quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Amor e ética


            Amor e ética
            As exteriorizações comportamentais amorosas e éticas apresentam fortes semelhanças, embora seja muito diferente o conteúdo existencial em cada caso. A indistinção formal dos gestos e das ações que são comuns aos relacionamentos ético  e amoroso oculta a diferença entre os fundamentos da ética e do amor. O psicodinamismo do amor inclui a compreensão e o perdão; o determinismo ético é tributário da culpa e do castigo.  Compreender e perdoar são atividades subjetivas que envolvem liberdade, generosidade e criatividade. O jogo da culpa e do castigo, implícito nas relações éticas, estabelece preceitos a cumprir e punição para os infratores, reduzindo a relação ética a um mercado de benefícios. Na relação amorosa a liberdade criadora é a fonte de ações inéditas, na busca de sínteses existenciais cada vez mais perfeitas. Na relação ética, a submissão à lei, e o medo da punição reduzem a liberdade à prática de condutas policiadas, que inibem a criatividade e a generosidade, refletindo, apenas, obediência à rigidez do estatuto legal. Na relação amorosa, a ação livre ganha luminosidade, emergindo colorida e emocionante.  Na relação ética, a ação estipulada por um cânon inflexível perde a originalidade, manifestando-se esquálida, ensombrecida pela melancolia de renúncias dolorosas.
Palmilhando os caminhos interiores em busca de autenticidade, cada um de nós se depara, ao longo da existência, com a necessidade de distinguir o que faz por amor, do que faz por obrigação moral.  Para a prática moral a grande virtude é o dever vinculado à disciplina da vontade. Ao passo que o amor é imprevisível e irredutível ao comando da vontade... O amor distingue-se por seu caráter de doação... Ora, doar é ofertar, gratuitamente, afeto, e bens que traduzam materialmente o desejo de servir.  Mas, qual o limite que se pode estabelecer na intimidade psíquica entre doar como uma manifestação amorosa, e fazê-lo para cumprir, simplesmente, uma obrigação ética?... É difícil identificar este limite, mas a questão é relevante. Sabe-se que o amor verdadeiro é sempre ético, mas nem toda relação ética é amorosa.
Na evolução histórica da humanidade foi necessário estabelecer a ordem no grupo social mediante o respeito a uma autoridade externa. Era preciso adotar um recurso prático, para o gerenciamento das relações coletivas. O controle ético foi o expediente utilizado, pela facilidade de administrá-lo, gerenciando a aplicação de leis e a punição dos rebeldes... já que a vontade, virtude básica na prática ética, pode ser disciplinada, e é disciplinadora, também.  Porém é notório que uma verdadeira comunidade só se constrói com amor... esse algo mais  sem o qual a prática das virtudes éticas fica empobrecida.
O homem tem a potencialidade de amar e ser amado, mas precisará vencer muitas resistências para tornar realidade seu potencial amoroso. Considerando a conjuntura inerente aos comportamentos ético e amoroso, por mais que um suposto amante se esmerasse em administrar sua conduta segundo regras morais, não conseguiria, por esse caminho, viver o amor, nem fomentá-lo em suas relações interpessoais...
Sendo o amor um dom, que fazer, então, para construir relações amorosas, quando o amor não se faz sentir espontaneamente com o seu brilho peculiar? Uma questão importante porque enquanto não vivemos o amor não alcançamos a felicidade a que todos aspiramos...
A maneira mais adequada de enfrentar esta situação é tentar compreender o outro, com determinação. Não podemos impor-nos amar.  Mas podemos diligenciar compreender o outro mediante os recursos intelectuais que possuímos e pelo aprendizado da compaixão através do esforço de avaliar com justa imparcialidade o sofrimento do próximo, sabendo-nos expostos às mesmas dores... Este é o caminho que nos sensibiliza para a solidariedade com o nosso semelhante, nas alegrias e desventuras. Compreendendo-o a partir do reconhecimento de nossa própria fragilidade, será mais fácil perdoá-lo, se for o caso, e com ele confraternizar. Neste esforço compreensivo perceberemos como o outro, tal como nós mesmos, está perdido nos seus caminhos interiores, e como ele sofre diante da sua própria miséria afetiva. Daí à compaixão é um passo. E se nos libertarmos dos equívocos culturais preconceituosos, acabaremos por sentir a força da solidariedade. Identificar-nos-emos de forma efetiva e simpática com o outro em sua fraqueza que é nossa, também, participantes que somos todos da mesma condição humana... E quase, insensivelmente, começaremos a amá-lo.
Dir-se-ia que enquanto nos queremos mutuamente felizes, e assumimos responsavelmente nossa participação no processo social, somos “um” com os outros, somando o prazer dos sentidos e a aspiração à perfeição humana, na convivência comunitária. A existência plena se consuma nas relações interpessoais vazadas no amor à liberdade e no respeito à dignidade do outro.


