sábado, 16 de julho de 2011

Devaneio especulativo II

As contradições da existência, a razão e a fé, o presente eterno.

O ser consciente existe como uma organização biológica altamente diferenciada, porém perecível, mas aspira a conservar a vida indefinidamente... Esta aspiração impossível para um ser temporal envolve a “noção de eternidade”, contraponto do tempo que se exaure no mundo visível e, obviamente, na vida biológica... obrigando-se, o homem, coerentemente, a elaborar a aceitação da própria finitude.
A noção de “eternidade” não nos chega pelos sentidos. Não é uma realidade definível. Semanticamente, poder-se-ia concebê-la como um conceito indefinido (não tempo)... De qualquer forma “eternidade” corresponde á idéia de algo abstrato, comum ao espírito, que não tem começo nem fim, que transcende o mundo aparente.
Jamais se poderá estabelecer na intimidade biopsíquica o limite entre o espírito e a matéria... da mesma forma que, analogicamente, a onda energética e a partícula se alternam de maneira imprevisível sem que haja separação essencial entre ambas. Poeticamente já se disse: “Alma, estado divino da matéria!”[1]... Invertendo a ordem dos fatores, diríamos (centrados numa cosmogonia espiritual monística) que a matéria é o estado temporal de Deus (Espírito Absoluto). Na verdade, ao admitir a hipótese criacionista, não há como pensar a unidade imanência / transcendência... Mas a presença e coerência evolutiva do Universo aponta para uma “continuidade” misteriosa do Criador, à criatura, na descontinuidade essencial entre ambos... Essa unidade inacessível à compreensão humana é o mistério do qual somos uma legenda ilegível. Este modo de pensar contraditório é o que mais se aproxima de uma descrição da realidade que vivemos como seres conscientes racionais... Realidade que não se pode descrever de forma clara. Quando queremos falar dela (uma contingência capaz de transcender-se!) transitamos, epistemologicamente, entre o enunciado de uma problemática real e a elaboração de uma idéia fantástica que só se torna real quando vivenciada pela fé, na experiência da integração comunitária de todos os homens...
Todos reconhecemos no homem, aptidões sutis (intuição criadora, inteligência linguístico matemática...) que não se explicam, linearmente, pelas funções biológicas... Todavia, não é reconhecível a intimidade  essencial entre o Espírito e a realidade biológica... Por isso a história do pensamento filosófico registrou, em certo momento, a adesão à tese de dois Princípios antitéticos (um espiritual, outro material), compatível com um maniqueísmo primário. Exclui-se este maniqueísmo ao afirmar-se que o “espírito” e o corpo físico não são entidades diferentes, mas uma alternância criadora na qual o Espírito eterno ora projeta, virtualmente, a imagem corporal no tempo, ora a recolhe no Seu seio onde se realiza a comunidade de todas as consciências... Esta ideia soa irracional ou fantasiosa até o momento em que a Física Quântica nos anuncia que a realidade não passa de miríade de possibilidades dentre as quais algumas se atualizam ao cruzar com a “consciência localizada”. Nesta perspectiva faria sentido dizer que o espaço e o tempo são projeções virtuais do Espírito eterno... A morte física representaria, então, a supressão da imagem virtual (o corpo físico), recolhida ao Espírito, Consciência Cósmica, Berço do Universo. O Espírito (eterno) já está presente aqui e agora neste corpo, o meu, o seu, e o dos entes que povoam o mundo. É-lhes imanente e transcendente... e, no homem esta diferença pode ser vivida como uma unidade, sem que desta experiência se tenha uma explicação racional. Eis o mistério que a Teologia[2] estuda num conjunto de conhecimentos fundamentados no ato de fé. Assimilado este “devaneio metafísico”, para o homem, a morte seria a porta que comunica o mundo “virtual” (visível, aparente), e o mundo Espiritual, o universo real das essências que se fundem num só ser absoluto (recapitulando a intuição platônica)!
Como vimos no texto anterior, a operacionalidade da vida temporal para o homem está no “agora”, o momento que reúne lembranças e expectativas imediatas, separadas pelo “presente” -  janela da eternidade no tempo. O homem tem dificuldade em deixar-se absorver no “presente”, vivendo-o integralmente, porque este é uma brecha no tempo, ausência (colapso) que não é apreensível como realidade temporal. A plenitude deste “presente” sem passado nem futuro é a própria eternidade. O homem só o vive, enquanto existência temporal, numa experiência mística na qual o tempo não conta. Em resumo, vivemos na eternidade ao experimentar o tempo no polimorfismo da contingência fugaz! O ponto crítico da “existência” não se define, pois, pelo objetivo escolhido que se pode alcançar com trabalho, tempo e talento, e se resolve na posse de um objeto do desejo motivo da felicidade do “eu” agente. Embora tudo isso tenha seu lugar na realização pessoal, histórica (presença no mundo), o que é mais importante na existência é a “posse” do que não podemos manipular, o “presente” sempre mascarado pelo agora[3], entendido como uma extensão da própria eternidade. O presente é, pois, como um “colapso do tempo” que vivenciamos, numa experiência singular, e assim nos tornamos o pulsar da eternidade, marcando o tempo! No nível existencial, histórico, nesta brecha cada um atualiza, criativamente, com maior ou menor brilho, uma das infinitas possibilidades de “ser” preexistentes no Absoluto eterno e único. A ação, em sua emergência é temporalmente imensurável; quando ela é identificada, o ato gerador do “novo” já é passado. Assim, na esfera pessoal cada gesto ou ação corresponde a uma projeção virtual da eternidade, desfocada pela finitude da contingência na qual se revela o Espírito criador. Esta visão espiritualista está presente no pensamento hinduísta que introduziu o conceito “maia” - aparência ilusória da diversidade do mundo que oculta a verdadeira unidade universal... e resvala na intuição platônica do mundo das ideias, eterno e imutável, modelo das coisas sensíveis, objeto de contemplação pelo pensamento.
Continua no próximo texto.
Everaldo Lopes


