segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Amor e Etica I



            A experiência amorosa só tem repercussão existencial plena quando há reciprocidade. Isto parece óbvio. Mas, para avaliar adequadamente o conteúdo desta afirmação é preciso ter a noção mais aproximada possível do que é o amor, conquanto não se possa defini-lo racionalmente. Só experimentando-o é possível mergulhar fundo na intimidade de sentimento tão complexo, e compreender o significado de uma relação intersubjetiva profunda (encontro). Sem esta experiência, as pessoas apenas conversam frivolamente sobre o amor.
O amor está presente em experiências diversificadas com características próprias. Excluído o elemento erótico, configuram-se relacionamentos tais como o amor parental, o amor filial, a amizade, formas de amar inspiradas na admiração das virtudes do outro, no respeito, na solidariedade espontânea e na estima. Finalmente, o amor a Deus constitui-se numa experiência peculiar de entrega humilde das criaturas ao seu Criador, desejosas do acolhimento paternal.  
Ater-nos-emos aqui ao amor sensual, caracterizado pela atração física. Na experiência inerente a este tipo de envolvimento do par humano os protagonistas vivem a expectativa da intimidade sexual que leva eventualmente à reprodução. Diferentemente dos demais animais, o impulso sexual humano não visa apenas à sobrevivência da espécie. A pulsão sexual é uma força poderosa que contextualiza os casais humanos em posturas e comportamentos variados. Nesta perspectiva distinguem-se: os pares apaixonados desde o início, entre os quais a sensualidade e a intimidade sexual se tornam uma linguagem comunicativa exigente, espiritualizada pela cumplicidade afetiva; os pares que por algum tempo se conhecem, respeitam-se, e num dado momento sentem-se empolgados por forte atração física, dispostos a assumir publicamente a parceria; os pares que se gostam e respeitam-se como amigos, porém cedem, eventualmente, a um envolvimento erótico, livre, esclarecido e conscientemente consentido, mas ainda não estão dispostos a assumir publicamente a situação. Todos estes relacionamentos, moralismos à parte, salvaguardam de alguma forma a essência da dignidade humana. Porém quando a tônica da relação recai apenas na sensualidade, e cada um dos parceiros está interessado somente no seu próprio prazer sem um propósito genuíno de respeitar a autonomia do outro, configura-se uma situação que, “stricto sensu”, fere a dignidade humana.
Em todo encontro de pessoas há uma tensão entre a sensualidade e o acolhimento afetivo. A sensualidade é egoísta, avara, centrada no “eu”; a afetividade amorosa é generosa, desprendida, centrada na relação “eu-tu”. Se a relação for guiada apenas pela sensualidade, o casal não alcançará a intersubjetividade que caracteriza o verdadeiro encontro amoroso e só este preenche realmente o vazio existencial. Pior quando a sensualidade se sobrepõe à  cumplicidade afetiva, e ocorre uma gravidez. Cria-se uma situação moralmente comprometedora, de caráter dramático. Esvaziados da pulsão, sem cumplicidade afetiva, os protagonistas imprevidentes são intimados a  encarar responsavelmente a situação, em nome da dignidade humana e sob pressão social. O que redunda em ônus incalculável e imprevisível para o casal, seus familiares, e para o fruto de um instante de prazer. Durante muito tempo, por imposição de princípios éticos e até legais, embora carentes de cumplicidade afetiva o casal imprevidente era obrigado a permanecer formalmente ligado por compromisso legal ou religioso. Os costumes estão mudando, mas numa perspectiva humanística, dentro da organização social vigente nenhum argumento anula a responsabilidade dos pais biológicos para com o filho.
