“Quem
sabe faz, quem não sabe ensina”[1].
Diz-se sentenciosamente das pessoas com relação ao seu desempenho nas atividades
que envolvem conhecimento e habilidade. Quanto à construção da existência dir-se-ia
analogicamente: Quem sabe vive (faz a sua hora), quem não sabe segue o rebanho,
ou filosofa.
Ao
descobrir a precariedade do seu próprio vir a ser, o homem se empenha na busca
de orientação existencial que lhe dê alguma segurança. E tenta elaborar
proposta pessoal a fim de exercitar-se nas práticas conscientes e responsáveis.
Mas defronta dificuldade em fundamentar um princípio dinâmico para construir sua
existência. Ora, o exercício pleno da consciência é inextrincável da liberdade.
Portanto, o equacionamento da existência implica necessariamente na adoção de
valores escolhidos e eleitos. Todavia, para eleger responsavelmente uma postura
existencial ética é preciso ter critérios de escolha e estes são elaborações
humanas, falíveis, pelo que o “eu agente” por mais cauteloso que seja corre
sempre o risco de errar. O homem vive assim o drama de ser responsável por suas
escolhas, assumindo as incertezas
inevitáveis. Empolgado por essa responsabilidade intransferível é desafiado a
viver em função dos seus valores éticos e sofre turbulências subjetivas que no
texto bíblico foram tão bem sintetizadas pelas tentações que Jesus sofreu no
deserto[2]. Todos
padecemos provações semelhantes, e diante das dúvidas que nos assaltam vivemos
momentos críticos e sentimentos inquietantes. Não de desilusão, continuamos
esperando uma inspiração decisiva... Não de indiferença, continuamos curiosos
de qual seja a melhor escolha... Não de abulia, sentimos o espírito indócil à
cata de razão válida para justificar uma opção... Não de depressão, sentimo-nos
inteiros, diante dos estímulos que nos incitam... Irritação? Sim, um pouco,
diante da incompetência e da dissimulação no entorno social descomprometido com
a grande responsabilidade de ser homem. Cansaço? Talvez, de tanto ver
frustrados os esforços mais entusiásticos pela causa da verdade, da competência
e da justiça, ingredientes indispensáveis para o exercício exemplar da condição
humana. Aqui, acolá um desânimo passageiro de poder encarnar afinal o perfil exemplar
da existência ética e construtiva. Num momento assim, é vital não perder a
perspectiva dos valores universais da existência[3], para
seguir adiante. Todavia, muitas vezes, “como
ingênuos peregrinos, parece-nos que foi sempre por um passo distraído que começaram todos os destinos...”[4] Talvez,
passado algum tempo, depois de haver explorado muitos caminhos, sobrevenha um
langor, de mistura com o anseio do retornar em busca de algo que ficou perdido
no caminho e agora já seria tarde demais para recuperá-lo... uma vivência
melancólica, agravada pela certeza da irreversibilidade do tempo, e pela
expectativa do desfecho inevitável da vida. Vivência que se prolonga na
nostalgia da evocação de algo além da realidade do mundo visível, aparente!... De concreto o homem íntegro guarda apenas a
certeza de que os seus atos no passado não o envergonham, e deixaram marcas nas
páginas da história que vem escrevendo com sua existência.
Alimenta a esperança de que tudo faz sentido no contexto de um todo absoluto no
qual está inserido. Necessita dessa crença amparada, aliás, em especulações
consistentes[5],
para situar-se numa perspectiva evolutiva do mundo. Um autoengano? Nunca se saberá
com certeza racional cristalina. Mas esta convicção íntima é estruturante na
medida em que ajuda o “eu” pensante a sentir-se
um elo no processo evolutivo do qual participa em parceria com a Natureza. Nas suas vitórias, por vezes inesperadas, o
homem sente-se pequeno nesta parceria. Reconhecendo sua pequenez, porém, deixa-se
ficar “... distraído / do enigma eterno sobre que repousa, / sem nunca
interpretar o seu sentido”[6]... e
espera ter “...de harmonia com a alma, /
essa felicidade ingênua e calma, / que é a tendência recôndita das coisas!...”[7]. Luta
para concretizar seus projetos, mas com o passar dos anos reconhece que escasseia
a expectativa excitante de um intento desejável que lhe esteja ao alcance. A
criatividade empobrece com a idade e torna-se difícil, mas não impossível,
manter acesa a chama do élan vital. Ameaça-o uma penumbra apática. Mesmo assim
não morre a esperança de um acontecimento revitalizante, embora como disse
Drummond de Andrade, “em vão e para sempre repetimos os mesmos sem roteiro
tristes périplos[8]”.
Todavia o homem não se rende enquanto, “...exausto, contudo, / resta a vontade que ainda ordena: persiste!”[9] Estas
citações revelam quanto a problemática existencial afeta a sensibilidade dos Poetas.