[1] Raul de Leoni no poema “De um fantasma”.
[2] Ciência ou estudo que se ocupa de Deus, de sua natureza e seus atributos e de suas relações com o homem e com o universo (Houaiss3)

[3] O momento vivido como expectativas e lembranças imediatas que se misturam numa busca criativa. Nesta perspectiva, quando o “novo” é percebido, já não é mais presente, porém passado

7 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Êita, painho, esse texto foi difícil. Mas, continuarei firme na leitura, tentando compreendê-lo.
    Seu escrito me fez pensar que ninguém, jamais, poderá relatar a experiência do que é viver a eternidade; a não ser que você esteja certo ao afirmar que o presente é a eternidade.
    Desculpe meus devaneios! Correremos o risco dos seus leitores dizerem: "Tal pai, tal filha"! Se isso acontecer, ficarei feliz!(Brincadeirinha!!!!).
    Beijo da filha,
    Ruth.

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  3. Oi pai,
    Comentava ontem com Ruth, por telefone, sobre o grau de complexidade de seus últimos textos e ela falou-me deste comentário que havia feito em relação a este "segundo devanio"!Lendo agora, não tenha dúvidas Rutinha... aqui é o caso: Tal pai, tal filha!!! No entanto, continuo convencida que este exercício intetectual é fundamental e até vital!! A vida seria medíocre demais se não existissem pessoas preocupadas em esmiuçar esta aventura que é a existência humana nos dando a oportunidade de enxergar além das aparências que o cotidiano oferece!!!Vcs dão uma exelente contribuição aos seguidores deste BLOG, que levam a vida muito a sério!!!

    Bjo nos dois!! Meus sempre pensadores, mas antes de tudo pai e irmã muito queridos!!!

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  4. Ruth, minha filha.Eu já estava prestes a postar o texto “Devaneio especulativo III”, quando li seu último comentário. Sustei, então, a edição da nova postagem para conversarmos em torno do que ficou mais obscuro na leitura que você fez do texto que escrevi. Você me ajudará muito se se dispuser a reler o referido texto, assinalando nele os pontos que ficaram mal explicados. Quando a gente lida com conceitos abstratos cuja legitimidade não se pode comprovar objetivamente, o texto fica, realmente, mais enigmático... Porém, mesmo assim, é preciso garantir a “lógica formal” que costura as idéias expostas... embora o produto final permaneça irreal para a “lógica material” mediante a qual tratamos os entes palpáveis, aparentes. Salvaguardada a lógica formal das afirmações feitas, aceitar ou não as teses enunciadas é uma questão de fé e não mais epistemológica. Perdoe-me a insistência minha filha, mas como são poucos os que se dispõem a comentar o que se publica em blogs, sou forçado a penalizar os que me leem. Espero seus questionamentos para retomar esta conversa.
    Um dos leitores do blog me fez um e-mail comentando as vantagens que tirou ao ler seus comentários e as réplicas correspondentes, referentes ao Devaneio Especulativo I. Pena é que não tenha editado seu comentário no blog.
    Fico no aguardo das suas sugestões.
    Um beijo do pai.
    Everaldo

