domingo, 23 de fevereiro de 2014

Considerações em torno da condição humana

         
                   A consciência reflexiva é o divisor de águas no curso da Evolução. Ela torna viável a possibilidade de escolher, decidir e, finalmente, de agir coerentemente. Essa potencialidade envolve a prática coordenada das funções psíquicas superiores[1] do ser humano que revelam o estágio evolutivo mais avançado, em complexidade, do sistema nervoso central. A partir de então o indivíduo evolui no sentido psicossocial buscando a melhor organização social da coletividade humana. Dessa forma desvia-se o vetor da Evolução até agora direcionado para o aperfeiçoamento biológico do indivíduo. O objetivo passa a ser a elaboração de formas cada vez mais sustentáveis de sociedade. Nesse ponto a Evolução ultrapassa o determinismo físico-químico assumindo a intervenção do livre arbítrio, característica eminentemente humana. O homem se constitui, portanto, num colaborador consciente e voluntário da própria Evolução. A sequência representada pela escolha, decisão e ação pertinente define uma maneira de ser, a existência[2] que  resulta de uma sucessão de escolhas, confundindo-se com a manifestação da própria liberdade. Idealmente, estas escolhas devem ser coerentes com um princípio diretor fonte de valores morais que delimitam o exercício responsável da liberdade. Mas, na prática há variações de comportamento concernentes à ideologia inerente ao princípio diretor assumido, à visão objetiva da realidade e ao compromisso do homem com a verdade.  Por conseguinte o recém-nascido da espécie Homo Sapiens sapiens deverá tornar-se homem mediante o processo de individuação[3], marcado por escolhas pessoais. Assim o homem não é um ser natural, mas um ser de cultura. Ou seja, não há um modelo de homem na Natureza. Nessa perspectiva, ao  tomar decisões o homem se inventa e dá consistência de verdade à sua criação (atualização da condição humana[4]) com o testemunho do comportamento pessoal. Isso implica na busca continuada, nem sempre exitosa, de relações intersubjetivas talhadas pela solidariedade. Ao longo da história, as escolhas felizes que satisfazem o objetivo dessa busca constituem modelos culturais perseguidos voluntariamente como um ideal de convivência. Assim sendo a perfectibilidade humana evolui das relações sociais respeitosas às solidárias, fundamentadas no amor.
                   A razão, a afetividade e a vontade são os recursos psíquicos fundamentais para a construção da “existência”. Destarte, pelo pensamento o ser consciente compreende o mundo, pela afetividade liga-se à sua circunstância mediante sentimentos e emoções, e pela vontade (ânimo, desejo, empenho) prioriza a ação escolhida, resultado da negociação, sob o signo da verdade, entre o pensamento (razão) e a afetividade (sentimento) integrados na realização dos Princípios diretores do vir a ser pessoal. Daí podermos dizer com propriedade que o “homem se inventa a si mesmo” e por isso é responsável pelo que faz. Todavia o indivíduo não pode ser original o tempo todo porque muitos comportamentos foram codificados culturalmente antes do seu nascimento. Constituem hábitos e costumes, condicionamentos, enfim, aos quais o indivíduo adere naturalmente durante o processo de individuação. Todavia o padrão cultural cultivado pode ser questionado e reformulado em qualquer tempo, tendo em vista uma visão mais ampla do modo de ser-com-os-outros-no-mundo. Nessa situação o homem “se reinventa” para atender a uma mundividência mais abrangente e o faz afirmando sua verdade ao protagonizar o segmento histórico da Evolução.  