terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Solidariedade


Amai-vos uns aos outros, pregava Cristo aos do seu tempo. Amai-vos uns aos outros, repete a Igreja de Cristo há mais de dos mil anos. Um apelo à determinação voluntária do homem à prática da solidariedade. A proposta cristã resume um humanismo que se concretiza na igualdade de oportunidades para todos os homens, fundamentada na organização social, política e econômica da coletividade humana... ideal democrático de  convivência, antídoto para a ameaça real à sobrevivência do homem absorvido pelo imediatismo de ambições menores que o impedem de fomentar com seus pares uma verdadeira comunidade.
Para melhor compreender a essência do grande mandamento, é fundamental discernir o que nele se entende por “amor”. O que caracteriza, afinal, o encontro (caridoso[1]) preconizado por Cristo e sua Igreja? Dadas as tendências atávicas, egóicas, que jazem indormidas no fundo da condição humana, este amor é um milagre... pois, consiste na experiência de dar e receber atenções e cuidados, gratuitamente... numa relação intersubjetiva, baseada no respeito mútuo traduzido em atos justos, coerentes com o exercício da solidariedade... conduta  que bate de frente com as tendências atávicas primárias. No nível deste amor as relações humanas excluem a submissão, a dominação e a posse.
A transição da animalidade pura para a humanidade instala-se, lentamente, com o despertar da consciência[2] reflexiva. A natureza íntima da consciência permanece um mistério para a ciência. Mas, dadas as características integrativas que detém, a prática consciente deveria unir as pessoas numa trama solidária. É lastimável que os equívocos gerados pelo uso incompetente do livre arbítrio tenham distorcido o processo da humanização tida como resultado do exercício responsável da consciência no vir a ser pessoal. A transição qualitativa assinalada (a emergência da consciência) é um salto tão extraordinário na história da evolução da vida, que a metodologia científica é pobre para abordá-la, e explicá-la, objetivamente. O que não escapa à observação é que essa transição rompe a intimidade instintiva do homem com a natureza... com isso alteram-se as relações dos indivíduos entre si, e destes com o mundo. Esta intimidade instintiva perdida para sempre deverá ser substituída por vínculos psicodinâmicos complexos, “improváveis”, cuja consumação está na dependência de um dom, o “amor-caridade”. Nesse contexto, cremos razoável admitir que, no plano natural, a compreensão é a abertura psicológica que se oferece ao homem para inserir-se no ciclo do “amor”. A compreensão exige do homem um esforço intelectual cuja motivação principal é a necessidade pessoal de transcender o isolamento da consciência solitária... esforço vinculado ao compromisso de o ser consciente incorporar-se à realidade, com a responsabilidade de administrá-la em prol do bom uso dos recursos naturais do planeta, sem desperdícios, com preservação do equilíbrio ecológico, numa mobilização de forças intelectuais e morais para harmonizar as relações entre o homem e a Natureza, e dos homens entre si. Isto implica em certa cumplicidade do Criador e sua criatura (homem) confiante na coerência e infalibilidade das Leis eternas da Criação. Quiçá, mantendo este estado de espírito, amparado pela ausência de contradição no exercício pleno da consciência, o homem será, afinal, empolgado pelo amor magnânimo e misericordioso do próprio Criador... No roteiro dessa experiência se amplia a superfície de contato espiritual entre os homens, recordando sua intimidade original com o mundo e com os seus semelhantes, agora num patamar consciente e não mais instintivo.
O homem não pode impor-se o dom da fé, mas está ao seu alcance motivar-se (encontrar razões) mediante recursos especulativos inerentes à sua própria realidade, no sentido de tentar compreender o “outro” nas suas justas demandas... mais do que isso, o homem precisa efetuar o esforço adicional de   comungar com ele a beleza, a harmonia do universo... Tudo são reflexos da generosidade do Espírito Incriado no qual estamos todos imersos, e do qual todos dependemos. Tendo em vista que nenhum dos seres criados tem a “força da subsistência”, para existir, cada criatura deverá ser sustentada, momento a momento, pelo Criador. Em função da consciência reflexiva o homem O reconhece na própria subjetividade, numa vivência privilegiada... todos podem beneficiar-se deste contato íntimo, intuitivo, com o “absoluto”. Embora esta experiência dependa da coincidência de fatores pessoais e circunstanciais, representa, potencialmente, a possibilidade de um momento de integração suprema de todos os homens. A unidade do amor infinito do Criador é o fundamento do “Amai-vos uns aos outros”. Se o Dinamismo Criativo Absoluto (Deus) está presente em cada criatura, todos, juntos realizamos n´Ele uma comunidade perfeita... Esta especulação laica pode ser supérflua para o homem de fé que não precisa de uma intermediação racional para chegar a Deus... Mas para os que se ressentem da fragilidade deste dom (a fé), estas considerações são preciosas.
O “Amai-vos uns aos outros” equivale à prática do amor fraterno. Reporta a uma situação em que duas pessoas, diferentes em seus caracteres físicos, condicionamentos psicológicos e culturais, se identificam pelo núcleo humano profundo (divino), participando ambas do Amor Universal.  Cada uma está ciosa da sua individualidade estruturada numa experiência ímpar, mas ambas se reconhecem irmanadas pela condição humana. Os homens se necessitam reciprocamente para sobreviver como espécie.
Nesta perspectiva, o amai-vos uns aos outros já não nos parece uma utopia inventada pela ousadia teológica de missionários fanáticos; nem tão pouco, uma fórmula oca pendente de humanismos ingênuos. O maior dos preceitos cristãos denota a solidariedade como um princípio imanente e transcendente, indispensável à completa realização da humanidade. Sem esse princípio vitalizador não pode haver harmonia entre os homens, não há como defender a própria dignidade humana, nem a sobrevivência da espécie.
            O “Amai-vos uns aos outros” bíblico, não é uma simples inclinação para o objeto amado, modulada pela afetividade, não é uma paixão, não é um estado acrítico de receptividade às demandas do outro, nem muito menos um sentimento de posse. O mandamento sinaliza, sobretudo, o respeito mútuo entre os homens. Trocado em miúdo significa admitir a originalidade do outro, compreender-lhe as motivações, sem subtrair-lhe a responsabilidade sobre seus atos perante a comunidade dos homens. Significa solidarizar-se com o outro no reto proceder, negar-lhe apoio ao erro comportamental e, finalmente, perdoá-lo mediante seu sincero arrependimento, e retomada do compromisso com a solidariedade comunitária.