   

4 comentários:

  1. Oi painho,

    Como comentei ontem, depois que li Nietzsche e sua teoria de que fazemos tudo, inclusive atos de generosidade, em benefício próprio em primeira instância, passei a concordar com ele. Comecei a procurar nos meus atos e nos das pessoas que me rodeiam sempre uma razão egoísta para tudo que fazem, até para os atos de generosidade e compreensão. Mas agora começo a achar que isso não é de todo mal... Se o efeito disso for bom para todos, que mal há? Se eu me colocar no lugar do outro e compreendê-lo nas suas fraquezas pelo simples fato de que gostaria que agissem assim comigo também (atitude egoísta)... que mal há? Não seria esse efeito o mesmo efeito de compreendê-lo pelo simples fato de entender que ele é um ser humano digno de respeito e perdão sem desejar nada em troca (atitude solidária sem egoísmo)? Depois que li esse texto, me perguntei: que mal há em ser egoísta, em não realizar a "revolução copernicana", se o efeito emergente do egoísmo for bom? :)

    beijos!!!!

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  2. Filha.
    Você está coberta de razão. A generosidade de quem doa, gratuitamente, sem qualquer expectativa de retribuição é própria do ser absoluto. Como somos seres contingentes, por mais que nos aproximemos de um gesto absolutamente generoso, nunca chegaremos lá. As suas ponderações são sábias porque reconhecem a nossa limitação de criaturas e conseguem demonstrar que uma ação egoísta, ainda assim pode ser generosa na sua repercussão prática. Persistir em ver o mal nesta ação corresponde a ficar aprisionado no formalismo verbal, sem considerar a fragrância existencial e social de um gesto ou ação, a despeito dos verbetes dicionarizados que os descrevem. É preciso, sim, libertar-se da “letra”, valorizando a ação generosa por seus efeitos.
    Quem é capaz de praticar o “bem” em sendo egoísta, confunde-se com a causa do próprio bem. Como seria bom que todos agíssemos sob o impulso deste “egoísmo generoso”! Para estes a Revolução Copernicana teria sido perfeita porque a autoconsciência não se descentraria, continuaria girando em torno de si mesma (realidade psíquica), mas se ampliaria, enquadrando-se (humildemente) no movimento coletivo em torno de um princípio maior que a todos contempla com sua luz (o bem comum). Ocorre-me a analogia do que disse, com o Sistema Solar. Os planetas continuam girando em torno de si mesmos, porém todos giram harmonicamente em torno do Astro Rei sem colisões desastrosas. Mesmo obedecendo ao determinismo de suas rotas orbitárias (egoístas), e porque o fazem são solidários (generosos) impedindo uma convulsão cósmica.
    Epistemologicamente Nietsche continua certo. Até porque qualquer ato que em 1ª instância não fosse essencialmente benéfico ao indivíduo, seria suicida. A generosidade só é afetada quando agimos em benefício próprio, atropelando a ordem social para satisfazer demandas não essenciais das quais não participem todos, por igual. Assim, tudo que fazemos é em benefício próprio, mas nem tudo que fazemos em benefício próprio exclui a generosidade.
    Obrigado pelo comentário.
    Um beijo do pai.

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  3. Oi painho,

    esse texto e sua resposta foram muito importantes pra mim. Agora posso passar a enxergar a mim mesma e aos que me rodeiam como seres limitados, centrados em si mesmos, mas que também são capazes de realizar ações que beneficiam o outro.

    foi ótimo! =D

    beijos!

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  4. Fico feliz pelo resultado do nosso papo.
    Beijo do pai

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