Sua participação é fundamental para o arremate do processo de complexificação crescente desde a matéria primitiva caótica até a vida consciente. Neste processo a essência do homem é o que ele consegue fazer de si mesmo, através de suas escolhas e decisões. Em outras palavras, a essência do homem é definida a partir de sua própria existência, o que justifica a célebre conclusão de Sartre: “no homem a existência precede a essência”, o inverso da concepção aristotélica sobre o que acontece nos seres naturais. Diante de muitas possibilidades cada um decide conscientemente atualizar esta ou aquela alternativa, e arca com as consequências de sua decisão, tornando-se, portanto, responsável pelo que “é”. Essa peculiaridade especificamente humana converge idealmente para a construção de uma comunidade solidária, a única forma de tornar viável a espécie Homo Sapiens sapiens, “parte da biosfera mais influenciada pelo universo do pensamento e pela atividade mental consciente”[5]
                   Como foi dito antes, ao nascer o homem já encontra um ambiente cultural constituído por usos e costumes para os quais o recém-chegado não contribuiu. Porém, mediante o pensamento e sua capacidade criativa o ser consciente reflexivo transcende o momento cultural em que está inserido podendo modifica-lo, modificando-se. Percebendo melhor a complexidade histórica do seu momento existencial o indivíduo pode criar novos esquemas para responder às situações existenciais conflitantes promovendo melhores condições de interação social. Nesse sentido é legítimo dizer-se que “pensar criativamente é transgredir”... é o passo inicial da mudança dos comportamentos atuais para outros mais adequados à atualização da condição humana. Numa perspectiva evolutiva, esse esforço criativo influi no universo através de relações intersubjetivas que garantam a unidade social. A sustentabilidade desta unidade exige interação responsável com a natureza, fechando o ciclo de influências recíprocas entre o homem e o mundo. Afinal, o cosmo toma consciência de si mesmo através do homem na mesma medida em que a consciência reflexiva é a imagem especular peculiar de cada um de nós enquanto somos uma extensão privilegiada do próprio cosmo. Ao lidar, consciente e responsavelmente com a própria realidade, escolhendo o modo de ser mais compatível com o pleno desenvolvimento psicossocial, o homem interage, também, com o mundo, influindo no equilíbrio ecológico. É de certa forma terrificante para o homem assumir essa responsabilidade sem outro apoio senão o dos seus próprios recursos finitos. Este é um sentimento aflitivo para os agnósticos que não dão crédito a uma transcendência absoluta unificadora e significativa na qual possam encontrar apoio moral para as suas escolhas. Realmente o mundo não “tem sentido sem o nosso olhar.” Mas não é “este” olhar que dá sentido ao mundo, e sim, a capacidade deste olhar de reconhecer no mundo a ordem emanada de uma transcendência absoluta - a “Consciência Universal”. Em se tratando de um absoluto, a Consciência Cósmica (universal) pode ser fundamentada teoricamente por uma especulação metafísica, mas dificilmente escapa de ganhar um colorido místico no imaginário coletivo. A Física Quântica dá suporte teórico às cogitações racionais que conduzem à necessidade lógica de uma Consciência Universal, mas para grande parte dos seres pensantes ela é ainda apenas objeto de fé.
                   O tema é deveras fascinante e comporta desdobramentos teóricos e práticos. Muitos destes desdobramentos estão sendo abordados neste Blog numa linguagem leiga, despretensiosa. Visite-o, compartilhe-o com seus amigos  e faça seus comentários.
                                   Everaldo Lopes                            