                                                           Everaldo Lopes



[1] Caridade-  No vocabulário cristão, o amor que move a vontade à busca efetiva do bem de outrem e procura identificar-se com o amor de Deus; ágape, amor-caridade.
[2] A consciência é uma atividade complexa que se caracteriza por dinamismo, totalidade, subjetividade, intencionalidade e prospecção, tendo como funções destacadas, a atenção e a memória.

4 comentários:

  1. Painho,
    Seu texto é um convite a construção da vida em sintonia com princípios e valores humanitários, traduzidos em atitudes de respeito mútuo, de responsabilidade, compreensão e compromisso com relação ao outro, e de solidariedade comunitária. São valores preciosos que, efetivamente, exigem nos afastarmos de nossas “ambições” imediatistas; exigem transcendermos ao “isolamento” de nossa “consciência solitária”. Considero que são proposições, em igual medida, importantes e difíceis, de serem colocadas em prática.
    Tenho a impressão de estamos nos tornando cada vez mais intolerantes em relação aos nossos próprios erros e limites, assim como em relação aos erros e limites do outro. Nossa disposição em compreender a “originalidade” do outro, ajudando-o e aceitando suas “justas demandas”, perdoando seus erros,etc, são gestos que têm se tornando cada vez mais raros em nossa sociedade. Neste sentido, (perdoe o aparente pessimismo), tenho a impressão de que estamos cada vez mais distantes do propósito defendido por Cristo: “Amai-vos uns aos outros como eu Vos amei”.
    De fato, entendo que é essa capacidade amorosa, fruto da “alquimia” entre razão e emoção, que nos distancia dos animais. Se abrirmos não deste desafio, corremos sérios riscos de nos bestializarmos. Seria muito triste diante do propósito divino de nos fazermos à Sua imagem e semelhança. Adoro quando você nos lembra a provável “cumplicidade” entre o Criador e Sua criatura (homem/mulher)”. Isso me faz pensar o quando Ele apostou em nossa humanidade. Façamos jus a essa aposta! Enfim, painho, mais um texto de sua autoria que nos dá o que pensar. Beijo da filha, Ruth.

