Conheci,
há muitos anos, um homem muito inteligente. Inteligente e culto. Versátil na
busca inquieta do verdadeiro, do belo e do justo sua invejável bagagem cultural
me impressionou desde os primeiros encontros. Médico, mantinha-se informado das
mais recentes conquistas científicas no
âmbito da sua especialidade. Humanista, dominava com desembaraço os clássicos
da literatura, da música, da pintura e discorria sem tropeços sobre as
correntes mais recentes do pensamento filosófico. Escreveu inúmeros sonetos, e
haicais[1],
belas composições. Nelas, extravasava seu amor à família e a dor moral, a mágoa
malsofrida, a revolta contida contra a perda trágica de um filho que nascera
pintor, e adolescente já demonstrava a opulência do seu talento. Como se não
bastasse, pouco tempo depois dois golpes brutais do destino se abateram sobre este
homem extraordinário. A morte levou um após o outro de forma igualmente trágica
e prematura, mais dois dos seus sete filhos. Não se pode descrever a profunda
tristeza de um pai assim golpeado. Mas este de quem falo aqui sofria duplamente.
Enquanto amigos, parentes, conhecidos deixavam que o tempo fizesse o seu papel
tecendo o delicado manto do amoroso esquecimento num saudável entorpecimento da
memória, este homem profundamente sensível insistia em conservar dolorosamente muito
viva a memória dos seus entes queridos falecidos, por querer perpetuá-los com a
força do pensamento.
É notório que para defrontar sem
angústia os limites inextensíveis da existência a razão sozinha não basta. É
preciso crer. E a fé que liberta o ser consciente da vivência de precariedade inerente
à própria finitude é um dom. A gente o recebe, mas não o pode forjar. Por isso
é um bem precioso a ser cultivado. Certa vez o descrente inconformado que me
inspirou este texto contou-me como e quando descobrira desolado haver perdido a
fé. Diante dessa realidade seguíamos
caminhos diferentes. Enquanto ele vivia sem esperança sua descrença, eu buscava
fundamentar com especulações metafísicas a minha crença bruxuleante numa
transcendência absoluta. Discutíamos interminavelmente. Ele não aceitava a
minha tese monista, criacionista, espiritualista. Eu argumentava justificando
minha proposição: “Uma vez que o conhecimento racional, objetivo, não ultrapassa
o mundo fenomenal, por que não aceitar a possibilidade de crer em verdades que
não cabem nos modelos racionais do conhecimento objetivo, mas também não podem
ser negadas racionalmente?” Tentava convencê-lo de que liberto do racionalismo
intransigente ganhar-se-ia espaço para justificada esperança de satisfazer a
aspiração humana a uma transcendência absoluta. Nesses termos, o diálogo entre a
consciência e o mundo se tornaria mais profundo e efetivo. Animado por essa
convicção, insistia na tentativa de persuadi-lo. E lembrava que a análise
fenomenológica do real concreto é o instrumento adequado para mergulhar no
conhecimento do universo físico, mas o conhecimento científico deste universo
fenomênico não explica a sua origem. Contudo, mediante especulações inteligentes, a
partir do conhecido como real concreto pode-se concluir que algo o precedeu... Algo
equivalente a uma inteligência universal misteriosamente atuante no
tempo-espaço, impondo uma ordem evolutiva cada vez mais complexa na permanente transformação da matéria desde o big-bang. Essa
abordagem especulativa não foge aos ditames do pensamento lógico o que para mim
a torna convincente. No entanto, preso à sua descrença o meu amigo não a aceitava
e concluía: “O homem não tem saída. Olhando
sua evolução histórica, não temos motivos para depositar confiança nele. Não
acredito mais no homem. Estamos caminhando, como espécie, para a
autodestruição.” No momento em que ele assim falava eu concordava em parte. Afinal,
a persistir a herança rudimentar da ancestralidade animal que se prolonga ainda
hoje no comportamento predatório do homem, não se pode descartar totalmente a
inviabilidade da espécie Homo sapiens! Todavia, lembrava em seguida que o momento
da Evolução que atravessamos não é mais crítico do que foram outros igualmente
difíceis. Exemplificando, há milhões de anos passados, após a última glaciação,
a vida quase se extinguiu no nosso planeta, mas entre os animais resistentes à
intempérie, sobreviveram uns roedores peludos, homeotérmicos, os mamíferos, de
cuja evolução dependeu a existência dos nossos ancestrais mais distantes na
escala zoológica. Assim como também foi desafiador para a espécie humana a
transição evolutiva da vida instintiva para a existência consciente e livre. Todavia
nós próprios somos uma prova viva de que a Evolução prosseguiu e o homem alcançou
superar as dificuldades inerentes à transição da vida instintiva para a vida
consciente, num processo ainda em curso, aprendendo a lidar com a necessidade
de escolher suas ações livre e responsavelmente.
Por outro lado, nas nossas discussões frequentes eu advertia o meu amigo aonde
o levaria sua descrença no homem. Pois em não crendo nele (o homem) nós mesmos nos
desacreditaríamos quando pretendêssemos sustentar
nossa verdade. Sem este crédito não teríamos porque confiar sequer nas nossas
próprias percepções e compreensão do mundo, a dele tampouco. Além do que sua tese
pessimista contém uma contradição porque se lhe dermos crédito estaremos
afirmando que há pelo menos um homem confiável, aquele que não crê nos seus
semelhantes. E isso invalidaria a
suposta descrença no próprio homem! Assim digladiamos intelectualmente durante
mais de meio século, sempre amigos porque nos respeitávamos mutuamente com
nossas diferenças.
Eu
sempre estive convencido de que o reconhecimento de uma causalidade recíproca
no dinamismo da realidade cósmica incorporada num Absoluto eternamente criativo
é fundamental para ancorar a vivência integradora compatível com a unidade
harmônica de um Todo absoluto que nos inclua. Neste contexto a virtude e
finalidade do homem no processo evolutivo consistiriam na flexibilidade
criativa das decisões de cada um, fundamentadas e apoiadas no e pelo exercício da consciência livre e responsável. Obviamente,
nessa linha de entendimento, para não cair em enganos grosseiros é preciso
levar a sério o conselho de Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo”. Embora este
conhecimento não pretenda ser completo, ainda assim, é essencial para
selecionar os motivos que impelem o ser
consciente às decisões que está tomando instante a instante; não há tarefa mais
difícil, exigente e nobre.
Nos nossos frequentes debates meu
amigo tentava justificar sua visão de
mundo com argumentos mais poéticos do que filosóficos. Encantavam-me suas
tiradas inspiradas que, todavia, não me convenciam. E encerrávamos nossas
discussões sem conseguir influenciar-nos mutuamente.
Mas
a verdade é que com o passar dos anos o
meu amigo abandonou seu agnosticismo radical e assumiu a postura de quem não crê em bruxas porém não nega que
elas existam[2].
Dizia-se agnóstico, mas no seu modo de ser rebelde, criativo e cultor da
verdade e da justiça, o Dr. Severino Bezerra de Carvalho deixou o exemplo de
uma existência íntegra, proba e generosa, comparável à de um cristão virtuoso.
Everaldo
Lopes
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