém continuo sentindo necessidade de aprofundar a investigação sobre o tema, formulando o seguinte questionamento: se o “sujeito” é apenas um ponto de referência para as ações praticadas, como contextualizá-lo no dinamismo evolutivo da “pessoa humana” em que o “sujeito” se capacita a direitos e se compromete, assumindo deveres? Acho que no contexto do nosso diálogo sempre estive falando mais da “pessoa”, do que do “sujeito” indiferente aos direitos e deveres que dignificam a condição humana... Sempre afinei pelo pressuposto que o sujeito da escolha e da decisão precede o sujeito da ação e, podendo escolher (conscientemente), o homem assume, implicitamente, responsabilidade sobre a escolha feita... “Não é o outro que faz por mim, sempre eu é que faço e me insiro naquilo que faço”. Também concordo com isso, mas como pode um “eu” (pessoa humana) aderir a um projeto coletivo sem assumir a responsabilidade inerente a este projeto, inserir-se nele, sem a “clareza ou consciência do que está fazendo, nem noção da dimensão das consequências do ato que produz”? Parece-me que, transcendendo o significado gramatical, em que o sujeito é apenas aquele de quem se afirma ou nega alguma coisa (puro ponto de referência indiferente ao conteúdo do que dele se afirma ou nega), nas relações sociais do cotidiano não é fácil separar o “sujeito”, do “eu”, e da “pessoa humana”. Como distinguir estas entidades que têm a mesma raiz, ou seja, a “condição humana” marcada pela consciência, pelo livre arbítrio e pela responsabilidade? Sem dúvida, a ação se funda no sujeito ao qual está referida. Mas, em se tratando do homem (ser consciente e responsável) que escolhe, decide e age, suponho que a ideia de “sujeito” já nasce comprometida com uma orientação coerente que envolve valores e, no fim, acaba sendo um estatuto ético... neste tópico, o divisor de águas é o valor cultivado... Então em sendo o homem o “sujeito” da ação, não pode ser apenas um marco referencial indiferente à natureza da ação pela qual ele é responsável... No meu entender, a adequação aos valores universais (aplicáveis a todos os homens) que garantem o pleno desenvolvimento da comunidade humana é que caracteriza o fundamento humano da ação. A inadequação a estes “valores” inviabiliza a organização comunitária ... da mesma forma que a adesão a falsos valores seria incompatível com a humanidade plena. Isso faz toda diferença quando analisamos o fundamento da ação no sujeito (humano).
    Filha, gostaria que você opinasse sobre o questionamento que levantei. Seria um bom começo para exercitar-nos na prática de “uma espécie de Filosofia do cotidiano”. O devaneio especulativo do “Velho Pensador”, filtrado pelo rigor do olhar científico de uma “Jovem Socióloga”, garantiria os bons frutos do esforço investigativo fiel ao propósito de solucionar o problema levantado.
    Um beijo do pai.
    Everaldo

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  9. Painho querido, meu dileto Velho Pensador,
    Antes de tudo quero pedir desculpas por não ter me pronunciado prontamente em resposta ao seu questionamento. Precisava de tempo para refletir e, assim, alimentar o diálogo com o Velho Pensador que não cansa de derramar sabedoria em seus escritos e despertar em mim, cada vez mais, o desejo de estudar, estudar e estudar ... para tentar compreender, minimamente, os movimentos do mundo e o “absurdo” (ou mistério) da existência que se produz na relação entre o "eu, o mundo e o mistério de nós ambos".
    Já dialogamos algumas vezes sobre a concepção de sujeito que me referencia para pensar os movimentos existenciais dos viventes e suas relações sociais. Quero reafirmar minha compreensão de que após a descoberta do inconsciente, não podemos mais pensar no sujeito como uma mônada fechada; um sujeito uno, racional, portador de uma essência coerente, lógica e estável. Na verdade, o conhecimento racional não dá conta de explicar todos os movimentos subjetivos inscritos nas ações humanas. Aliás, o racionalismo foi radicalmente questionado por Lacan quando subverteu o cogito cartesiano “Penso, logo existo” com a desconcertante afirmação de que “Somos, onde não pensamos”.
    Na verdade, com esta proposição, Lacan não pretendeu desobrigar os sujeitos de assumir a radicalidade dos seus atos; mas dizer que por sermos precários, insuficientes, erráticos, somos exigidos a aderir aos ditames culturais que ordenam o mundo dentro de parâmetros de uma sociabilidade pautada em princípios éticos e humanitários. Apesar de não sabermos, na totalidade, a razão de todos os nossos atos, temos que responder por cada um deles. Esse é o pressuposto para viabilizarmos a vida em sociedade.
    Não sabemos tudo de nós mesmos, por isso muitas vezes nos surpreendemos com os nossos desejos e, consequentemente, com os nossos atos. Somos sujeitos imprevisíveis, erráticos, inconstantes; nossos sentimentos não são plenos de coerência, consciência e racionalidade; ao contrário, no nosso permanente devir, estamos permanentemente diante de movimentos subjetivos ambíguos, incoerentes e, por vezes, desconcertantes. É difícil de viver esse pedaço da condição humana; mas, é fácil constatar que de fato somos interpelados por situações em que desejamos (algo, alguém ou alguma coisa) a despeito de sabê-las racionalmente (e socialmente) impróprias ou proibidas. Admitir que desejamos o que sabemos diante mão ser racionalmente proibido; isso me faz pensar que existe uma dimensão subjetiva que não está sob o nosso controle racional. Assim, temos que inventar e produzir a vida sabendo que não conseguimos apagar a condição de contingência, provisoriedade e a imprecisão de nossas vidas e sentimentos.
    A partir dessa compreensão concordo com Stuart Hall quando afirma que “O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora ‘narrativa do eu’. A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia”.
    Espero que essas reflexões alimentem nosso diálogo e responda em alguma medida o seu questionamento “se o “sujeito” é apenas um ponto de referência para as ações praticadas, como contextualizá-lo no dinamismo evolutivo da “pessoa humana” em que o “sujeito” se capacita a direitos e se compromete, assumindo deveres?”