    ResponderExcluir
  2. Filha.
    Você tem razão... aparentemente, não estamos fazendo progresso no sentido de difundir a prática solidária. Mas agarro-me à ideia que o preceito magno cristão (Amai-vos uns aos outros) não é utópico porque Cristo o viveu em plenitude. E, como é óbvio, não pode haver amor sem solidariedade. Mas é, sem dúvida, uma proposta desafiadora que, segundo os indicadores sociais de violência, perfídia, desconfiança, cobiça etc. não está despertando o fervor de uma militância autêntica, numerosa o suficiente para garantir a realização da “comunidade humana”. Constatar esta realidade e não vislumbrar uma saída a curto e médio prazos, ainda não é, porém, ser “pessimista”, enquanto acreditarmos na vitória final do bem sobre o mal. Jesus, o homem mais inteligente que já pisou o Planeta Terra sabia que o verbo amar não se conjuga na forma imperativa... por isso vejo o “Amai-vos uns aos outros” como uma “exortação” que Ele nos faz, confiante na capacidade humana de atualizá-la mediante o bom uso dos recursos intelectuais, afetivos e volitivos que nos foram conferidos pelo Criador. E por não desistir do homem é que propomos caminhar nesta direção, alimentando, conscientemente, a disposição de “compreender” o outro, colocando-nos no seu patamar de possibilidades... sabendo-nos potencialmente capazes dos mesmos erros e das mesmas virtudes. Fazendo isto estamos cultivando, implicitamente a solidariedade e a humildade. Estou convencido, sem qualquer otimismo ingênuo, de que a “compreensão” é a chave para a solidariedade. Compreender e respeitar o outro é parte de um comportamento voluntário sobre o qual temos controle... Mas não temos domínio sobre o “amor”, pelo que é inoperante, no plano natural, o comando: “Amai-vos uns aos outros como a vós mesmos”. Evidentemente, para compreender é preciso ser imparcial tendo em vista o comportamento do outro objetivamente observado e conhecido. Outrossim a compreensão no processo de interação humana exige que o outro se deixe compreender e acate uma relação cordial. Isto envolve a dinâmica complexa da relação inter-subjetiva porém mesmo assim podemos disciplinar a experiência direcionando o nosso comportamento...
    Como você sabe, filha não temos uma fórmula infalível para induzir a prática do preceito cristão, mas podemos disciplinar um comportamento “compreensivo e respeitoso”. Nesta proposta não incluo a afetividade como elemento indispensável no desencadeamento do processo, mas admito que ela possa desenvolver-se, positivamente, na medida em que fazemos da compreensão e do respeito a moeda corrente do nosso intercâmbio social. Não acha que uma catequese orientada neste sentido seria pedagogicamente facilitadora do “Amai-vos...”? Com a vantagem de podermos justificar a necessidade de praticar a compreensão e o respeito como pressupostos indispensáveis à sobrevivência da espécie Homo Sapiens sapiens que deverá evoluir para a subespécie “Homo Sapiens Eticus”!... Sem precisar apelar para um “mandamento religioso”... e ainda assim estaríamos dando asas à nossa religiosidade como um prolongamento da própria vida.
    Filha, acho que esta conversa ainda vai render muitas outras considerações no curso de nossas especulações. Você ajudará muito pensando comigo esta abordagem das possibilidades humanas de real desenvolvimento.
    Um beijo do pai.
    Everaldo

    ResponderExcluir
  3. Painho,

    De fato, esse tema não se esgota com essas palavras... Continuemos...

    Beijo da filha,

    Ruth.

    ResponderExcluir