[1] Consciência reflexiva, razão, sentimento (Disposição afetiva em relação a coisas de ordem moral ou intelectual) e vontade.
[2] Modo de ser peculiar do homem.
[3] Processo por meio do qual uma pessoa se torna consciente de sua individualidade, de acordo com C.G. Jung (1875-1961)


[4] Ser consciente e responsável
[5] Pe. Teilhard de Chardin (Arqueólogo, antropólogo e Filósofo)

3 comentários:

  1. Painho,
    Você sempre se superando...
    A constatação de que o "mundo não 'tem sentido sem o nosso olhar'", põe-nos diante de uma responsabilidade extrema; a responsabilidade de exercer a criatividade, sendo esta a condição para nos inventarmos e reinventarmos a vida cotidianamente. É preciso entender que o colorido da vida faz parte de nossas escolhas; mas, também é verdade que nem sempre dispomos do melhor estoque de cores e tonalidades para pintar a vida como desejamos.
    Eis uma "tarefa" nobre e fascinante: aprender a viver sem lamúrias e lamentações...aprender a arte de fazer e acontecer com a certeza de que nem sempre conquistaremos o mundo de nossos sonhos.
    Às vezes queria ter encontrado mais coisas prontas; gostaria que os que me antecederam já tivessem superado alguns itens que nos são extremamente caros e exigentes; particularmente, gostaria que tivessem me dado um mundo mais solidário, mais amoroso, mais justo e igualitário.
    As exigências do vir a ser permanente são múltiplas, mas, de fato, não podemos abandonar o compromisso ético de fazer um mundo melhor para nós, que ainda estamos vivos, e, também, para os que vão nos suceder. Para podermos deixar um mundo melhor para quem vem depois de nós precisamos, realmente, fazer escolhas "talhadas pela solidariedade".
    Painho, preocupo-me com os rumos que estamos tomando ... às vezes, tenho a sensação (certeza) de que o individualismo triunfou; que os laços afetivos em torno dos interesses da coletividade tornou-se uma peça rara no museu das antiguidades... Mas, se o mundo só ganha sentido com o nosso olhar, preciso persevera na busca das melhores cores, das mais belas tonalidades e das perspectivas mais deslumbrantes ... para que eu não perca a esperança...
    Desculpe o tom meio pessimista; sei que não tenho o direito de ser pessimista, assim, não estaria fazendo jus aos que me antecederam, aos que lutaram bravamente pela concretização dos princípios humanitários, em favor da vida e da paz. Obrigada por suas palavras! Elas apontam o caminho do otimismo; convidam-nos a perseguir a dádiva de uma experiência mística em sintonia com a Consciência Universal. Mesmo que às vezes falte coragem, comprometo-me em perseguir esse desafio até o fim...
    Beijo no coração, da filha,
    Ruth.

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    1. Filha.
      Gostei do destaque que você deu à afirmação: “Realmente o mundo não tem sentido sem o nosso olhar.” Obviamente, dessa responsabilidade o homem não escapa. Mas para cumprir seu destino no concerto do universo (o homem) deverá ser capaz de ver além do fenômeno o ordenamento que sustenta o mundo. Daí a importância de complementar a afirmação em destaque com esta outra: “Mas não é este olhar que dá sentido ao mundo, e sim, a capacidade deste olhar de reconhecer no mundo a ordem emanada de uma transcendência absoluta - a Consciência Universal”. Este é o grande desafio ao qual a Evolução submete o homem exigindo de cada um o esforço necessário para atualizar coerentemente a condição humana. O que significa ser capaz de por em prática a coesão intrínseca entre a consciência reflexiva, a liberdade e a responsabilidade.
      É a confiança na perfeição da totalidade absoluta significativa da “Consciência Universal” que alimenta o otimismo combativo cujo suporte especulativo metafísico livra-o de parecer ingênuo. Em se tratando de um absoluto, a Consciência Cósmica (universal) garante o acerto final de todas as contradições históricas que nos afligem hoje. O absoluto é único e a sua unidade não comporta contradições. A certeza dessa conclusão lógica nos coloca diante da convicção de que o Universo e o homem não são uma aventura louca, sem sentido. Tudo faz parte de um plano grandioso cujo arremate demanda a colaboração do homem mediante o exercício responsável da consciência livre. Na expectativa de que se cumpra essa mundividência que teoricamente tem um desfecho necessariamente comunitário, sob a ameaça de ruptura da própria Evolução, podemos confiar em que o individualismo não prevalecerá.
      A necessidade de uma transcendência implícita nessa visão de mundo nos remete para além do horizonte racional do conhecimento objetivo vinculado ao espaço e ao tempo. Constatação que nos leva a repetir o poeta: “Um dia ...... a humanidade inteira....... há de fazer da razão e da fé os dois olhos da alma; da verdade e da crença os dois polos do mundo.”
      Filha vou parar por aqui para não me tornar cansativo na tentativa de esclarecer meu próprio pensamento. Mas se lhe aprouver poderemos alongar esse comentário que pretende ser esclarecedor. É sempre uma alegria enorme dialogar com você.
      Um beijo do pai.
      Everaldo

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  2. Painho, meu querido e eterno velho pensador,
    Suas explicações são sempre muito bem vindas. Você fala na medida exata... Aliás, já lhe disse, em outras ocasiões, que suas palavras são para mim como pedras preciosas que enriquecem minha existência. Só tenho a agradecer por sua generosidade, sabedoria e disposição para me ensinar a vida. Amo você!
    Beijo no coração, da filha,
    Ruth.

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