quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Alquimia psíquica


Alquimia Psíquica[1]
Os livros de auto-ajuda não produzem o efeito que dele espera o leitor ávido de trabalhar a própria subjetividade em busca de maior coerência interna, e comportamental. Eles apenas propõem regras de vida, mencionam virtudes existenciais, e anunciam os comportamentos adequados... oferecem conselhos sábios... mas não dizem como se chega lá, ou seja como assimilar existencialmente as propostas recomendadas. Discutem as questões inerentes à ajuda anunciada, no nível intelectual, apenas. Ora, ter noção do que é certo é somente um passo na elaboração das respostas emocionalmente bem comportadas e das condutas éticas respeitosas que propiciam bem estar pessoal e harmonia social no desdobramento das relações humanas. Respostas e condutas que refletem mente esclarecida e coração generoso.  Para vivê-las é preciso mais do que defini-las... é necessário estar decidido a consolidar a auto-estima, atuando com equilíbrio e dignidade nas relações inter-pessoais[2]... ou seja, estar apaixonado pela verdade, e pela sabedoria comportamental, tomando-as como metas prioritárias que direcionam a vontade para a prática das virtudes apregoadas. O simples relato destas virtudes não tem, portanto, poder transformante... Assim, os livros de auto-ajuda permanecem mero rol de conselhos bem intencionados. Aliás, não se aprende em livros como catalisar a metamorfose interior que caracteriza a metanóia[3], daí porque os compêndios de autoajuda cumprem apenas uma parte do processo: o discernimento da conduta correta, ética e existencialmente. A “ajuda” só seria completa se tais compêndios propiciassem ao leitor uma pedagogia capaz de promover a metamorfose interior, essência da verdadeira conversão. Mas, não há fórmulas mágicas para realizar a alquimia psíquica consistente na transformação das propostas comportamentais em módulos de vida integrados no esquema existencial.  Este processo é caprichoso e misterioso... por vezes instantâneo e dramático como foi para São Paulo às portas de Damasco[4], outras vezes lento e laborioso como aconteceu com Santo Agostinho... para citar apenas dois exemplos emblemáticos. 
A prática dos valores que presidem as relações do homem consigo mesmo e com os outros resulta de uma luta sem quartel entre o “Anjo” e o “Demônio” que se debatem na subjetividade. O que faz o homem é a capacidade de promover a síntese das suas tendências contraditórias. Isto ele consegue mediante a determinação de disciplinar suas respostas emocionais, e de tomar decisões judiciosas... ambas expressas em ações coerentes, no contexto de um projeto humanístico calcado na solidariedade entre todos os homens. Faz falta uma pedagogia para conduzir a transformação interior do homem, analogicamente,  comparável à fórmula que os “alquimistas” da Idade Média buscavam para transformar os metais pobres em ouro.
A catequese tradicional já experimentou os métodos mais radicais... da auto-flagelação aos retiros e jejuns prolongados; dos esforços racionais sofisticados, à meditação intuitiva em oposição à racional, como no Zen Budismo. Tudo em prol da conquista da predisposição ao agir equânime indispensável à harmonia existencial e social do contexto comunitário.
No prolongamento da investigação profunda dos processos mentais, a Psicanálise descobriu o Inconsciente, instância onde se dá a intimidade entre o biológico e o psíquico... o momento da irrupção das forças da natureza na psique, que resulta na transformação dos instintos em necessidades poderosas, mas controláveis pela vontade. O instinto de conservação preservado no desejo de viver, associado aos mecanismos de defesa conscientes e inconscientes; o instinto sexual codificado na libido domesticável, embora teimosa, garantindo a perpetuação da espécie.
Abordando o inconsciente mediante técnicas elaboradas, a Psicanálise se propõe ajudar o analisando a reformular seus esquemas de conduta. Mas na verdade apenas consegue anular o obstáculo inconsciente, ao exercício da liberdade. Liberdade necessária para as ações criativas do homem como artífice de si mesmo e agente do processo evolucionário... Nesta linha evolutiva a individuação passa necessariamente pela socialização[5]... constituindo-se na busca do equilíbrio psicossocial, objetivo inarredável do exercício da consciência responsável.
A compreensão da “anatomia” da psique não garante a manipulação eficaz das forças psíquicas.  A transformação psíquica alquímica da qual falamos antes demanda uma construção baseada no autoconhecimento e na disciplina emocional. Não há uma pedagogia que conduza, seguramente, à metamorfose psíquica que culmina com a conquista do “self”.  O homem terá que enfrentar esta caminhada, sozinho, num processo laborioso de individuação, na busca do “si mesmo” equilibrado, autônomo, sábio, livre e criativo. Por suposto, este ideal é alcançado pelo exercício pleno da consciência. Há relato de homens que comprovaram esta tese em suas vidas modelares. Os grandes líderes espirituais da humanidade são exemplos marcantes de que o homem pode alcançar um desfecho de sua “individuação” compatível com a construção de uma humanidade solidária... sendo esta finalização, por motivos óbvios, o objetivo da própria Evolução. Pois, se esta meta não for alcançada, a humanidade não sobreviverá...
A ausência de uma pedagogia específica para ensinar a ser “homem” pela superação vivencial das contradições da condição humana não implica na impossibilidade de realização da humanidade plena. Se houvesse um algoritmo infalível para alcançar esse objetivo não sobraria lugar para o exercício do livre arbítrio. E é exatamente neste espaço de liberdade que o homem se “cria” a si mesmo, na melhor hipótese em função de uma meta universal... e estabelece vínculos sociais sólidos. Por isso se diz que o homem é um ser de cultura, não há um modelo natural do homem, ele é sua própria construção... ao nascer carrega apenas, na condição humana, a ferramenta para esculpir-se a si mesmo. Neste labor criativo é razoável admitir que o primeiro passo é o compromisso com a autenticidade da construção,  o segundo será o conhecimento da dinâmica da própria “existência”... o terceiro é o domínio da disciplina emocional... e o quarto passo é a consumação de uma atitude compassiva. A solução da problemática humana está implícita na convergência dos quatro passos assinalados. Todavia é impossível conduzir esta convergência obedecendo a uma metodologia sistemática.
Em face das considerações feitas concluímos que a verdadeira autoajuda se confunde com a auto-análise conduzida com inteligência e disciplina no processo de individuação[6].
Everaldo Lopes
           