Não obstante os descaminhos possíveis da satisfação da libido, será imprudência fatal despreza-la sumariamente. A libido é uma mola importante da criatividade humana. Dessa forma podemos dizer que o “amor conjugal” compromete o par humano numa construção responsável, mediada pela tensão entre a pulsão sexual e a cumplicidade afetiva intimamente relacionada com o respeito ao/à parceiro/a. Esta é responsável pelo controle da libido e deverá prevalecer sobre o desejo de intimidade sensual que, todavia, precisa ser inteligentemente estimulado para maior estabilidade do casal.
A luxúria se caracteriza pelo desejo sexual insistente, inespecífico, que leva à manifestação anônima da sensualidade, em que a intimidade física centraliza todo interesse dos pares envolvidos. Não há transcendência nesta relação, falta-lhe um mínimo de compromisso ético, e, como tal, deixa de ser uma expressão responsável da libido. A convivência social civilizada exige a introdução de um viés ético na relação entre os pares envolvidos numa experiência sensual. Do ponto de vista humanístico a tonalidade moral do encontro se impõe ao seu caráter libidinoso físico, sem, contudo, anulá-lo. Cabe aqui uma digressão. Embora a sociedade aceite, veladamente, certo relaxamento do padrão existencial exemplar da relação conjugal, não há como negar a pobreza emocional e o potencial socialmente destrutivo da experiência sexual embasada apenas na luxúria. Da mesma forma que é existencialmente pobre, embora socialmente aceitável, e até imposta em circunstâncias especiais, a tirania ética da submissão do par humano às regras morais e costumes codificados, mesmo sem a cumplicidade afetiva do par conjugal. Esses exemplos extremos são o oposto do amor conjugal genuíno, embora possam mimetiza-lo. Idealmente harmonizado, o casal buscaria sempre o encontro total de almas e de corpos em que o aspecto físico da relação só é completo no contexto de uma relação intersubjetiva amorosa. Em nossa realidade cultural, o encontro ideal dificilmente acontece sem a contaminação indesejável de acomodações viciadas pela luxúria ou pela rigidez da formalidade moral. Pode-se mesmo dizer que um encontro perfeito é muito raro. A criatividade do casal é indispensável para contornar o desgaste provocado pela rotina conjugal e pelas obrigações familiares oficialmente estatuídas. Uma convivência muito íntima sem criatividade é vulnerável à mesmice da rotina esterilizante. Isso faz parte da condição humana. Mas o ideal de um relacionamento maduro pode sempre ser atualizado pelo esforço recíproco dos parceiros na prática do diálogo inteligente e saudável, amparado pela autenticidade, paciência e legítima compaixão entre ambos. 
            No último quartel da vida o par humano vive uma situação peculiar. A libido do idoso, disciplinada pela vontade ética é uma bênção na medida em que alimenta o élan vital. Torna-se, porém, uma ameaça e motivo de constante vigilância para os velhos/as saudáveis, lúcidos/as, ainda não refeitos/as psicologicamente das perdas do envelhecimento, mas conscientes da incapacidade de seduzir o objeto do seu desejo, ou seja, descrentes da possibilidade de serem desejados/as por um/a parceiro/a sedutor/a. A autocrítica os remete a uma postura reservada que esconde o desejo de