domingo, 9 de março de 2014

A saga do homem perfeito

A perfectibilidade humana implica na disposição diligente de cada um, de respeitar-se a si mesmo, ao próximo e à natureza. Esse propósito se objetiva nas relações familiares, políticas, sociais e econômicas inspiradas na verdade e na justiça. E através de escolhas conscientes e responsáveis o indivíduo abre caminho para aprimorar o seu desempenho no processo de hominização[1]. Aprimoramento pessoal que pressupõe um compromisso ético indissociável do exercício da própria consciência reflexiva. Seguramente, a fidelidade a esse compromisso é a solução para todos os problemas que afligem a humanidade. Se analisarmos historicamente o processo psicossocial que antecede as mazelas da sociedade vamos deparar em algum ponto no passado com o descompromisso ético de uma pessoa ou grupo. Desobrigação que desestrutura a sociedade, a partir de comportamentos amorais potencializados pela difusão das práticas correspondentes.
A hominização começa com a interdição das pulsões instintivas e se continua no esforço pessoal para disciplinar o comportamento social de acordo com um projeto cultural humanístico voltado para os valores que dignificam a existência[2]. Obviamente, a humanização vai muito além da simples interdição de pulsões inconscientes. Interdição, todavia, indispensável uma vez que estas pulsões são essencialmente egoísticas (ignoram as interações sociais) e o processo de humanização se acompanha necessariamente da socialização dos indivíduos. Como foi sugerido inicialmente as virtudes éticas envolvem o respeito do indivíduo a si mesmo, aos semelhantes e à própria natureza. Este envolvimento se completa na prática solidária do amor-caridade[3]. Mas antes de alcançar essa perfeição o nível e o grau de participação social construtiva do homem  ficam na dependência da sensibilidade moral  dos indivíduos à dignidade dos outros, na contextualização da existência de cada um numa sociedade igualitária. A correção ética desta contextualização acaba induzindo soluções diferenciadas, moralmente corretas, para os problemas econômicos, políticos e ambientais.  Soluções que exigem discernimento e disciplina da vontade. No outro extremo, o desrespeito aos princípios éticos existenciais e sociais abre caminho para condutas marginais, e alimenta a corrupção que degrada profissionais autônomos, funcionários públicos, “políticos de carreira” e as instituições que os abrigam.
O resultado de uma avaliação especulativa do processo de humanização demonstra que o grande salto evolutivo consiste na integração comunitária da coletividade humana sob a égide dos valores éticos universais. Este salto evolutivo  resulta do exercício da consciência livre e responsavelmente assumida, não obstante os limites restritivos do ego.  Na verdade, paradoxalmente, na busca da realização pessoal o ego deverá ser superado. Daí podermos afirmar que o homem é um ser problemático. Expandindo o ego o homem permanecerá sempre limitado por seu caráter egoísta. Portanto, a paz social e a plena realização do homem exigem a ultrapassagem do ego que é apenas um momento subjetivo de referência, supervalorizado, na descrição de uma  rede de relações interpessoais. Para ultrapassá-lo é preciso que cada um vivencie algo muito íntimo anterior a este momento subjetivo. Proposta que leva o ser consciente a uma profunda meditação. Só para dar uma ideia do que estou querendo dizer transcrevo um pequeno texto da autoria de um pensador indiano: “Pense em si mesmo,  e uma imagem subtil  é formada no interior da mente. Você não é isto, nem nenhuma imagem ou pensamento. Você é a consciência silenciosa e sem forma, dentro da qual inúmeras impressões aparecem e desaparecem  sem deixar rasto.” Mooji.[4]  Esta “consciência silenciosa e sem forma” precede o “ego”, e é lá que o indivíduo identifica o sentimento difuso da unidade  do seu self[5]. Mas deixemos o aprofundamento dessa questão para depois.
Voltemos à discussão fenomenológica sobre a perfectibilidade humana. Freud deu o nome de libido à energia psíquica dos instintos de vida. Esta força psíquica implementa no homem a sequência de pensamentos e atos que configuram o comportamento individual espontâneo nas várias conjunturas psicossociais. A libido, como uma força da natureza é em si mesma acrítica, não tem compromisso com  valores éticos. A virtude pedagogicamente definida consiste em  reconhecer a libido, disciplinando lhe o dinamismo selvagem. Nessa perspectiva a Psicanálise explica os comportamentos sociais  altruístas mediante a reorientação da força psíquica da libido no sentido de fortalecer as manifestações psicossociais dignificantes do ser humano. Nisso consiste o processo de “sublimação”[6].  Desgarrada deste processo a libido se satisfaz num leque de comportamentos primários que vão da  indiferença agressiva, à violência social, com desdobramentos na esfera sexual a exemplo do voyeurismo, das várias formas de satisfação solitária do desejo sexual, e da prostituição. A diligência inteligente no sentido de redirecionar a energia psíquica para a promoção do comportamento social solidário e ético implica num processo de aprendizagem complexo que, inicialmente demanda consciência esclarecida e disciplina da vontade. Basicamente, a razão distingue na realidade psicossocial as interações comprometidas com o ideal comunitário, orientando a direção em que se deve aplicar a vontade para a consecução do equilíbrio solidário, ético, universal da convivência humana. Essa disciplina comportamental impregna de verdade e de justiça o comportamento das pessoas, criando hábitos culturais solidários que levam a coletividade à prática das virtudes socializantes. Faz parte destas virtudes, a intenção resoluta de buscar o ideal de excelência do comportamento humano social, reconhecendo o limite dos desejos  pessoais  para lapidá-los com coragem e determinação em prol da harmonia social. No contexto psicodinâmico, o paradigma de perfeição seria o coroamento da  existência com a prática da solidariedade comunitária inspirada no amor à verdade e à justiça.  Portanto a saga do homem perfeito é mais propriamente a história da perfectibilidade humana levada a efeito mediante um esforço esclarecido e voluntário de contextualização ética, comunitária, dos indivíduos. Quanto mais coerente for o desempenho pessoal nos processos de individuação e socialização  mais próximo do modelo de perfeição humana o  indivíduo chegará, embora fique sempre aquém do ideal perseguido. A santidade se definiria como o arremate místico desse processo evolutivo, incorporando a existência pessoal num todo absoluto significativo transcendental, unidade na qual se harmonizam todas as contradições.
Diante das considerações que vimos de fazer podemos dizer que o homem é um ser perfectível, porém não existe o homem perfeito. Não se pode descrever o homem perfeito sem divinizá-lo. A “História de Jesus de Nazaré”, escrita por Renan, pensador visto por muitos como cético, mas que se dizia crítico moderado serve de exemplo para o que vimos de afirmar. O autor declara que se tivesse que definir com uma palavra o  personagem central do seu livro , “divino” seria o adjetivo escolhido.
Everaldo Lopes



[1] Aquisição de caráter ou atributos distintivos da espécie humana em relação às espécies ancestrais; Atualização da condição humana caracterizada pela consciência reflexiva, pela liberdade e pela escolha responsável.
[2] Modo de ser peculiar do homem
[3] No vocabulário cristão, o amor que move a vontade à busca efetiva do bem de outrem e procura identificar-se com o amor a Deus.
[4] Fonte: Blog “satsung with mooji”
[5] Indivíduo, tal como se revela e se conhece, representado em sua própria consciência fora da influência de qualquer clichê.
[6] Psican. Processo inconsciente que consiste em desviar a energia da libido para novos objetos, de caráter útil.

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