[1] Não apenas  a  transformação  da  energia  física  em  energia  mental,  mas, também  do  conceito  (pura     elaboração intelectual) em vivência (experiência prática afetiva ).
[2] Pessoa - cada ser humano considerado como individualidade física e espiritual, e dotado de atributos como racionalidade, autoconsciência, linguagem, moralidade e capacidade para agir

[3] Transformação fundamental de pensamentos ou do caráter. Conversão espiritual.
[4] Não vou aqui considerar a sugestão de alguns estudiosos que classificam esta experiência vivida pelo Apóstolo como uma aura epiléptica... Sem descer a detalhes, é oportuno lembrar a coerência e profundidade da pregação do Santo responsável pela divulgação do Cristianismo no Ocidente.
[5] Desenvolvimento do sentimento coletivo, da solidariedade social e do espírito de cooperação nos indivíduos associados. Aurélio Sec.XXI.
[6] Processo por meio do qual uma pessoa se torna consciente de sua individualidade, de acordo com C.G. Jung (1875-1961)

5 comentários:

  1. Oi painho,

    eu sempre achei que livros de auto-ajuda, de fato, não ajudam tanto, mas nunca tinha parado pra pensar o por que. está aí a explicação: "ter noção do que é certo é somente um passo na elaboração das respostas emocionalmente bem comportadas e das condutas éticas respeitosas que propiciam bem estar pessoal e harmonia social". O outro passo é muito mais complexo e, de fato, sem metodologia específica :-(. Penso que a disciplina é o nosso maior aliado nessa luta por agir "corretamente". Uma questão que já me fiz algumas vezes é: onde é que termina a autenticidade e começa a disciplina? Não sei se a pergunta está clara... Vou tentar ilustrar :-). Por disciplina emocional podemo optar por uma certa atitude, mas isso pode não condizer com o nosso verdadeiro desejo. Quando o nosso desejo vence? Quando a disciplina emocional vence? Eu tenho o meu algoritmo próprio, mas queria ouvir sua opinião.