intimidade sensual confiante e cúmplice, livre de remorsos; desejo cuja satisfação se torna cada vez mais distante, ou mesmo impossível. Sem pré-conceitos, quando está em jogo a sensualidade, a beleza e a sedução casam mais com a juventude do que com a velhice. Convenhamos, esta é uma lei estética com reflexos psicossociais irrevogáveis. A grande sabedoria do idoso reside na elaboração do impacto desta “lei” na sua própria realidade existencial. A superação deste impacto exige autodomínio que à luz da crítica pessoal é reforçado pelo sentimento do grotesco ao qual se exporia o/a idoso/a por seu comportamento incontinente. Quando se rompe o dique da interdição auto imposta, o idoso autocrítico não só sente ameaçado o respeito que deve a si mesmo, mas também o seu conceito na coletividade. A consciência desta ameaça é para o idoso um alerta preventivo permanente.  
A solução ideal seria o amadurecimento durante um longo convívio, entre pares com excepcionais condições emocionais e intelectuais, unidos por sentimentos recíprocos, construtivos, que tenham conservado interesses sensuais compensadores malgrado a depreciação física imposta pela idade! Todavia, esta ocorrência é excepcional. A relação exemplar construída ao longo dos anos depende da coincidência de muitos fatores cuja convergência não é comum. Talvez por isso alguém já disse, demonstrando amarga leviandade algo que se deve entender como um chiste tragicômico: “Morrem cedo aqueles que os Deuses amam[1]”! No texto intitulado “Sublimação da libido”, postado neste blog em 4 de março do ano em curso, tratei deste tema e na ocasião fui agraciado com um comentário inteligente de minha filha, opondo-se ao meu ponto de vista sobre a limitação sedutora do idoso. Não nego seu argumento da maior sensibilidade da mulher inteligente e espiritualizada para encantar-se com o discernimento do amante revelado num discurso coerente, irrelevantemente à sua aparência física. Mas, não é a mesma a força de sedução da juventude e da beleza, e a da palavra sábia! Insisto, pois, na minha resposta ao seu comentário: vamos continuar elaborando esta questão...
A vida consciente reflexiva e inteligente não se resume afinal em satisfazer a libido sexual! Transcendendo a condição animal, a plenitude da “existência” ultrapassa a satisfação da sensualidade e consuma-se numa experiência mística de integração consciência - mundo. Para Kierkegaard, na sua caminhada existencial o homem percorre três etapas distintas: o estágio estético, o estágio ético e o estágio ético-religioso. No estágio estético, o ser humano vive apenas no nível sensual, centrado em si mesmo, desfrutando os prazeres dos sentidos. Como tal orientação de vida leva à insatisfação e ao desespero, o homem acaba saltando para um nível mais elevado de existência, o estágio ético, em que procura conviver com os outros solidariamente. Mas, tal pretensão ética raramente é alcançada, levando mais uma vez à culpa e ao desespero que obrigam o homem a dar outro salto no escuro, o salto para a vida ético-religiosa na qual abandona-se numa entrega total à transcendência absoluta fundada unicamente na fé. Esta atitude representa analiticamente a prática potencializada ao infinito do amor à Verdade, à Justiça  e à beleza universais. E confirma que a solução do problema humano existencial não é racional, porém mística... tem muito mais a ver com a vivência afetiva intuitiva, do que com o pensamento lógico, fundamento da razão pura.                            
Everaldo Lopes


