Deparo uma foto na qual apareço entre
alguns dos meus filhos e netos, numa festa familiar. Constato que cercado pela juventude dos meus descendentes, amparado pelo afeto generoso dos entes queridos pareço mirrado,
insignificante. Mas percebo-me ainda saudável e lúcido, uma bênção na minha
idade já avançada. Agradeço, então, a Deus as reservas físicas e intelectuais
que não me abandonaram ainda. Essa reflexão remete à tarefa nada fácil da
humilde aceitação do envelhecimento sem perder a alegria de viver. Só há duas
opções: viver amargurado com as marcas inevitáveis que o tempo vai imprimindo
no perfil físico, ou encarar com bom humor
e criatividade o futuro incerto, apostando na possibilidade de
enriquecê-lo de forma inteligente e esperançosa. Obviamente, é mais sensato
fazer a segunda opção com ânimo combativo. Encorajado pela esperança, aceito o
desafio, e predisponho-me a vivenciar a unidade da matéria e do espírito que me
são constitutivos. Assim conto com assimilar intelectual e emocionalmente a
mais perfeita intimidade entre ambos, convencido da vitória final do espírito, pela
projeção da realidade psicossocial que experimento em minha vida temporal, transfigurada
numa perfeição absoluta transtemporal. Dessa forma é possível apaziguar os temores
habituais e viver as realidades cósmica e humana, integrando-as numa dimensão que
transcende o tempo, convencido de, como homem, abrigar uma alma imortal, perfectível. Essa contemplação
coerente com especulações[1]
transcendentais constitui a expressão cabal de uma espiritualidade que não se
ressente das mudanças temporais. Nessa perspectiva vai se estruturando a
superação dos temores e inquietações existenciais. Na verdade, a vida e o equilíbrio psíquico alcançado como
seres conscientes nos parecem verdadeiros milagres que refletem o espírito,
princípio de tudo.
Há mais mistérios na sobrevivência de um
organismo biológico do que pode supor nossa ciência circunscrita a medições espaciais e temporais. O
essencial, o que mantém a integridade biológica
funcional de uma simples ameba não é
analisável, escapa ao conhecimento objetivo, esconde a transcendentalidade do
impulso criador absoluto. Os cientistas podem ser capazes de construir uma
molécula original semelhante ao DNA, mas para fazê-la reproduzir-se (ter vida)
e transmitir suas características individuais terão que usar um organismo vivo
capaz de absorver o genoma artificial. Dessa forma, homens de ciência elaboram
protocolos de experiências que se propõem criar vida no laboratório; todavia,
ainda que fossem bem sucedidos, não teriam conseguido realizar este objetivo
nos seus tubos de ensaio. Portanto, a incapacidade de a ciência produzir a vida
em laboratório nos confere o direito de mergulhar mais fundo na contemplação de
um absoluto criador intangível.
Vivencio
um profundo sentimento de admiração e reverência ao pensar que cada segundo de
nossas vidas depende do equilíbrio de
alguns sextilhões de reações químicas integradas umas às outras num todo
harmônico, renovando-se
continuamente para que possamos
existir. Seria impossível sequer imaginar o controle externo absoluto das
relações funcionais entre as reações bioquímicas e os sistemas biológicos que
garantem a vida, seja a de uma ameba seja a do homem. No complexo algoritmo de
um organismo vivo há interações próximas e remotas tão caprichosas entre as
reações físico-químicas inerentes aos vários órgãos dos sistemas aos quais
pertencem, e dos próprios sistemas entre si, que se torna impossível nesse nível elaborar
um mapa da vida. Na origem de tudo isso
o sagrado anda de braços dados com o mistério que só se entremostra
furtivamente no exercício da consciência reflexiva.
Na complexidade da estrutura molecular do
universo estelar ocorrem transformações fantásticas; conversões da integração
de partículas materiais insignificantes em
organizações vitais com propriedades inteiramente diferentes da matéria bruta. Não
obstante, é impossível distinguir onde termina a matéria e começa a vida. Tudo
isso acontece, aparentemente, sem razão, mas, certamente, sob o comando da vontade
absoluta de uma consciência universal; de outra forma seria necessário admitir
o acaso que funcionaria na organização da matéria e da vida exatamente como um
absoluto criador, como tal, também objeto de fé.
