O momento humano: a “existência” [1]
A
comparação entre os decênios da vida humana e os bilhões de anos de existência da
Terra reduz o ciclo biológico do homem a algo
insignificante na linha do tempo. Mas cada homem é um ente especial; a sua “existência” é um
absoluto dentro
da imensidão cósmica. No momento de
exercer o livre arbítrio, o homem assume uma dignidade inédita na Natureza, como
indivíduo consciente. O seu devir passa
a ser o resultado de uma interação peculiar entre o sujeito da consciência e as
pessoas e coisas ao seu redor. Nesta
interação o homem decide, cria, seja no confronto com seu semelhante, seja na
sua relação com as “coisas”. No primeiro caso ele se depara com alguém
igualmente livre, num relacionamento intersubjetivo no qual incidem problemas[2]
específicos que dificultam o diálogo. Dificuldades que apontam para a
necessidade do controle ético do comportamento humano social.
Existir para o homem é trabalhar o desafio que lhe é feito
para a construção de si mesmo. Este empenho se resume
na dinâmica psicossocial que preside a individuação[3] e
socialização concomitantes. Processos que envolvem o exercício das funções
psíquicas superiores do homem[4]
aplicadas às relações do indivíduo consigo mesmo e com sua circunstância. Isto é o que
faz da “existência” humana algo diferente de todas as outras existências.
Exercitando a consciência e a liberdade o homem é responsável pelo seu vir a
ser histórico; torna-se senhor de si mesmo na medida
em que
se submete a um darma[5], e
aceita responsavelmente o seu carma[6];
transcende-se quando mergulha, desamparado,
no «novo»[7], motivado
pelo desejo de encontrar um sentido para
sua vida; ganha sabedoria quando aprende a distinguir
o que pode, do que
não pode ser
mudado; dignifica-se pela coragem
de implementar a mudança do que pode e deve ser mudado;
supera-se vencendo o egoísmo que impede
o comportamento solidário; pensa, emociona-se, ama, cria, e em cada um desses
momentos assume sua realidade pessoal apoiada sobre o abismo do nada[8]. Ao
transpor este abismo o homem vivencia a descoberta das imensas possibilidades
de realização dentro da sua própria insignificância temporal.
Assume a necessidade de estruturar sua “existência” na convivência com seus
semelhantes, pelo respeito dispensado à dignidade
do outro. Finalmente, vivendo a aventura
de ser-consciente-no-mundo o homem se dá conta da urgência de aprender a
abandonar-se, diante do inevitável, à teia de um processo psicossocial complexo
no qual intervêm variáveis imponderáveis que escapam à análise racional; é o
momento em que busca apoio em pressupostos vivenciais e intuitivos[9]. Sobre
tudo isso,
o homem sabe que nada
se constrói de realmente grandioso,
sem autenticidade. À falta deste sinete, as manifestações humanas são caricaturas das virtudes que alardeiam, não retratam
uma verdade existencial.
A análise simultânea dos processos de individuação e
socialização evidencia a primazia da união entre os homens. Mas é impossível
vivenciar este sentimento de unidade sem reverenciar uma transcendência que a
todos envolva por igual, seja um ideal histórico, seja um absoluto
transtemporal. Este é o fundamento da religiosidade pura, não contaminada pelo
esforço eclesial da institucionalização[10] de
uma mensagem revelada. Sem o apoio de uma revelação, o selo de legitimidade do
procedimento social fundamenta-se na universalidade do benefício das decisões estruturadas
nas relações humanas solidárias. Então, o indivíduo torna-se acessível ao outro, sem
ficar vulnerável; será sensível à beleza e à harmonia, sem parecer
patético; será contemplativo, intuitivo,
mas, também
comunicativo, analítico;
tornar-se-á participativo sem sufocar os
demais; respeitoso
da dignidade dos outros,
enquanto guardião
da sua própria; curioso do «novo», mas consciente de sua responsabilidade nas escolhas que
faz.
A paz subjetiva é
o sinal inconfundível
de que corpo e alma conseguem sintetizar
no comportamento pessoal o verdadeiramente
humano. Os prazeres da carne desfrutados na cama e
na mesa, não
são propriamente humanos
sem um
toque espiritual
de respeito e ternura;
os prazeres da alma,
consubstanciados no conhecimento, na contemplação
estética, no sentimento
do dever cumprido e do sagrado, para
serem humanos precisam ter a marca da emoção
enraizada na vibração de todos os coloides orgânicos.
Não seria
exagero afirmar que o “momento humano” é o instante supremo da Evolução em que
o “Dinamismo Absoluto Eternamente Criativo” se revela anunciando sua Criação. Na
projeção deste movimento infinito se apagam todas as contradições inerentes à
realidade fenomênica. Fazendo uma analogia grosseira, na perspectiva cósmica a Física teórica também prevê o nivelamento de
todas as diferenças de potencial, pelo crescimento da entropia[11] que
culmina com a morte do Universo. A esta imobilidade mortal levam os
desdobramentos práticos da 2ª lei da Termodinâmica. Mas, ao contrário, na perspectiva existencial a anulação de
todas as contradições resulta da integração da consciência numa realidade
infinitamente maior, inalcançável pela razão temporal. A inteligência criativa do homem já representa no curso da Evolução uma
tendência oposta ao caos energético previsto pela lei Física. A criatividade
humana deixa entrever que a entropia não será o fim do Universo e sim o portal para
o mundo das “essências”, em que a consciência participará de um princípio
intangível, o “logos”[12], absoluto
donde emergem as leis que dão consistência aos processos de transformação da
matéria↔energia e ao comportamento dos sistemas nesses processos. Esta especulação
remete à intuição genial do Apóstolo João: “No princípio era o Verbo, e o Verbo
era Deus...” Everaldo Lopes
[1] Exercício responsável da consciência que implica na capacidade pessoal de
decidir e agir livremente. Para os existencialistas, o modo de ser próprio do
homem.
[2] Discutimos esses problemas num
dos primeiros textos deste blog, intitulado “A arte de conviver”.
[3] Processo por
meio do qual uma pessoa se torna consciente de sua individualidade. C.G. Jung (1875-1961)
[8] Não há um protótipo do homem na Natureza. Neste quadro em branco o homem
precisa inventar-se e estabelecer os próprios
limites nas suas relações coletivas.
[10] A formalização de uma mensagem existencial tem a missão histórica de
perpetuá-la, embora as vicissitudes deste processo turve a pureza existencial
da mensagem.
[12] O Logos significava
inicialmente a palavra escrita ou falada - o Verbo. Mas a partir de filósofos
gregos como Heraclito passou a ter
um significado mais amplo. Logos passa a ser um conceito filosófico traduzido
como razão, tanto como a capacidade de racionalização individual ou como
um princípio cósmico da Ordem e da
Beleza. (Internet-Wikipédia)
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