domingo, 5 de dezembro de 2010

Desmistificando a morte


O medo da morte é o arquétipo de todos os medos. Para poupar-se do desgosto de saber-se mortal, o homem anseia a impassibilidade. Esta indiferença em face do fim inevitável é rara. Mas, tranquiliza-nos saber que a sabedoria da Natureza nos ampara nesse transe. Confirmando-a, diz  Montaigne em seus ensaios. “A Natureza nos ensina sair do mundo como nele entramos. Nascemos sem que fosse por força da nossa vontade e sem temores; esperemos conduzir-nos da mesma maneira ao passar da vida à morte.” Certo. A Natureza é pródiga. Virgem de influências estranhas às suas próprias leis, ela não se propõe problemas que não possa resolver, e não nos faltará com seu apoio. É o próprio Ensaísta que adverte:  “Ao conduzir-nos pela mão, devagar, por entre o medo e a expectativa desagradável da morte, a Natureza nos familiariza com essa fatalidade.” Ademais, “a morte súbita não nos dá tempo para temê-la... e a doença terminal que antecede, demoradamente, a morte, nos prepara para a aceitação tranquila.”
Mais adiante, o Filósofo francês assinala que “O salto da mocidade à velhice, conquanto marcado por perdas irrecuperáveis, é menos impressionante do que o que separa uma vida miserável do seu fim.” E acrescenta: “A morte liberta o homem de todos os sofrimentos e sortilégios... por que, ainda assim a repudiamos e tememos perder uma coisa (a vida) que uma vez perdida já não podemos lamentar?” Estes comentários põem em evidência quanto é irracional o medo da morte... Todavia, usando as palavras do mesmo autor, “a morte é parte integrante de nós mesmos; durante a vida estamos moribundos.”  Portanto, é  mais sensato absorver a idéia de que a vida e a morte são duas faces de uma mesma moeda (realidade), e  encarar com naturalidade a perfeição do ciclo biológico do qual a morte participa o tempo todo.  
Na mesma obra o Ensaísta nos brinda com jóias de bom senso: “Podemos sair da vida saciados e dir-nos-emos satisfeitos. Mas se a nossa vida foi inútil, que importa perdê-la? E se ela continuasse, em que a empregaríamos? Para que prolongar dias de que não se saberá tirar melhor  proveito do que no passado?”.  “Não será tolice condenar uma coisa que não conheceis, nem pessoalmente, nem através de outrem?” Contrastando o anseio humano de imortalidade, o Filósofo  declara: “Considerando as limitações da contingência humana não seria a imortalidade mais penosa?”. E reforçando esta dúvida, ressuscita uma passagem mitológica: “Quiron, filho de Saturno recusou a imortalidade...” ou melhor... cansou  de viver!!!
O Filósofo sabe que é libertador pensar a morte, de todos os ângulos, familiarizar-se com ela até o ponto de compreender-lhe a natureza, e seu significado no ciclo da vida. Esta prática é algo parecido com uma dessensibilização progressiva que acaba por reduzir o medo a níveis toleráveis. Por fim, o filósofo não reconhece a morte como um mal, mas como um evento necessário à organização biológica complexa, e à sustentabilidade da cadeia de eventos que integram a biosfera. Por isso Cícero dizia que filosofar é aprender a morrer.
Vamos pensar um pouco sobre a morte...
Mal damos partida nesta investigação deparamos com um fato aparentemente contraditório: para viver é preciso morrer. Ao existir morremos o tempo em que estamos vivendo... Morremos para viver este tempo. Todavia não nos damos conta de estar morrendo enquanto vivemos, até o momento em que se desfizer o determinismo morte / vida. Então, deixaremos de morrer aos poucos e, conseqüentemente, de viver, também... Morrer minuto a minuto é a condição para viver. A morte é indispensável para podermos fruir a vida que levamos. Todavia, enquanto a vida rouba a cena, cria-se a ilusão da vida plena. A vida parece, então, independente e autônoma, ficando a morte reduzida à condição de um evento futuro, que o homem espera esteja tão distante quanto possível. Conhecendo quanto lhe custa o tempo de viver, o homem percebe a necessidade de vivê-lo, criativamente, buscando coerência no seu vir a ser, voltado para a construção de uma existência significativa. Nesta perspectiva se coloca a ética existencial, cerne da dignidade pessoal, idealmente, centrada na verdade, na beleza e na justiça... E se revela a necessidade que o homem tem de dar um sentido à sua existência. Empreendimento heroico cuja realização está sujeita a um cronograma inflexível. Na esteira desta empresa ele pode brindar a vida, bem utilizando seus talentos, colhendo as alegrias de que for capaz, e (des)dramatizando as tristezas inevitáveis.
  O desejo de sentido sugere que a realidade humana não se esgota no servomecanismo biológico... Aliás, aprofundando a análise da condição humana, destacam-se características que transcendem o fenômeno biológico: o pensamento, a criatividade, a consciência reflexiva, o senso de valor... Estas características transcendentais e a vocação humana para ser feliz sugerem que “algo mais” está misteriosamente “cifrado” na realidade biológica do homem. Eclode, então, a idéia de que este “algo mais” sobreviverá à exaustão física! Uma vez que o Universo e o homem não se explicam por si mesmos, haveria, então, outro nível de existência !?!?... Ganha fôlego assim, o discurso espiritualista centrado na crença da imortalidade da alma. O que atenua, para alguns, a consciência trágica de ser para a morte como o fim definitivo  do “existir”. Suponho que é disso que fala o Poeta inspirado quando diz “Vai ver até que esta vida é morte / E a morte é / A vida que a gente quer![1]...” . Um questionamento que desborda o tema título  desse texto cujo objetivo é, apenas, despir o medo arquetípico do seu aspecto trágico, mostrando como a morte se integra no ciclo da vida.