Mesmo incapazes de desenhar o mapa da vida,
podemos entender que pequenas interferências num algoritmo de sobrevivência
biológica tão complexo podem produzir efeitos
capazes de corrigir distúrbios iminentes destrutivos do organismo vivo ou agravá-los. Que argumentos há para
contradizer o poder sutil de intervenções ao nível bioquímico, capazes de
interferir na dinâmica fisiológica responsável pela vida? Como negar que esta
interferência seja capaz de influir no
conjunto das reações biológicas que garantem ou ameaçam a homeóstase[2]
dos organismos vivos? No prolongamento dessas especulações, o poder da fé na oração, e de influências benéficas
decorrentes de fenômenos como a “ressonância límbica”[3]
entre as pessoas tornam possibilidades reais o que parecia impossível. E uma
postura rigidamente racional materialista deixa de fora muitas práticas sadias
que enriqueceriam a vida consciente, livrando-nos de medos perturbadores.
Lamentavelmente não há uma didática
convincente para ensinar a ter fé. Como o amor, a fé é um dom. Compete-nos
apenas abrir a alma para a experiência da crença incondicional no espírito
incriado para que este dom possa manifestar-se.
A consciência reflexiva também não se
explica à luz da biologia neuronal. A complexidade do Sistema Nervoso Central
que torna possível a manifestação das funções psíquicas superiores não basta para justificar a natureza íntima destas
funções; o homem, movido pela curiosidade é obrigado, então, a valer-se das verdades
de fé capazes de preencher com suposta
entidade imaterial (o espírito) as lacunas
que resistem à análise cartesiana do processo psicobiológico da consciência
reflexiva, do pensamento racional, da afetividade e da vontade. A ciência não explica o ser consciente; para
justifica-lo, o pensador utiliza-se, então, de uma plataforma especulativa da
qual empreenderá o salto transcendental mediante
introspecção iluminante apoiada pela fé
num absoluto criador.
No processo de percepção da consciência
reflexiva introduz-se a intuição de verdades eternas que só a fé
transforma em realidades existenciais insofismáveis.
Não podemos localizar na subjetividade do ser humano o ponto mágico dessas
transformações, mas é evidente que só através da intimidade subjetiva
espírito-matéria, pela fé, nos conectamos
com o próprio Criador do universo. Só num enlevo místico vislumbramos o toque deste
Criador nas nossas vidas, conduzindo-nos docemente para o arremate de uma
perfeição que se confunde com a
luminosidade do sagrado, fonte de tudo. A entrega a esta contemplação suaviza o
temor incômodo de ser irremediavelmente suprimido da existência; e nos permite vislumbrar
a possibilidade de uma transfiguração pessoal pela qual nos tornemos participantes da eternidade.
Depois das ponderações feitas até aqui,
razoáveis como possibilidades imagináveis, sinto que na minha subjetividade reforçam-se
os laços inextrincáveis entre o espírito e a matéria que de fato são
inseparáveis (a matéria não existe sem o espírito), e percebo que a angústia da
finitude que me amofina se torna menos incômoda. Mas a consumação desse
processo exige atitude de entrega confiante do ser consciente a um absoluto
criador, experiência cujo caráter místico
requer a prática incondicional da
fé, virtude que com a esperança e o amor (caridade[4])
dão sentido à existência. Essa realização é o arremate da verdadeira superação
das contradições da existência[5].
Everaldo Lopes.
[1]
Especulação - Investigação teórica, de natureza exploratória, sem apoio de
evidência sólida
[3]
Ressonância Límbica é uma capacidade dos mamíferos de entrar em sintonia com
as manifestações internas dos outros. É
a capacidade de sentir e até mesmo entender o que o outro sente, é um fenômeno que
podemos dizer físico, anatômico, psicológico e espiritual.
[4]
No vocabulário cristão, o amor que move a vontade à busca efetiva do bem de
outrem e procura identificar-se com o amor de Deus. (Aurélio).
[5]
Desejar ser eterno e sentir-se biologicamente limitado; desejar tudo conhecer e
saber que terá sempre um conhecimento limitado; desejar realizar-se em
plenitude e saber que sua própria
condição é de ser criatura imperfeita,
embora perfectível.
Nenhum comentário:
Postar um comentário