A perfectibilidade
humana implica na disposição diligente de cada um, de respeitar-se a si mesmo,
ao próximo e à natureza. Esse propósito se objetiva nas relações familiares,
políticas, sociais e econômicas inspiradas na verdade e na justiça. E através
de escolhas conscientes e responsáveis o indivíduo abre caminho para aprimorar o
seu desempenho no processo de hominização[1]. Aprimoramento pessoal
que pressupõe um compromisso ético indissociável do exercício da própria
consciência reflexiva. Seguramente, a fidelidade a esse compromisso é a solução
para todos os problemas que afligem a humanidade. Se analisarmos historicamente
o processo psicossocial que antecede as mazelas da sociedade vamos deparar em
algum ponto no passado com o descompromisso ético de uma pessoa ou grupo. Desobrigação
que desestrutura a sociedade, a partir de comportamentos amorais potencializados
pela difusão das práticas correspondentes.
A hominização começa com
a interdição das pulsões instintivas e se continua no esforço pessoal para disciplinar
o comportamento social de acordo com um projeto cultural humanístico voltado
para os valores que dignificam a existência[2]. Obviamente, a
humanização vai muito além da simples interdição de pulsões inconscientes. Interdição,
todavia, indispensável uma vez que estas pulsões são essencialmente egoísticas (ignoram
as interações sociais) e o processo de humanização se acompanha necessariamente
da socialização dos indivíduos. Como foi sugerido inicialmente as virtudes
éticas envolvem o respeito do indivíduo a si mesmo, aos semelhantes e à própria
natureza. Este envolvimento se completa na prática solidária do amor-caridade[3]. Mas antes de alcançar
essa perfeição o nível e o grau de participação social construtiva do homem ficam na dependência da sensibilidade moral dos indivíduos à dignidade dos outros, na
contextualização da existência de cada um numa sociedade igualitária. A correção
ética desta contextualização acaba induzindo soluções diferenciadas, moralmente
corretas, para os problemas econômicos, políticos e ambientais. Soluções
que exigem discernimento e disciplina da vontade. No outro extremo, o
desrespeito aos princípios éticos existenciais e sociais abre caminho para condutas
marginais, e alimenta a corrupção que degrada profissionais autônomos, funcionários
públicos, “políticos de carreira” e as instituições que os abrigam.
O resultado de uma
avaliação especulativa do processo de humanização demonstra que o grande salto
evolutivo consiste na integração comunitária da coletividade humana sob a égide
dos valores éticos universais. Este salto evolutivo resulta do exercício da consciência livre e
responsavelmente assumida, não obstante os limites restritivos do ego. Na verdade, paradoxalmente, na busca da
realização pessoal o ego deverá ser superado. Daí podermos afirmar que o homem
é um ser problemático. Expandindo o ego o homem permanecerá sempre limitado por
seu caráter egoísta. Portanto, a paz social e a plena realização do homem exigem
a ultrapassagem do ego que é apenas um momento subjetivo de referência, supervalorizado,
na descrição de uma rede de relações
interpessoais. Para ultrapassá-lo é preciso que cada um vivencie algo muito
íntimo anterior a este momento subjetivo. Proposta que leva o ser consciente a uma
profunda meditação. Só para dar uma ideia do que estou querendo dizer
transcrevo um pequeno texto da autoria de um pensador indiano: “Pense em si
mesmo, e uma imagem subtil é formada no interior da mente. Você não
é isto, nem nenhuma imagem ou pensamento. Você é a consciência silenciosa e sem
forma, dentro da qual inúmeras impressões aparecem e desaparecem sem
deixar rasto.” Mooji.[4] Esta “consciência silenciosa e
sem forma” precede o
“ego”, e é lá que o indivíduo
identifica o sentimento difuso da unidade do seu self[5].
Mas deixemos o aprofundamento dessa questão para depois.
Voltemos à discussão fenomenológica sobre a perfectibilidade humana. Freud
deu o nome de libido à energia psíquica dos instintos de vida. Esta força
psíquica implementa no homem a sequência de pensamentos e atos que configuram o
comportamento individual espontâneo nas várias conjunturas psicossociais. A
libido, como uma força da natureza é em si mesma acrítica, não tem compromisso
com valores éticos. A virtude pedagogicamente
definida consiste em reconhecer a libido,
disciplinando lhe o dinamismo selvagem. Nessa perspectiva a Psicanálise explica
os comportamentos sociais altruístas mediante
a reorientação da força psíquica da libido no sentido de fortalecer as
manifestações psicossociais dignificantes do ser humano. Nisso consiste o
processo de “sublimação”[6]. Desgarrada deste processo a libido se satisfaz
num leque de comportamentos primários que vão da indiferença agressiva, à violência social, com
desdobramentos na esfera sexual a exemplo do voyeurismo, das várias formas de
satisfação solitária do desejo sexual, e da prostituição. A diligência
inteligente no sentido de redirecionar a energia psíquica para a promoção do
comportamento social solidário e ético implica num processo de aprendizagem
complexo que, inicialmente demanda consciência esclarecida e disciplina da
vontade. Basicamente, a razão distingue na realidade psicossocial as interações
comprometidas com o ideal comunitário, orientando a direção em que se deve
aplicar a vontade para a consecução do equilíbrio solidário, ético, universal da
convivência humana. Essa disciplina comportamental impregna de verdade e de
justiça o comportamento das pessoas, criando hábitos culturais solidários que
levam a coletividade à prática das virtudes socializantes. Faz parte destas
virtudes, a intenção resoluta de buscar o ideal de excelência do comportamento
humano social, reconhecendo o limite dos desejos pessoais para lapidá-los com coragem e determinação em
prol da harmonia social. No contexto psicodinâmico, o paradigma de perfeição seria
o coroamento da existência com a prática
da solidariedade comunitária inspirada no amor à verdade e à justiça. Portanto a saga do homem perfeito é mais
propriamente a história da perfectibilidade humana levada a efeito mediante um
esforço esclarecido e voluntário de contextualização ética, comunitária, dos
indivíduos. Quanto mais coerente for o desempenho pessoal nos processos de
individuação e socialização mais próximo
do modelo de perfeição humana o indivíduo
chegará, embora fique sempre aquém do ideal perseguido. A santidade se
definiria como o arremate místico desse processo evolutivo, incorporando a
existência pessoal num todo absoluto significativo transcendental, unidade na
qual se harmonizam todas as contradições.
Diante das considerações
que vimos de fazer podemos dizer que o homem é um ser perfectível, porém não
existe o homem perfeito. Não se pode descrever o homem perfeito sem divinizá-lo.
A “História de Jesus de Nazaré”, escrita por Renan, pensador visto por muitos
como cético, mas que se dizia crítico moderado serve de exemplo para o que
vimos de afirmar. O autor declara que se tivesse que definir com uma palavra
o personagem central do seu livro , “divino”
seria o adjetivo escolhido.
Everaldo Lopes
[1] Aquisição
de caráter ou atributos distintivos da espécie humana em relação às espécies
ancestrais; Atualização da condição humana caracterizada pela consciência
reflexiva, pela liberdade e pela escolha responsável.
[2] Modo de ser peculiar do
homem
[3] No vocabulário cristão, o
amor que move a vontade à busca efetiva do bem de outrem e procura
identificar-se com o amor a Deus.
[4] Fonte: Blog “satsung with mooji”
[5] Indivíduo, tal como se revela e se conhece,
representado em sua própria consciência fora da influência de qualquer clichê.
[6] Psican. Processo inconsciente que consiste em desviar a
energia da libido para novos objetos, de caráter útil.
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