Há muitos
anos, indagando o que seria mais
importante para alcançar o equilíbrio existencial,
a resposta emergiu como
uma intuição: “desenvolver a capacidade de viver sob o signo do amoroso desapego
à vida”. Obviamente, este
objetivo se desdobra em outros menos ambiciosos,
porém não menos
exigentes, no dia
a dia de cada
um. O desapego[1] à vida, basicamente, é o desapego
aos bens materiais,
ao conforto, aos prazeres legítimos, ao prestígio social,
ao poder econômico. O que não significa renegar
estas situações privilegiadas, mas estar
apto a lidar com
a falta delas; enfim, é apenas o
reconhecimento de que elas não são essenciais. Esta disposição torna o
indivíduo mais autônomo e capaz de desfrutar com maturidade as vantagens
conquistadas por mérito. Para ilustrar o
significado da afirmação anterior dir-se-ia: ninguém em
sã consciência alimenta o ideal de viver só, mas é preciso aprender a viver só para melhor
valorizar o companheirismo e ser uma boa companhia. O/a companheiro/a carente
desenvolverá, salvo raras exceções, uma relação de dependência; e a falta de autonomia
e liberdade a que leva a carência de um dos parceiros sufoca a pureza do amor
entre ambos.
Na caminhada existencial é relevante
estar consciente do que significa “ser-responsável-no-mundo”. Nesta perspectiva
o amor à vida
implica desejar degustá-la com prazer e sabedoria. Ou seja, aprender
a fruir os prazeres
dos sentidos, definindo-lhes, os limites críticos,
aquém e além
dos quais a humanidade
se desfigura, respectivamente, seja pela
autoagressão que acontece na ruptura da sobriedade,
seja pela heteroagressão que ocorre no desrespeito
ao «outro». Estes limites se definem nos
processos simultâneos de individuação e socialização que marcam a história de
cada um. Tendo em vista alcançar o equilíbrio ideal da existência é preciso modular a vida com a sensibilidade
do poeta e a liberdade do sábio, numa experiência
comunitária. Neste patamar existencial é
evidente a predisposição do indivíduo de encarnar com
autenticidade a dimensão solidária
do seu vir-a-ser no mundo. Este é o primeiro passo de uma caminhada longa,
longa, interminável... o caminho único, aberto para a humanização
integral. Perlustrá-lo, significa abrir mão do narcisismo
básico e de tudo
que ele
representa: egoísmo, orgulhosa ostentação do ego
projetado na autoimagem valorizada, dificuldade em fazer empatia. Estas mazelas psicológicas têm sido responsáveis por grandes tragédias e por
todas as ambiguidades que enfermam o convívio social humano.
O equilíbrio
entre a fruição
dos desejos individuais e a colaboração espontânea em
atividades coletivas representa o climax
da sabedoria de “ser-consciente-no-mundo”. Sabedoria
que transborda
no sentimento de estar
o indivíduo de bem consigo
mesmo, aceitando os próprios
limites e os alheios, sem abandonar o esforço permanente
de transcender as fronteiras virtuosas alcançadas. Um
jeito de ser que depende, fundamentalmente,
do exercício da humildade e da
criatividade, virtudes básicas do homem universal. O amor
excessivo a si mesmo é inquestionavelmente negativo no âmbito das relações
humanas; por ser excludente, afasta o indivíduo do grupo. Quando alguém ama a vida como oportunidade para integrar-se num todo
significativo transcende-se porque este amor se prolonga no fervor com que
aspira a realizar o ideal atemporal de solidariedade que o empolga. O desapego está implícito
neste ato de amor
a um ideal que se
esquiva de todo egoísmo.
O obstáculo maior para a conquista do equilíbrio existencial é que o homem não
é apenas razão, mas também sentimento, forças psíquicas poderosas que na hora
da escolha podem competir na subjetividade. Na constituição do homem,
o conhecimento racional é um patamar importante, mas
o amoroso desapego
à vida escapa
ao controle da razão e só se realiza na experiência existencial que
incorpora numa resposta global, conhecimento, sentimento
e vontade. Neste contexto, o amor à vida se
prolonga no ideal comunitário, rechaçando o egoísmo sempre carente, ambicioso, e
temeroso da fragilidade individual.
