sábado, 14 de janeiro de 2012

Tributo a Raul de Leoni IV


TRIBUTO A RAUL DE LEONI (IV)
Em “Noturno”, um poema de inigualável beleza, Raul de Leoni pinta com tintas fortes o despertar da consciência para o vir a ser existencial, vivido numa intimidade sensível e cúmplice com a Natureza exuberante e plena de si...  Nos seus versos de “símbolos profundos” o Poeta descreve uma viagem pelos meandros da existência, com lances poéticos e sutis nos quais se entremostram as lembranças que embasam a vivência de ser, e as imensas possibilidades humanas nem sempre adequadamente aproveitadas... Revela o momento sagrado em que a criança perde a inocência e vira homem, para num sofrimento responsável, distraído do “compasso das horas”, mergulhar em cogitações transcendentais. Ainda que perdida a “virgindade”, o homem permanece impávido num universo de incertezas.
“No parque antigo a noite era afetuosa e mansa
Sob a lenda encantada do luar...

Os pinheiros pensavam cousas longas,
Nas alturas dormentes e desertas...
O aroma nupcial dos jasmins delirantes
Diluindo um cheiro acre de resinas,
Espiritualizava e adormecia
O ar meigo e  silencioso...
A ronda dos espíritos noturnos,
Em medrosos rumores,
Gemia entre os ciprestes e os loureiros...

Na penumbra dos bosques o luar
Entreabria clareiras encantadas,
Prateando o verde malva das latadas
E as doces perspectivas do pomar...

As nascentes sonhavam em surdina,
Numa tonalidade cristalina,
Monótonos murmurinhos,
Gorgolejos de águas frescas...

Sobre a areia de prata dos caminhos,
A sombra espiritual dos eucaliptos,
Bulindo ao sopro tímido da aragem,
Projetava ao luar desenhos indecisos,
Ágeis bailados, leves de arabescos,
Farândolas de sombras fugitivas...

E das perdidas curvas das estradas,
De paragens distantes
Como fantasmas de serenatas,
Ressonâncias sonâmbulas traziam
A longa, a pungentíssima saudade
De cavatinas e mandolinatas...

Lembro-me bem, quando em quando,
Entre as sebes escondidas,
Um insidioso grilo impertinente
Roendo um som estridente
Arranhava o silêncio.

No parque antigo a noite era afetuosa e mansa,
Sob a lenda encantada do luar...

Eu era bem criança e já possuindo
A sensibilidade evocadora
De um poeta de símbolos profundos,
Solitário e comovido,
No minarete do solar paterno,
Com os pequeninos olhos deslumbrados,
Passei a noite inteira, o olhar perdido,
No azul sonoro, o azul profundo, o azul eterno
Dos eternos espaços constelados...

Era a primeira vez que eu contemplava o mundo
Que eu via face a face o mistério profundo
Da fantasmagoria universal
No prodígio da noite silenciosa.

Era a primeira vez...
E foi aí talvez,
Que começou a história atormentada
Da minha alma curiosa dos abismos
Inquieta da existência e doente do além...
Filha da maldição do Arcanjo rebelado,,,

Sim, que foi nessa noite não me engano.
- Noite que jamais esquecerei –
Que – a alma ainda em crisálida – velando,
No minarete do solar paterno,
Diante da noite azul – eu senti e pensei
O meu primeiro sofrimento humano
E o meu primeiro pensamento eterno...

Como fora do Tempo e além do Espaço,
Ser sem princípio, espírito sem fim,
Sofria toda a humanidade em mim,
Nessa contemplação imponderável!

Já nem ouvia o trêmulo compasso
Das horas que fugiam pela noite,
Que os olhos soltos pela  imensidade,
Numa melancolia comovida,
Imaginando cousas nunca ditas,
Todo eu me eterizava e me perdia
Na idéia das esferas infinitas
Na lenda universal das distâncias eternas...

No parque antigo a noite era afetuosa e mansa
Sob a lenda encantada do luar...

Foi nessa noite antiga
Que se desencantou para a vertigem
A suave virgindade do meu ser!

Já a lua transmontava as cordilheiras...
Cães ladravam ao longe, em sobressalto;
No pátio das mansões, na granja das herdades,
O cântico dos galos estalava
Desoladoramente pelos ares,
Acordando distâncias esquecidas...

E então, num silencioso desencanto,
Eu fui adormecendo lentamente,
Enquanto
Pela fria fluidez azul do espaço eterno
Em reticências trêmulas sorria
A ironia longínqua das estrelas...”[1]
O desfecho deste poema fala de um desencanto experimentado sem medos e sem mágoas, impregnado de uma paz construída à sombra da humilde aceitação da realidade,.. É diferente daquele epílogo, intensamente desejado, de uma felicidade vivida na plenitude do “ser”. O Poeta não ignora esta aspiração apoteótica; mas também sabe que a realização pessoal é condição sine qua non para a vivência da felicidade plena... afinal, esta é sempre o corolário de ações criativas e livres... A felicidade não acontece quando o espírito se afana em buscá-la por ela mesma... A felicidade não é algo que exista por si. Ela caminha como um efeito paralelo inerente à porfia inteligente e criativa que leva a realizações significativas. Quem alcança realmente ser feliz não busca a felicidade, mas a ação criativa, visando projetos que guardam íntima relação com os valores em torno dos quais gira a existência pessoal. Nessa perspectiva, em atualizando os próprios talentos num projeto de reconhecido significado, nenhuma preocupação existe de ser feliz e, no entanto, a felicidade acompanhará o empenho voluntário na realização deste projeto.
Mas, longe de buscar uma explicação de como alcançar a Felicidade o Poeta prefere decantá-la tal como a sentem as almas simples. E acaba concluindo que é vivendo a espontaneidade das posturas e ações despojadas que se é verdadeiramente feliz...
“Basta saberes que és feliz
Já o serás, na verdade, muito menos;
Na árvore amarga da meditação,
A sombra é triste e os frutos têm venenos.

