sábado, 5 de janeiro de 2013

Aventura humana V



            Do ponto de vista estritamente racional, não se pode afirmar nem negar o absoluto transcendental. Mas a existência do Universo sensível, aparente, que, sabidamente, não se criou por si mesmo nem retém a força da própria subsistência dá testemunho permanente de um Poder Absoluto[1] ao qual nos referimos em textos anteriores como um dinamismo eternamente criativo. Este dinamismo, necessariamente, transcende e ao mesmo tempo é imanente ao mundo visível como um Poder que se revela à consciência reflexiva na intuição obscura de uma potência absoluta inexplicável, porém, imaginável desde que o mundo existe. O limite do entendimento racional sobre a organicidade sistêmica deste dinamismo se esfuma na percepção confusa de uma intrincada rede de interações múltiplas de eventos singulares mutuamente influentes mediante relações funcionais nas quais as propriedades de cada evento são determinadas pelas propriedades de todos os outros. Ao penetrar o mais fundo possível na investigação desta complexidade, o pensamento depara-se com a necessidade de ultrapassar o limite temporal que o detém. O saldo desta tentativa é a nostalgia da Unidade original, uma transcendência na qual a complexidade processual fenomênica se desfaz na unidade absoluta. O homem só pode acercar-se deste absoluto Inacessível á razão pura mediante intuição que se amplia num ato de fé. A razão curiosa leva o pensamento a tangenciar a transcendência fugidia, na busca incansável da explicação de como tudo começou, e de como atingir a sonhada plenitude existencial. Porém, o pensador materialista apenas reforça a vivência do vazio sobre o qual existe. E depois de enorme esforço racional se dá conta de que a satisfação do desejo nostálgico de Transcendência total e de reintegração na harmonia do Todo Absoluto não será alcançada através da razão. Mas, atônito, não crê que pode fazê-lo mediante vivência mística amparada num ato de fé. Todavia, não é preciso crer para experimentar a intuição poética de perfeição da “transcendência absoluta”, e da vivência tranquilizadora de uma “comunhão universal”. Ao aspirar a essas metas gloriosas, a espiritualidade saudável não precisa preocupar-se com institucionalizar ritos litúrgicos para celebrar a relação com o Absoluto.  Basta viver plenamente cada passo existencial na direção da transcendência criativa e da comunhão universal, poeticamente, vislumbradas. Assim a caminhada se torna na própria meta do ser consciente que busca harmonizar-se, existencialmente, integrando-se no “dinamismo absoluto eternamente criativo”. Não existe uma verdade final para ser descoberta. A verdade é sempre atual, embora esteja inscrita no mundo ao modo de “cifras”[2] (linguagem da transcendência) ilegíveis para os que não admitem o milagre do mundo e da vida consciente como uma manifestação do Espírito. Na “cifra” está implícito o ímpeto criador do dinamismo absoluto já referido. Poder-se-ia compará-la a uma partitura que precisa ser lida, “sentida” e tocada para que a mensagem musical se revele em plenitude. Esta é uma analogia fiel do que fosse a essência da experiência mística. Nesta perspectiva, Deus se apresenta como uma potência misteriosamente transcendente e imanente à consciência e ao mundo, e não como um ser estático habitualmente simbolizado nos catecismos tradicionais por uma figura humana respeitável, idosa, com longas barbas (sinal de sabedoria). A expressão antropomórfica de Deus pode facilitar a experiência religiosa das crianças, ou dos homens simples no âmbito de uma espiritualidade ingênua, porém não é bastante para satisfazer a espiritualidade madura dos santos e dos sábios. O que não diminui a grandeza dos simples, nem o respeito e a fraternidade sentidos por santos e sábios ao irmanarem-se na figura humana de Jesus, tomando-o como representante emblemático da Humanidade perfeita, protótipo da união do homem com Deus que misteriosamente o transcende e lhe é imanente.

              É ingênuo pensar que o mundo foi feito para a regalia dos homens. Porém pode-se dizer que a estrutura humana está ligada ao cosmo como a sua intimidade privilegiada através da qual o Universo toma conhecimento de si mesmo e se completa. Por isso, nada que diga respeito ao mundo pode ser indiferente ao homem. Conhecendo-o cada vez melhor, o homem pode manipulá-lo consciente e responsavelmente em proveito de sua própria espécie. O homem e a Natureza são mutuamente dependentes na unidade ontológica que os mantém. Portanto, a integridade sustentável da organização social humana passa, necessariamente, por diretrizes ecológicas que garantam a sustentabilidade do Planeta. A máxima assimetria cósmica, representada pela consciência, vem a ser por fim determinante na conservação do equilíbrio dos reinos mineral, vegetal e animal que compõem o Mundo Natural. Tudo está interligado, desde a energia mineral integrada na cadeia alimentar através das plantas, aos animais e ao próprio homem que, finalmente, influi conscientemente na disciplina da cadeia alimentar.

           Com o homem se definiu a noosfera, esfera do pensamento e da intuição na qual se cultivam os valores arquetípicos espirituais, tais como o Amor, a Verdade, a Bondade, a Beleza e a Justiça. Para os que creem no Espírito, a noosfera torna-o mais conspícuo. Depois de permear a geosfera e a biosfera o Espírito manifesta-se na noosfera mais ostensivamente através das funções psíquicas superiores do homem.

              Na análise da aventura humana, tudo aponta para a existência de um Absoluto Transcendental incompreensível para a razão pura, porém real.

                                                                                   Everaldo Lopes





[1] Conceito de um ser ideal que se definiria como o princípio constitutivo e explicativo de toda realidade.


[2] Expressão usada por Karl Jaspers (Psiquiatra e Filósofo)*1883 + 1969.

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