domingo, 8 de janeiro de 2012

Tributo a Raul de Leoni III


TRIBUTO A RAUL DE LEONI III   
Ao compor “Legenda dos Dias”, o último soneto transcrito no texto postado anteriormente, Leoni faz uma constatação chocante formulada, porém, com extrema delicadeza poética... No segundo terceto a beleza dos versos quase anula o mal estar que desperta a falta de perspectiva existencial enunciada... O Poeta logo reage, e não se deixa envolver no sentimento de expectativa frustrada; confia em que a maravilha da Criação (Evolução) não pode terminar num beco sem saída. Mesmo sem compreender os detalhes, continua acreditando na resolutividade do destino humano. E aposta na vida, na vitória do homem sobre os desafios da existência...
“Nós incautos e efêmeros passantes,
Vaidosas sombras desorientadas,
Sem mesmo olhar o rumo das passadas,
- Vamos andando para fins distantes...

Então, sutis, envolvem-nos ciladas
De pequenos acasos inconstantes,
Que vão desviando a todos os instantes,
A linha leviana das estradas...

Um dia, todo fim a que chegamos,
Vem de um nada fortuito, entretecido
Nas surpresas das horas em que vamos...

Para diante! Ó ingênuos peregrinos!
Foi sempre por um passo distraído
Que começaram todos os destinos...”[1]

  Nessa jornada, rumo ao desconhecido marcada, frequentemente, pela tendência à conformidade com os padrões culturais repetitivos, por vezes aflora ao espírito do Poeta o sentimento de decadência estranho à sua índole...
“Afinal, é o costume de viver
Que nos faz ir vivendo para a frente,
Nenhuma outra intenção, mas, simplesmente
O hábito melancólico de ser...

Vai-se vivendo... é o vício de viver...
E se esse vício dá qualquer prazer à gente,
Como todo prazer vicioso é triste e doente,
Porque o Vício é a doença do prazer...

Vai-se vivendo... vive-se demais,
E um dia chega em que tudo que somos
É apenas a saudade do que fomos...

Vai-se vivendo... E muitas vezes nem sentimos
Que somos sombras, que já não somos mais nada
Do que os sobreviventes de nós mesmos!...”[2]

  Perplexo, o Poeta busca arrimo na sabedoria do Instinto, esperando encontrar o apoio moral da natureza para o seu vir a ser recheado de surpresas e desafios. Tentativa que o poeta relaciona a um ideal de pureza natural, talhado pela harmonia da vida...
“Glória ao Instinto, a lógica fatal
Das cousas, lei eterna da criação,
Mais sábia que o ascetismo de Pascal,
Mais bela do que o sonho de Platão!
Pura sabedoria natural
Que move as cousas pelo coração,
Dentro da formidável ilusão
Da fantasmagoria universal!

És a minha verdade, e a ti entrego,
Ao teu sereno fatalismo cego
A minha linda e trágica inocência!

Ó soberano intérprete de tudo,
Invencível Édipo eterno e mudo
De todas as esfinges da Existência!...”[3]
E, todavia, muito consciente de que o homem não é mais um ser natural e sim um ser de cultura, o Poeta se põe em defesa do amor incondicional que confere plenitude à existência, mas está permanentemente ameaçado pelo ranço egoístico atávico... e faz a apologia deste sentimento que não investiga nem questiona, alimentando-se da sua própria força, apesar dos percalços da frágil condição humana...
“Não aprofundes nunca nem pesquises
O segredo das almas que procuras:
Elas guardam surpresas infelizes
A quem lhes desce às convulsões obscuras.

Contenta-te com amá-las, se as bendizes,
Se te parecem límpidas e puras,
Porque se às vezes nos frutos há doçuras,
Há sempre um sabor amargo nas raízes.

Trata-as assim como se fossem rosas,
Mas não despertes o sabor selvagem
Que lhes dorme nas pétalas tranqüilas,

Lembra-te dessas flores venenosas,
As abelhas cortejam de passagem
Mas não ousam prová-las nem feri-las...”[4]

  E quando o destino humano parece irredutível aos ideais perseguidos, não desespera, faz da Ironia o seu escudo, exaltando-a:
“Ironia! Ironia!
Minha consolação! Minha Filosofia!
Imponderável máscara discreta,
Dessa infinita dúvida secreta
Que é a tragédia recôndita do ser!
Muita gente não te há de compreender
E dirá que és renúncia e covardia!
Ironia! Ironia!
És a minha atitude comovida:
O amor-próprio do Espírito sorrindo!
O pudor da Razão diante da Vida!”[5]

  Uma vez recomposto, o Poeta vai além. Imagina, então, o homem assumindo o seu destino, sem queixumes, capaz de viver estoicamente, a “bondade comovida de um cético risonho”[6]! No mínimo ele ainda pode repousar sobre a profunda e humilde compreensão dos seus próprios limites.

Everaldo Lopes
(Continua)
                     


[1]  Raul de Leoni – “Vivendo”, in Luz Mediterrânea
[2] Raul de Leoni – “Decadência”, in Luz Mediterrânea
[3]  Raul de Leoni – “Instinto”, in Luz Mediterrânea
[4] Raul de Leoni – “Prudência”, in Luz Mediterrânea
[5] Raul de Leoni – “Ironia”, in Luz Mediterrânea
[6] Raul de Leoni – “Do meu evangelho”, in Luz Mediterrânea.

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