Se és feliz e não o sabes, tens na mão
O maior bem entre os mais bens terrenos
E chegaste à suprema aspiração,
Que deslumbra os filósofos serenos.

Felicidade... Sombra que só vejo
Longe do pensamento e do desejo,
Surdinando harmonias e sorrindo.

Nessa tranqüilidade distraída,
Que as almas simples sentem pela Vida,
Sem mesmo perceber que estão sentindo.”[2]
Seja a felicidade este fruto colhido enquanto se constrói a existência, ou a simples intimidade ingênua com os mistérios do “ser”, é preciso defendê-la contra as ameaças sorrateiras que espreitam o vir a ser do homem, na sombra dos seus próprios desejos inconfessados. Que se não perca alguém no sonho de uma felicidade quimérica, e nem ouse empreender o seu objetivo sem atentar para as circunstâncias predadoras... Há que administrar, também, as próprias fraquezas, reconhecendo-as, para transformá-las em virtudes, pela suave rebelião da humildade, no despojamento bondoso da alma que, todavia, permanece inteira, criativa, valente e comedida. A nobre visão do Poeta aconselha que em qualquer circunstância deve-se sustentar a dignidade de ser homem...
“Quando fores sentindo que o fulgor
Do teu Ser se corrompe e a adolescência
Do teu gênio desmaia e perde a cor,
Entre penumbras em deliquescência;

Faze a tua sagrada penitência,
Fecha-te num silêncio superior,
Mas não mostres a tua decadência
Ao mundo que assistiu teu esplendor!

Foge de tudo para o teu nadir!
Poupa ao prazer dos homens o teu drama!
Que é mesmo triste para os olhos ver

E assistir, sobre o mesmo panorama,
A alegoria matinal subir
E a ronda dos crepúsculos descer...”[3]
  Everaldo Lopes 
Continua)


[1]  Raul de Leoni – “Noturno”, in Luz Mediterrânea
[2] Raul de Leoni – “Felicidade II”, in  Luz Mediterrânea
[3]  Raul de Leoni – “Pudor”, in Luz Mediterrânea

2 comentários:

  1. Painho,

    Fiquei com a forte sensação de que esses poemas de Raul de Leoni traduzem, de forma exemplar, o sentimento universal de perplexidade diante da imensidão do mundo (da natureza) em contraposição à pequenez de nossa existência. Embora rica de experiências, nossa vida transitória revela, todo momento, o quão frágil e precária é a condição humana e o quão são “imensas possibilidades humanas nem sempre adequadamente aproveitadas”.. A atitude mais sábia é admitir com humildade a finitude e a transitoriedade da vida sem que isso implique em atitudes de resignação ou covardia diante dos desafios da vida.

    Não lembro quando me ocorreu “O meu primeiro sofrimento humano/E o meu primeiro pensamento eterno...”, mas lembro muito bem o quanto desde criança sofria pelas pessoas que eu amava, porque eu queria vê-las felizes .. como se a sua felicidade fosse o bastante para me fazer feliz. Ainda hoje não sei ver ninguém chorar que choro junto, mesmo quando se trata de pessoas que desconheço.. acredito ser resquício desse excesso de solidariedade que aprendi a sentir ao longo da vida.

    Na “viagem pelos meandros da existência” Raul de Leoni nos convida a perceber e sentir que a condição frágil e finita do ser humano não subtrai suas possibilidades de praticar ações livres e criativas. Na escuridão azul, no eterno azul, na imensidão azul... ele experimentou a mais plena solidão existencial, embora admitindo que nesse momento sofreu toda a humanidade em si. Tudo indica que se trata de um poema autobiográfico... e isso amplia as possibilidades de buscarmos identificações.

    No silencio da “noite afetuosa e mansa”, Raul de Leoni enfrentou o mistério profundo da existência, contactando, pela primeira vez, com sua “alma curiosa dos abismos, Inquieta da existência e doente do além...”.

    Numa “melancolia comovida”, numa “contemplação imponderável”, o poeta revelou seu sofrimento pela humanidade, inaugurando assim o que você nomeou como “sofrimento responsável” que implica uma “humilde aceitação da realidade”.

    No mais, adorei os ensinamentos do Velho Pensador que passo a transcrever:
    1. “Quem alcança realmente ser feliz não busca a felicidade, mas a ação criativa, visando projetos que guardam íntima relação com os valores em torno dos quais gira a existência pessoal”.
    2. “(...) é vivendo a espontaneidade das posturas e ações despojadas que se é verdadeiramente feliz...”.
    3. “(...) na sombra dos seus próprios desejos inconfessados. Que se não perca alguém no sonho de uma felicidade quimérica, e nem ouse empreender o seu objetivo sem atentar para as circunstâncias predadoras... Há que administrar, também, as próprias fraquezas, reconhecendo-as, para transformá-las em virtudes, pela suave rebelião da humildade, no despojamento bondoso da alma que, todavia, permanece inteira, criativa, valente e comedida”.

    Painho, diga ao Velho Pensador que esses ensinamentos serão o meu norte para esse ano de 2012.

    Beijo da filha,

    Ruth.

    ResponderExcluir
  2. Filha
    Concordo com suas observações belas e pertinentes. O Velho Pensador sente-se feliz de ainda inspirar sua "caçulinha".
    Um beijo do pai.
    Everaldo

    ResponderExcluir