    Beijo de sua Jovem Socióloga e filha,
    Ruth

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  10. Filha.
    Alimentando o diálogo que iniciamos sobre “generosidade” você está me proporcionando uma oportunidade de exercitar a capacidade de argumentar... Excelente exercício para retardar um pouco os efeitos da idade avançada sobre a capacidade de pensar. Sou grato por essa ajuda.
    Creio que podemos resumir o ponto central do nosso diálogo num questionamento semântico: “Afinal, o sujeito (humano) é apenas um referencial, aquele a quem a ação é referida, ou o fundamento dela?”
    Tudo que falamos até agora demonstra a necessidade que sentimos de definir da maneira mais precisa possível os conceitos implícitos numa exposição metódica sobre a condição humana, a existência, o sujeito, a pessoa, a consciência, a liberdade, a responsabilidade... mas o entrelaçamento e interdependência dos mesmos (conceitos) torna difícil conferir clareza ao discurso. Seguramente não consigo o melhor resultado neste sentido, mesmo assim, para mim valem as aproximações que nos podem levar cada vez mais perto do alvo perseguido.
    É evidente que o sujeito agente é o ator da ação, sendo ele a causa eficiente de um efeito específico. Sob esse aspecto o “agente” pode ser uma força da natureza, um animal irracional, o próprio homem. A relação de causa e efeito é a mesma na sequência temporal, porém em cada caso há peculiaridades que qualificam a causa e conferem significados diferentes aos efeitos produzidos. Um tufão destrói casas, arranca árvores, mata homens e animais, e tudo isso faz parte de um processo cósmico ao qual não cabe qualquer crítica... O animal abate sua presa para alimentar-se, obedecendo ao instinto de conservação que lhe garante a sobrevivência como um elo da cadeia alimentar que dá suporte e continuidade à vida na face da Terra... trata-se de um recurso natural para preservar a biosfera . O tufão e a fera, diferentemente do homem são agentes inconscientes. A qualificação do homem como “ser consciente” muda completamente a sua perspectiva como agente, diferençando a conotação da relação de causa e efeito inerente à sua ação... Neste contexto introduz-se um elemento novo, a intenção consubstanciada no valor que define a conotação de causa e efeito, exigindo do agente um comportamento justificado em função do objetivo da condição humana de aprimorar o exercício da consciência e da responsabilidade aderindo aos valores universais da “existência”. Sendo a ação humana algo intencional, pensado ou elaborado funda-se num valor do qual, o sujeito participa numa relação pessoal. A força cega da Natureza e a agressividade irracional da fera são regidas por leis impessoais e são inimputáveis. Mas o homem, em sua moldura histórica, como agente consciente é passível de julgamento e de crítica na medida em que é, não apenas ator, mas autor, fundador da ação que pratica em função de um valor assumido...