Ao compreender a natureza da existência torna-se
evidente que o “amoroso desapego da vida” é um processo dinâmico que exige o
empenho inteligente emocional e volitivo no trato com as questões práticas do
dia a dia. Se não for uma vocação absorvente, este desapego deverá ser uma
decisão consciente, retomada de instante para instante, com a determinação de
cumprir com dignidade o destino humano no processo evolutivo. Neste ponto, o
comportamento solidário se impõe como “dever” pela necessidade de coerência
existencial; e mais do que um comportamento ético, constitui-se na manifestação
amorosa de uma verdade pessoal na qual damos testemunho da dignidade da
condição humana. Determinação que demanda conhecimento, responsabilidade,
respeito e estima, componentes fundamentais do amor. Portanto, o generoso
desapego à vida vem a ser uma manifestação de amor.
Everaldo
Lopes
Painho,
ResponderExcluirEssa expressão "amoroso desapego à vida" sempre me causou uma espécie de encantamento e/ou curiosidade. Ela diz algo que me escapa; é uma expressão inteligente que exige raciocínio para conseguirmos uma aproximação do seu significado. Sua simplicidade provoca certa desarrumação em nossa cabeça, na medida alinha romantismo com racionalidade. Acredito que seja esse romantismo racional que provoca um certo desconcerto que exige reflexão.
Essa expressão já foi tema de muitas conversas entre nós e continuo achando uma proposta existencial extremamente bela e desafiadora. Esboça um paradoxo na medida em que põe, lado a lado, dois sentimentos que aparentemente são antagônicos: amar e desapegar. Amar a vida e estar desapegado à própria vida. Creio que a prática do amoroso desapego à vida constitui-se realmente numa proposta existencial humanitária que exige muita nobreza d'alma além da capacidade de viver o equilíbrio entre razão e emoção com maestria.
Além disso, o exercício do amoroso desapego à vida pressupõe a incorporação de alguns valores, virtudes, sentimentos e posturas que exigem um longo e permanente processo educacional, envolvendo dimensões individuais e coletivas dos sujeitos sociais, tais como: solidariedade, humildade, criatividade, responsabilidade, respeito, sensibilidade, inteligência, ética, autenticidade, verdade, sabedoria, companheirismo, cooperação, colaboração, compreensão, lealdade, reconhecimento, reciprocidade, autonomia, maturidade, liberdade, sobriedade etc.
A reunião de todos esses valores e virtudes seria fundamental para conseguirmos “modular a vida com a sensibilidade do poeta e a liberdade do sábio, numa perspectiva comunitária”, em direção a uma “humanização integral”. Seu texto lembra-nos também que é preciso abrir mão do “narcisismo básico e de tudo que ele representa”, “estar apto a lidar com a falta”, “estar bem consigo mesmo, aceitando os próprios limites e os alheios”, “estar sintonizado com ideais comunitários” deixando para trás o egoísmo, o orgulho, ambições e competitividade. Ser amoroso com a vida e, ao mesmo tempo, ser desapegado desse amor à vida é uma decisão consciente, um dever que podemos assumir na medida em que optamos por ter um comportamento ético perante a humanidade e em defesa da dignidade humana.
Continuo achando uma grande proposta existencial. Um desafio, sem dúvida! Suas reflexões confirmam a complexidade e a beleza dessa proposta que me encantou desde a primeira vez que ouvi numa de nossas conversas onde imagino puder que conseguimos exercitar “o amoroso desapego à vida”.
Fica com Deus! Envia minhas bênçãos!
Beijo no coração, da filha,
Ruth.
Filha.
ExcluirA complexidade desta proposta existencial consiste numa contradição cujos termos se qualificam reciprocamente ganhando ressonâncias significativas inesperadas. O amor purifica o desapego e este confere mais liberdade ao amor! Um oximoro que se torna quase transparente quando você o analisa no seu comentário.
Seu texto é um complemento valioso do meu, e me encanta a desenvoltura como você expõe sua perplexidade. Sua análise acaba sendo uma lente amplificadora do sentido profundo desta proposta existencial que nos tem ocupado longamente.
Deus a abençoe sempre.
Um beijo do pai.
Everaldo