Meditar
e especular ajudam a compreender a dinâmica existencial do equilíbrio interior do
individuo consciente de sua realidade precária, sempre ameaçada. Esse conhecimento
favorece a implementação de posturas adequadas no vir a se pessoal. Limitado
por sua natureza temporal, movendo-se em direção a uma meta, o homem precisa
transcender-se a cada instante em constante transformação, atualizando a necessidade
permanente de ultrapassar-se. Para atender a essa exigência existencial precisa
situar-se na cadeia evolutiva da vida de modo a objetivar o sentido da sua
existência. Precisa acalentar a esperança de ser para algo significativo. A
consciência do tempo que foge perdendo-se para sempre é uma experiência
desagradável difícil de elaborar... até o advento de uma vivência mística!
Na
sua trajetória o homem imaturo busca encontrar na repetição do prazer
transitório a felicidade completa jamais alcançada nesta vida. Na maturidade da
sua existência acaba reconhecendo que só uma vivência de participação na
unidade do todo absoluto no qual está contextualizado apazigua a consciência
sedenta de eternidade. E luta por harmonizar os prazeres sensuais com a imensa
aspiração de ser divino, tentando consumar a harmonia interior numa vivência
excepcional de comunidade com todas as consciências, cuja leitura mística
corresponde à experiência de existir participando da unidade divina. Nessa vivência
mística se resume a instância mais elevada da aspiração humana.
Everaldo
Lopes
[1]
Corruptela de uma velha piada acadêmica inglesa.
[2] Concupiscência
da carne; soberba da vida(fascínio pelo poder); concupiscência do
espírito(insubmissão às verdades eternas).
[3] Verdade,
ação correta (conformidade com a consciência ética), amor, paz, não violência
[4] Ideia
implícita no soneto de Raul de Leoni -“Vivendo”
[5] Vide neste
blog “devaneio especulativo I”
[6] Raul de
Leoni – no soneto Exortação
[8] Drummond
de Andrade – no poema “ A Máquina do Mundo”
[9] Idéia
contida no poema “Se”, de Rudyard
Kipling.
Painho,
ResponderExcluirAcredito que consegui captar, definitivamente, sua compreensão sobre o sentido da existência como um projeto evolutivo que envolve o Espírito Divino. Entendi que fazemos parte, mesmo com nossa insignificância, de um projeto maior, de uma cadeia evolutiva presidida por Deus; um projeto que participamos como um elo que nos possibilita participar da Unidade Divina. Isso é o que possibilita acreditar que somos e existimos para algo significativo! O sentido da existência, portanto, não poderia residir na pequenez de nossas curtas existências (finitas e precárias), mas no fato de compormos esse projeto evolutivo maior, que nos transcende e nos ultrapassa: o projeto evolutivo onde "a experiência de existir" participa "da unidade divina". Quero crer que não se trata de um autoengano. E como sabê-lo? Se conduzirmos nossa vida orientados por essa Razão, não precisaremos de confirmação! O percurso de uma existência pautada em tão nobre missão, não precisaria de provas cabais ... talvez jamais possamos tê-las.
Li seu texto e senti toda a sua humanidade! Comove-se a sinceridade e a humildade com que fala aos seus leitores. No alto de sua maturidade, com a experiência de quem já desfrutou de 85 anos da existência, esclarece-nos que podemos viver uma felicidade "ingênua e calma" apenas quando entendemos que a felicidade plena não existe. Admitir que algo nos escapa e que, às vezes, não é possível voltar o caminho percorrido pois "agora já seria tarde demais para recuperá-lo"... É uma constatação bonita e demasiado humana!
Lidar com a irreversibilidade do tempo, com a finitude expressa no desfecho inevitável da vida, admitindo que é preciso "assumir as incertezas da existência", não é tarefa fácil. Mas, o seu testemunho, pode ter certeza, revigora em mim o desejo de assumir o risco do erro com a certeza de que procuro fazer minhas escolhas pautadas em valores nobres, tentando produzir uma "existência ética e construtiva". Não quero viver com a ilusão de que se voltasse o tempo faria tudo diferente do que fiz. Se cometi enganos, os fiz acreditando que estava optando pelo melhor! De fato, não podemos acreditar que "foi sempre por um passo distraído que começaram todos os destinos". Isso não é verdade, ainda que saibamos que o acaso, a contingência e a imprevisibilidade são elementos constitutivos da condição humana.
Você tem razão: quando estamos convictos dos valores que elegemos para orientar nossas existências, conseguimos ultrapassar e sobreviver às provações, dúvidas, perturbações e turbulêncais subjetivas sem deixarmo-nos sucumbir. Esses “momentos críticos” podem abalar nossas estruturas, mas não podem nos desesperançar.
Adorei suas palavras em torno do envelhecimento humano: "A criatividade empobrece com a idade e torna-se difícil, mas não impossível, manter acesa a chama do élan vital. Ameaça-o uma penumbra apática. Mesmo assim não morre a esperança de um acontecimento revitalizante...”. Elas transmitem vitalidade, otimismo, esperança...sentimentos que estão escassos nesse mundo de nosso Deus. Desejo que a sua vida seja repleta de acontecimentos revitalizantes ... e que você fortaleça a crença e a esperança que agora também são minhas: de “ser para algo significativo”! Essa é a crença que me fará levantar dessa cadeira agora e seguir para a UFAL ... continuando minha missão que não é só minha...
Beijo no coração, com amor, de sua filha,
Ruth.