[1] Pensamento atribuído a Giacomo Leopardi, (1798-1837) escritor italiano.

3 comentários:

  1. Painho,

    Dizem que quem melhor fala do amor são os poetas; duvido, no entanto, que sejam eles os que melhor vivam a experiência amorosa. Seus poemas, na maioria das vezes, fala de amores perdidos, impossíveis, imperfeitos, quando não, inalcançáveis. Enfim, os poetas traduzem, com musicalidade, a dor dos desencontros. Queria ter tempo para transcrever uma meia dúzia desses poemas de amor, para conferirmos essa "tese" que intuitivamente apresento.

    O que a vida me ensinou é que a experiência amorosa é para poucos viventes. Costumo dizer que o encontro existencial, o encontro amoroso de verdade, é algo tão especial, tão sublime, que se assemelha a um milagre.

    As possibilidades amorosas dos sujeitos não estão prescritas em receituários; não estão condicionadas a questão de classe, cor, religião nem idade. A inventividade e a criatividade são ingredientes imprescindíveis para essa vivência. Incluiria o humor como um ingrediente fundamental para sustentar uma experiência amorosa. O mais, são detalhes! Sendo assim, acredito que os mais experientes têm efetivamente mais possibilidades de experimentar esse milagre.

    Se você concorda que o amor não é algo que possa ser presidido pela razão e pela lógica, há de concordar que o amor, essa "vivência afetiva intuitiva", não coloca condicionantes sociais (idade, classe social, nível educacional, religião, etc). O amor não respeita os imperativos éticos e morais impostos pela sociedade. O amor é irracional, ilógico, indeterminado, incontrolável, enfim, também pode ser incoerente, incongruente, ambiguo e contraditório. No mais, foge a qualquer tentativa de aprisionamento racional. Podemos fugir do amor, negar o amor, e até desistir de vivenciá-lo. Seja por medo ou outra razão desarrazoada, podemos escapar do amor. Isso me leva a acreditar que para viver o amor é preciso, antes de tudo, ter coragem para ceder ao medo da entrega sem reservas e sem garantias.

    OBS: Suas reflexões não removeram um milímetro minhas convicções sobre o amor envolvendo pessoas de qualquer idade.

    Beijo da filha,

    Ruth.

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  2. Filha
    O amor paixão como qualquer sentimento é egoísta busca apenas sua realização incondicional, resistindo a qualquer restrição. Certo. Mas no amor, sentimento terno ou ardente que engloba também atração física entre duas pessoas livres, esta incondicionalidade não pode e não deve afetar o equilíbrio existencial; ou não atenderá à condição humana. Nas relações humanas é inevitável a tonalidade moral do encontro, excluídos os excessos incontinentes ou monásticos. Só este equilíbrio salva a experiência afetiva preservando o caráter humano do sentimento. Fora disso a humanidade fica comprometida no seu núcleo existencial de consciência e liberdade; embora, momentaneamente, ceder ao desregramento da empolgação afetiva seja absorvente e gratificante. Mas no amor humano esta empolgação não anula a responsabilidade de conduzir a existência segundo os valores universais de Verdade, de Justiça, e de Solidariedade inerentes à condição humana. Por isso, como você bem afirmou, a experiência amorosa “é para poucos viventes” – “um milagre”.
    Não é o amor que impõe condições... somos nós que lhe reconhecemos a força demiúrgica que constrói e que destrói, e a condicionamos aos valores que dignificam o homem. A entrega total só se justifica no amor a Deus. Entre os humanos o amor incondicional sacrifica sempre a liberdades de um dos pares, o que o transforma em objeto (carente de liberdade)... Isso implica, necessariamente, em prejuízo da troca e reciprocidade indissociáveis da liberdade. Não há coragem em seguir o impulso de uma paixão, mas em submetê-la aos valores que dignificam a Humanidade. Concordo com você quando afirma que no amor não há limites de idade, saber ou fortuna material. Mas não podemos negar que quando há fortes dissimetrias entre os amantes a reciprocidade de que se alimenta o amor fica comprometida... e a relação intersubjetiva acaba sofrendo arranhões que não cicatrizam.
    Filha, acho que vamos conversar muito ainda sobre este tema.
    Um beijo do pai.

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  3. Sim, painho, esse é um tema instigante, provocativo e se mantém inconcluso, porque sempre inacabado no âmbito de nossas vidas e de nossas conversas. Há muitas palavras a dizer sobre o tema. Esse espaço que você nos proporciona é fabuloso para fazermos esse diálogo.
    Gosto de falar sobre os sentimentos humanos; e, cada vez mais, sinto que a complexidade do humano provoca em mim admiração, curiosidade e encantamento. Dizer que o humano me encanta pode parecer piegas; particularmente quando tenho dito, em tantas passagens escritas, das possibilidades destrutivas e das tantas perversidades que o mesmo pode produzir. O enigma do ser humano, sua imprecisão e indeterminação... esses elementos fazem de cada ser humano um ser absolutamente singular. Isso me encanta! Mas também, preciso confessar, surpreende-me!
    Continuemos nossa conversa! Talvez daí surja alguns poemas.
    Beijo da filha,
    Ruth.

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