    beijos,
    Raquel

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  2. Filha.
    Obrigado pelo comentário.
    Antes de ir ao âmago do seu questionamento quero fazer uma observação esclarecedora. Trata-se do equívoco muito frequente de confundir, conceitualmente, “autenticidade” e “espontaneidade”. A Autenticidade diz respeito à legitimidade da autoria de um determinado comportamento, seja ele espontâneo ou determinado pela adesão voluntária ao ordenamento elaborado (não espontâneo) de uma conduta livremente escolhida. A autenticidade é o certificado do agente da ação (conduta). Mesmo contrariando o nosso desejo, o que fazemos é autêntico na medida em que, por iniciativa pessoal (livre), nos dispomos ao sacrifício do que é espontâneo (nosso desejo prazeroso), para agir de acordo com o que é mais coerente com o exercício da consciência responsável. Exemplo. Debruçar-se longamente sobre os livros para cumprir uma tarefa acadêmica pode não ter o beneplácito do desejo (espontaneidade) que pede uma atividade lúdica; mas, ao decidir realizar o trabalho mediante um esforço da vontade (disciplina) dirigida pelo sentimento da responsabilidade assumida com a Universidade não se está sendo menos autêntico. A disciplina não rouba a autenticidade nem lhe é contrária, desde que o comportamento em foco se imponha e seja praticado, livremente, por coerência com os princípios que norteiam a “existência” e conferem dignidade (autoridade moral, respeitabilidade, brio) ao “eu” agente. A autenticidade, portanto, pode envolver “disciplina” quando o desejo forte (espontâneo) se opõe à conduta coerente com as regras ditadas pela consciência moral num contexto psicossocial determinado. Vivencialmente experimentamos, diferentemente, a vitória do desejo insólito (espontâneo) que conflita com os princípios éticos; e a vitória, pela disciplina, sobre este mesmo desejo, em favor do comportamento moralmente embasado. No primeiro caso é comum um certo mal-estar, desconforto íntimo por haver ultrapassado o limite do padrão ético que respeitamos... no segundo caso no mínimo saboreamos o dever cumprido. Obviamente, este limite não precisa estar absolutamente alinhado com a ética pública (convencional)... a moral existencial (privada) pode ser discordante da moral pública desde que esteja amparada por uma visão de mundo coerente, centralizada pelo amor à liberdade e respeito à pessoa do “outro”, pautada em comportamentos que possam ser estendidos à totalidade dos homens... Neste caso o ator social está convencido da necessidade de uma mudança de comportamento que valorize mais e dignifique o homem na prática da consciência livre e responsável. Com atos de rebeldia deste tipo alguns reformadores sociais escreveram a sua história, muitas vezes sacrificando a própria vida. Mais uma vez obrigado pela oportunidade de prolongar o texto, respondendo ao seu comentário inteligente. Se for necessário, voltaremos.
    Um beijo do pai. Everaldo

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  3. Obrigada também pela resposta, painho... Como em outras ocasiões, foi muito clara e importante para mim.
    De fato, o senhor tem toda razão. Confundi espontaneidade com autenticidade. E entendi o seu ponto de vista e concordo. Tenho usado minha disciplina sempre que uma atitude "espontânea" possa prejudicar diretamente outra pessoa. E realmente, isso não deixa de ser autêntico, apesar de não espontâneo ;-).E ter a consciência tranquila de que agimos corretamente, mesmo que diante de uma imposição da nossa disciplina, é muito importante.
    beijos!!!!

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  4. Oi pai,

    O tema abordado nesta postagem é muito valioso e crucial. Tive o previlégio de, também através de cartas, tratá-lo com grande profundidade com vc, num momento transformador de minha vida!! Muito bom retomá-lo nesta "roupagem".

    O meu destaque para esta postagem..."O homem terá que enfrentar esta caminhada, sozinho, num processo laborioso de individuação, na busca do “si mesmo” equilibrado, autônomo, sábio, livre e criativo".

    Cada dia me torno mais sua fã, dentre outras coisas, pela sua capacidade de pensar e partilhar o pensamento. Vc muda a forma, mas mantém a essência da idéia desenvolvida intacta!
    Sou uma pessoa orgulhosíssima do pai que tenho, e previlegiada por conviver com um ser humano como vc!

    Bjo Grande

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  5. Oi Filha.
    Pois é, a gente caminha a vida inteira em busca desse ideal e, lucidamente, percebe que imerso no relativismo do nosso vir a ser histórico nunca o alcança, plenamente... mas a cada passo chega mais perto. Perlustrando este caminho a "existencia" ganha sentido, tornando-se mais consistente...O percurso fica mais suave quando o fazemos em boa companhia.Deus te abençoe.
    Beijo .

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