A evolução dos seres vivos percorreu caminhos tortuosos até a emergência
no homem da capacidade de pensar e refletir sobre a existência pessoal. Depois
de um longo percurso, a organização complexa do sistema nervoso central ensejou
o exercício coordenado da consciência, do sentimento e da vontade. Estas
funções psíquicas superiores permitiram ao homem escolher e orientar sua ação
segundo os valores consagrados, culturalmente, pela sociedade em que está
inserido. O livre arbítrio surgiu então no horizonte da evolução tornando-se o
homem responsável por suas escolhas. Dessa forma, o ser humano se caracteriza
por uma vertente biológica e outra cultural. A biológica culmina com a formação
de estruturas complexas do sistema nervoso central, e a cultural, elaborada por
cada um prolonga a sabedoria natural do corpo e culmina com a capacidade de
julgar para decidir responsavelmente de acordo com um código comportamental
assumido. Podendo erigir uma sociedade justa e igualitária, o homem deverá influir na conservação do
equilíbrio biológico e social, disciplinando seus hábitos alimentares e pautando
a melhor forma de organizar livremente a coletividade humana . Finalmente, o
diálogo entre os potenciais biológico e cultural do indivíduo abre espaço para
variações de sua conduta, configurando a necessidade de estabelecer e tornar
efetivos critérios decisórios representados por direitos e deveres individuais
e sociais que assumem a dignidade de valores.
A realidade cultural é de natureza extremamente complexa ao envolver
fatores psicobiológicos pessoais, sociais, e ambientais que interagem
mutuamente. A dinâmica cultural fundamentada no livre arbítrio deverá promover a harmonia da unidade perfeita do
indivíduo integrado num todo significativo. A compreensão das conexões biopsíquicas e culturais ultrapassa os limites da lógica linear
limitada a causas e efeitos singulares imediatos. Esta compreensão só se
evidencia à luz da lógica da complexidade que abrange em perspectiva a
interação exemplar entre todos os elementos da realidade humano-social, e
revela a perfeição da unidade psicossocial, na qual tudo tem a ver com tudo.
A integração das vertentes biológica
e cultural do homem se constrói, exemplarmente, mediante o processo de
socialização consciente e livre do indivíduo inspirado no ideal comunitário
cujo fundamento é a solidariedade humana. O comportamento resultante desta integração
envolve conhecimento, respeito, humildade, estima, responsabilidade e
indulgência essenciais à construção e manutenção da comunidade dos homens.
Quando nos detemos diante da análise
da constituição do homem chama atenção a
necessidade de um apoio transcendental para a consciência da própria identidade
individual. O fundamento do “eu” verdadeiro não são as funções biológicas estruturadas
do sistema nervoso central nem tão pouco o conteúdo subjetivo pessoal. Não
corresponde a uma síntese de ideias sobre a realidade íntima (subjetiva) de
cada um. Esses conteúdos variam ao longo do crescimento desde a infância até a
adultidade, no entanto a vivência do “eu” profundo que centraliza a consciência
original de cada um é a mesma, não muda com o tempo. Este fundamento do eu, portanto, está para além do tempo e do espaço,
transcende tudo que é permeável à análise racional. A natureza universal e
totalizante (dedutiva e indutiva) deste fundamento lhe permite separar o eu e o
tu (o outro), mas também os reúne numa unidade
transcendental (o nós) e os torna solidários mediante a coparticipação
constitutiva de ambos (eu e tu), inspirada na busca da integração perfeita em
um absoluto que tudo abrange.
O eu só existe diante de um tu. Constitutivamente, como dissemos antes,
o “eu” não pode ser reduzido a uma realidade biológica ou cultural, tem
originalmente um viés social, transcende a psique pura; e é vivenciado por cada um como um princípio
subsistente em si mesmo, manifesto “na consciência silenciosa e sem forma
dentro da qual inúmeras impressões
aparecem e desaparecem sem deixar rastro.” [1]
Existencialmente, este princípio ancora a razão, o sentimento e a vontade e se
manifesta sabiamente pleno na interseção destas dimensões humanas, à sombra de uma visão de mundo que para ser válida
precisa ser holística[2],
isto é, deve acolher as partes do todo integrando-as numa totalidade
significativa. Nessa caminhada, a dificuldade de vivenciar o suporte pessoal do
“eu” na diversidade complexa do todo absoluto deixa o homem sem chão do ponto
de vista psíquico afetivo. Faz-lhe falta definir o indefinível, um princípio
transcendental que apenas pode ser vivenciado, sobre o qual o indivíduo apoia
sua realidade subjetiva assumindo-a como o próprio “eu”. Ou seja, por trás da vivência egoica de um conteúdo subjetivo
existe um potencial inesgotável de
reconhecimento da unidade de tudo que existe, vivenciado como uma aspiração
incontornável à integração holística do próprio eu na realidade toda, o homem
e o universo. Esse potencial é o fundamento do eu mais profundo. Na
ausência deste fundamento, o indivíduo flutua sem um ancoradouro onde possa
amarrar suas crenças, mal amparado apenas por especulações metafísicas que não
bastam para garantir ao ser consciente a vivência do seu lugar num todo
absoluto, perfeito. Sem esta vivência, o indivíduo sofre a ansiedade e a
angústia de apoiar-se no nada. E para anular a inquietação acompanhante urge que
cada um abrace, com a força de uma crença, sua vocação de perfeição unitária reflexo
da realidade interior mais profunda. Neste espaço subjetivo o homem trabalha os
dados da sua realidade interior e circunstancial, em busca da vivência da
perfeição unitária absoluta que só se realiza na prática mística. A vivência da
integração na unidade de um absoluto transcendental significativo confere ao
indivíduo a certeza de vir a ser harmoniosamente criativo com os outros no
mundo, mediante participação holística em que cada um mantém relação imediata
com todos os demais membros da comunidade sob a inspiração de participar de uma
totalidade acabada significativa.
Enquanto não vivencia o fundamento
transcendental do “eu”, o sujeito consciente fica perdido dentro de si mesmo,
perturbado pela insegurança, tornando-se presa fácil da depressão. Descentrado,
corre o risco de buscar aturdir-se em atividades frenéticas nas quais espera
afogar a ansiedade e angústia decorrentes da insegurança total. Nesse clima de incertezas
encontram-se muitos jovens e adultos que,
desarvorados, procuram nas drogas e na violência mitigar a dor existencial do
sem sentido aparente da vida desgarrada de uma unidade absoluta criadora.
[1]
Mooji (Guru indiano)
[2] Tendência, que se supõe seja própria do Universo,
a sintetizar unidades em totalidades organizadas. Teoria segundo a qual o
homem é um todo indivisível, e que não pode ser explicado pelos seus
distintos componentes (físico, psicológico ou psíquico), considerados
separadamente; holística.
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