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  5. Ginha, minha filha. Suas apreciações transparentes e carinhosas me levam a pensar que meus textos podem ter algum valor para os que conosco mourejam num mundo onde nos perdemos muito facilmente por falta de uma visão de mundo na qual nos contextualizemos. A ideia central das minhas lucubrações é que cada um de nós encontre dentro dentro de si mesmo uma âncora que não o deixe à deriva na busca de sentido para a existência.
    Um beijo do pai.Everaldo

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  6. Painho,
    Talvez a minha dificuldade na compreensão do sentido de eternidade, que você diz estar inscrito na dimensão existencial do “presente”, deva-se ao fato de acreditar na radical contingência da condição humana. Parece-me incompatível atribuir “eternidade” e “contingência” a uma mesma coisa; no caso, ao “presente” da vida humana.
    Até contactar com o seu texto, só percebia a eternidade como algo inscrito numa dimensão eminentemente celestial, ou seja, para além da vida terrena. Aceitar seus argumentos significa, portanto, desconstruir o próprio sentido de eternidade posto pelo senso comum que, vale salientar, é o que me informa sobre essa questão, já que nunca li nada, numa perspectiva científica, sobre essa temática.
    Tenho dificuldade de pensar o presente como uma “brecha no tempo” quando sempre pensei que a única dimensão temporal que me é palpável é o presente; considerando que o passado já passou, e o futuro poderá não existir para mim daqui a um segundo.
    A dificuldade de compreensão do seu texto começou quando você falou da impossibilidade de estabelecer um limite entre o "espírito e a matéria". Seria a mesma idéia que retoma adiante quando afirma que “não é reconhecível a intimidade essencial entre o Espírito e a realidade biológica....”? É a partir dessa constatação que conclui que “a matéria é o estado temporal de Deus”? Não entendi os argumentos, nem as conclusões.
    Deus, para mim, sempre foi eternidade. Deus está em tudo, em todo tempo e lugar. Mesmo advertindo sobre a impossibilidade de compreender, pela via da racionalidade, a “presença e coerência evolutiva do Universo”, você afirma que é através desta realidade que podemos constatar a “ ‘continuidade’ misteriosa do Criador, à criatura, na descontinuidade essencial entre ambos...”. Sei que é uma questão de fé! Aí, a partir disso, fiquei pensando que a vivência da fé é uma experiência única, radicalmente singular, intransferível e indizível para cada sujeito que a vivencia.
    Não sei o que você quer dizer quando afirma: “não há como pensar a unidade imanência / transcendência...”.
    Tenho muito dificuldade com os argumentos científicos no campo da física; então, toda essa sentença que transcrevo adiante fica absolutamente incompreensível para mim. Minhas limitações nessa área de conhecimento são incomensuráveis, por isso acredito que o problema não está no que você escreveu, mas no que eu não posso entender pelas minhas lacunas de formação no campo da física e da filosofia. A sentença que não compreendi foi a seguinte: “o ‘espírito’ e o corpo físico não são entidades diferentes, mas uma alternância criadora na qual o Espírito eterno ora projeta, virtualmente, a imagem corporal no tempo, ora a recolhe no Seu seio onde se realiza a comunidade de todas as consciências... Esta ideia soa irracional ou fantasiosa até o momento em que a Física Quântica nos anuncia que a realidade não passa de miríade de possibilidades dentre as quais algumas se atualizam ao cruzar com a “consciência localizada”. Nesta perspectiva faria sentido dizer que o espaço e o tempo são projeções virtuais do Espírito eterno...”
    Viajei na maionese (como dizem os jovens) nessas reflexões que você identificou como “devaneio metafísico”; e constatei meu absoluto desconhecimento do que seria a “intuição platônica” a que você se referiu. Como vês, o problema não está em seus argumentos, mas no meu desconhecimento de temas filosóficos que você trouxe para discussão. Talvez se você fizesse um exercício de nos mostrar como essas questões se apresentam no cotidiano, fazendo uma espécie de “filosofia do cotidiano”, poderia aumentar minhas possibilidades de compreensão das reflexões postas em seu escrito.
    Por enquanto, foi o que pude formular. Não vou pedir desculpas pelos meus devaneios; sei de sua generosidade intelectual na formação dos seus “discípulos”.
    Beijo da filha,
    Ruth.

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  7. Painho,

    FELIZ ANIVERSÁRIO!!!!!

    Que Deus mantenha a sua saúde física e mental por muitos e muitos anos. Você é um homem privilegiado pela sua inteligência e lucidez. Sinto-me privilegiada por tê-lo como pai e amigo. Que Deus continue abençoando nossa relação pautada pelo amor, pelo respeito e pelo reconhecimento mútuo.

    Amo muito você!

    Beijo no coração,

    da filha,

    Ruth.

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