[1] Do poema “Um refém da solidão de Paulo Cesar Pinheiro

6 comentários:

  1. "Todavia, enquanto a vida rouba a cena, cria-se a ilusão da vida plena."
    Perfeito!...dai a necessidade de se "inventar" possibilidades futuras de "um outro mundo"...de "uma outra vida"...
    Gostei de ler o post. Gostei de beber um pouco da sabedoria de dr. Everaldo.

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  2. Oi pai... adorei!!! Vai que que na morte está o segredo da vida, como fala outro poeta em sua música!

    " Morte, morte, morte que talvez seja o segredo desta vida".

    Simples assim!!!
    Bjo

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  3. Painho,
    Gostei da leveza com que você abordou o tema da morte que, freqüentemente, produz dor e sofrimento aos “comuns dos mortais”. A despeito da gravidade do tema, você conseguiu dialogar com autores que tentam mostrar o quanto podemos ganhar se conseguimos assumir certa indiferença em relação ao fim inevitável da vida. Montainge realmente nos apresenta “jóias de bom senso” que podem facilitar nossa aceitação em relação à finitude, sem maiores lamentações.
    Não gosto de pensar sobre minha própria morte; talvez por ser mesmo insuportável contactar com a possibilidade de minha não-existência na dimensão espaço-temporal da vida terrena. Na verdade, nunca vivi situações de limite entre a vida e a morte; talvez quando um dia experimentar, o medo seja maior que a aceitação. Por enquanto, penso que não temo minha própria morte; mas, confesso, sinto um profundo desconforto quando penso na morte de algumas pessoas que amo na vida.
    Compreendo que só o desapego em relação à vida pode evitar os sentimentos de desgosto, tristeza e desassossego vivenciados quando contactamos com a condição finita de nossa existência na terra. Aliás, sempre associamos à idéia de morte, a idéia de perda; jamais pensamos a morte como um ganho. É curioso pensar que algumas culturas vivenciam a experiência da morte com alegria. Por que nós, ocidentais, imprimimos este significado tão doloroso à morte? Quando a morte começou a ter o sentido de perda e dor para os ocidentais? Penso que ainda é tempo de darmos novos sentidos e significados à morte para que possamos perceber que, de fato, não teremos mais nada o que lamentar quando tivermos perdido nossa própria vida. Neste sentido, os que ficam vivos devem sofrer mais do que os que morrem.
    O enigma da morte permanecerá indecifrável até, pelo menos, o momento derradeiro de nossas próprias existências. Esta é uma experiência solitária que não tenho qualquer curiosidade em viver. Entrego a Deus, aceitando minha absoluta impotência diante de tal realidade. Evidente que o mais sábio e saudável seria aceitarmos o fim inevitável da vida sem maiores sofrimentos e lamentações. Mas, “na teoria, a prática é outra”. Se até o fim da minha existência tiver conseguido “brindar a vida” utilizando-me dos meus talentos, “colhendo as alegrias” de eu fui capaz de produzir, “(des)dramatizando as tristezas inevitáveis”, poderei dizer que valeu a pena viver.
    É preciso coragem para pensar sobre nosso próprio fim. Os filósofos clássicos fizeram isso com maestria exatamente porque traziam a compreensão de que filosofando aprenderiam a arte de morrer. Percebo que hoje o tema da finitude só ganha maior evidência em função da explicitação do desejo humano de prolongar da vida; para não falar do desejo de controlar a vida e a morte. Os investimentos científicos nas descobertas da engenharia genética revelam o desejo humano de controlar não só a constituição do primeiro genoma, mas também de contornar os limites biológicos que nos põe na condição de seres finitos. Painho, desculpe ter me prolongado tanto em minhas elucubrações! Relendo o que escrevi, temo ter apresentado pensamentos desconexos. Confesso que este tema não é o meu forte. Mas, não pude ficar silenciosa diante de um texto tão provocativo. Beijo no coração, da filha, Ruth.