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  11. Em outro momento concordamos em serem congênitas a consciência e a liberdade, pressupostos indispensáveis do livre arbítrio. Então, a escolha e decisão de agir com base no “valor” torna-o (o valor) fundamental no comportamento humano. É o valor com o qual a “pessoa” está comprometida, que dá o timbre de humanidade à ação... não o sujeito como agente, simples veículo de uma ação. Percebe-se facilmente a diferença. Enquanto os atores inimputáveis obedecem às leis soberanas da Natureza, o homem, detentor da consciência reflexiva e livre arbítrio, como autor transcende a natureza e faz sua escolha, passando a ser responsável por seus atos... escolha que se baseia exatamente no “valor”.
    Partimos da premissa que a condição humana se define pelo exercício da consciência responsável. Nesta definição está implícito o conceito de liberdade, uma vez que a falta desta inviabiliza a prática responsável... como dissemos antes, a liberdade e a consciência são congênitas. Ora, liberdade é a capacidade individual de optar com autonomia, tendo em vista a atualização da escolha de uma alternativa feita dentre as muitas que se apresentam... esta é a função fundamental da consciência – tornar uma possibilidade em realidade.
    A razão, o sentimento e a vontade são os recursos da condição humana para sua plena realização mediante escolhas responsáveis... sendo a vontade uma força psíquica, sem meta ou finalidade, dirigida por motivos racionais, ou impulsos afetivos, melhor, pelo resultado do confronto entre estes dois gigantes da alma humana... Dessa forma se define a escolha, consubstanciada numa ação que visa a satisfazer necessidades e desejos pessoais.
    O confronto responsável entre o sentimento e a razão é presidido por valores que modelam a decisão final. A capacidade decisória da psique humana confere ao indivíduo uma responsabilidade ética modulada em regras sociais que presidem o convívio entre os homens. Ou seja, o homem já não é um ser natural, porém, um construto cultural... porquanto, já não está à mercê das forças cegas da Natureza ou do instinto animal. Sendo consciente e livre, pode escolher o que fazer em cada situação. Neste contexto o sujeito agente ganha uma qualificação específica que modela a relação de causa e efeito, imprimindo-lhe um caráter pessoal intransferível... não é mais apenas um sujeito mas uma pessoa .

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  12. O sujeito (impessoal), entendido como agente ou puro ator de uma atividade fica implícito na pessoa original, mas não se confunde com ela.
    Do ponto de vista epistemológico, a possibilidade de reconhecer a verdade tem sido alvo de especulações filosóficas. Neste contexto podemos confrontar as concepções de pensadores eminentes sobre a “verdade” e suas implicações sobre a condição humana. Descartes chega à conclusão de que a única coisa de que não pode duvidar é do próprio fato de pensar, armando seu axioma “Penso, logo existo”. No contexto da nossa discussão, se o eu sujeito existe porque pensa, se inclui numa dimensão ecológica e social, porque o pensamento está sempre inscrito na sua circunstância – os outros e o mundo. Necessariamente reflexivo, o sujeito pensante, preservando sua integridade existencial, orienta-se pelos “valores” assumidos em função de sua integração no todo em que está contextualizado. Ao assumir estes valores o sujeito se promove à condição de pessoa que se manifesta na relação com o outro e com o ambiente em que vive. Posteriormente, com a descoberta do inconsciente, mais profundo e envolvente do que a própria consciência, Lacan viria a afirmar: “Sou onde não penso”... tornando obrigatória a consideração da participação do inconsciente na definição das escolhas humanas. Todavia, ao passar de ator a autor, pelo exercício do livre arbítrio, para ser responsável, não obstante sua dimensão inconsciente, o homem continua pautando a escolha pelo valor assumido, como pessoa. Finalmente, Schopenhauer afirma que a vontade é a raiz metafísica do mundo e da conduta humana... Não obstante uma força cega, ela (a vontade) é a energia necessária para tornar efetiva a escolha, transformando-a em ato. E nesta perspectiva o Filósofo poderia ter dito, como pessoa, sou enquanto ajo, responsavelmente, por vontade própria. A vontade propulsora da ação, dirigida pela razão e pelo sentimento, confere uma dimensão histórica à condição humana, e nesta perspectiva a pessoa se revela, exatamente, na relação com o mundo e com o outro.
    A ética está montada em valores que transcendem o “sujeito” e são estes valores, atuando na relação interpessoal que fundamentam a ação propriamente humana, definindo a verdade pessoal. Consequentemente, a escolha e conformidade com um valor, é que determinam a humanidade da ação e tipifica seu caráter pessoal. O fato de o sujeito, indivíduo real, ser capaz de veicular objetivos e praticar ações, como agente, condutor de uma atividade, não subentende compromisso ético que só se configura na relação inter-pessoal responsável.
    Diante do exposto proponho, para a sua consideração, que a ação humana não se funda no “sujeito”, mas na “pessoa humana”.
    Confesso-lhe, minha querida socióloga, que temo, em minha leiguice afoita, estar fazendo tempestade em copo d´água, ou discutindo “o sexo dos anjos”!. Na verdade, tentei apenas destrinçar a intuição que num primeiro momento me fez questionar o sujeito como fundamento da ação humana.
    Beijo do pai.

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