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  4. Estou me deliciando com esse papo. Sou uma curiosa a respeito desse tema. Beijos para os dois.

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  5. Filhas:
    Ruth.
    Seus comentários revelam a sensibilidade itelectual para a percepção dos detalhes da condição humana, que passam despercebidos às pessoas comuns; e refletem a capacidade de vivenciar o que escapa à compreensão racional. Não os achei desconexos... Todos sentimos dificuldade em identificar o caráter unitário da diversidade das experiências existenciais.
    Beijo do pai. Everaldo.

    Nenês.
    Tê-la como espectadora é um privilégio.
    Beijo do pai. Evraldo

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  6. oi vozao! depois de um periodo ausente, estou de volta e acompanharei o blog atentamente. adorei o texto e a abordagem. foi lendo alguns textos seus sobre o mesmo tema que aprendi a nao temer a morte, pois ela faz parte do meu dia-a-dia tanto quanto a vida. e um tema delicado, pelas suas implicacoes, mas ao mesmo tempo, devido aos misterios envolvidos, intrigante e misterioso, e por conseguinte que me atrai profundamente. uma humilde reflexao, tendo como ponto de partida o "auto-conhcimento como ser finito" e da "aceitao do meu destino", passo a acreditar que o "fantasma" da morte nao se refere exclusiva e unicamente ao medo/angustia de deixar o mundo material para transportar-me a um possivel mundo espiritual. Na verdade minhas reflexoes levam me a crer que o processo de morrer, natural por si, nao "espanta", reconhecendo na "dor" daqueles que amamos o face "cruel" da morte. poderiamos, entao, reconhecer nas caracteristicas humanas citadas no texto (o pensamento, a criatividade, a consciencia reflexiva, o senso de valor, etc), como formas de transcender a experiencia carnal (esclareco que compreendo esta transcedencia como um processo natural para muito poucos e longo para a grande maioria de nos). acreditando, entretanto, que nem todos os que vivem/morrem conseguem transcender a partir do exercicio destas atividades, pergunto-me: o que esta faltando?
    nao tenho certeza de que a minha compreensao de transcendencia esta correta, mas entendo-a como uma forma de "viver apos a morte", seja em um mundo espiritual ou ate mesmo no mundo biologico. a primeira opcao esta fora das minhas reflexoes por ser um tema do qual pouco entendo. por isso, tomo como transcender a morte como uma forma de continuar a "viver" no mundo biologico. o "viver" a que me refiro entao tornar-se facil de ser definido: a minha influencia e como serei lembrado apos minha morte. entao, nao de repente, tenho dois pensamentos. no primeiro, acreditando que o processo de viver conscientemente do que somos (seres humanos finitos) e das suas implicacoes (viver num processo diario de escolhas, no qual podemos muitas vezes fazer escolhas erradas, deve ser orientado para o crescimento/desenvolvimento do ser, no qual a justica, a verdade e a beleza sejam os parametros direcionadores). o segundo pensamento entao me leva a crer que a maior heranca que podemos deixar (como forma de transcender a finitude do ser) e o exemplo (exemplo de pessoa, pai, mae, filho(a), irmao(a), etc). por fim, acredito que nenhuma dessas faces da vida pode ser dissociada de um sentimento: o amor.
    concluo, o que inicialmente seria apenas uma curta mensagem, agradecendo-o por nos proporcionar momentos tao deliciosos. espero poder aprender cada vez mais com voce vozao! grande beijo!

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