A auto identificação do “eu” é
o centro psicológico de referência do sujeito consciente. Disso resulta uma
tendência egocêntrica na relação social estabelecida por cada “eu” com outro
“eu” que represente um “tu” para o
primeiro. É necessário que todos estejam permanentemente atentos para que o egocentrismo inerente ao modo de ser da
consciência autorreferente não se transforme em egoísmo nos encontros
interindividuais.
A formação conceitual do “eu”
exige a coexistência de um “tu” sem o
qual o “eu” não se definiria; o “eu” e o
“tu” se delimitam reciprocamente. Essa correlação epistemológica denuncia que o
processo de individuação caminha paralelamente a um esforço de socialização
representado pelo reconhecimento do outro (tu).
No contexto social a mutualidade
cooperativa entre os homens é absolutamente necessária para a sobrevivência da espécie. A forma
perfeita dessa interação das pessoas entre si implica na prestação de cuidados recíprocos
sem visar qualquer recompensa. A prática exemplar desta conduta exige muita
disciplina de cada um no exercício da consciência livre e responsável. Disso
depende a evolução do homem, que se fará através de comportamentos elaborados,
solidários, deliberadamente assumidos,
fundamentais para a organização social comunitária.
O exercício da solidariedade
entre os homens é o salto maior e mais complexo da história de toda evolução. Esse
caminhar evolutivo exige reciprocidade entre os agentes
sociais. A falta de solidariedade por parte de alguém se torna uma agressão aos
que lhe são próximos. Mesmo assim, tendo em vista a estabilidade social, a
resposta madura a este comportamento reprovável será tentar influir
positivamente no comportamento do outro, posicionando-se em relação a ele como
alguém que decide manter-se a uma distância cautelosa e vigilante, sem dar-lhe as costas. É óbvia a dificuldade de contornar sem
aborrecimentos uma relação assimétrica desse tipo. A situação exige constante
esforço de superação do mal estar suscitado pelo comportamento de quem não age
solidariamente nas suas relações sociais. O caminho da harmonia
social é a prática solidaria, mas é necessário para tanto que os protagonistas das
relações interindividuais estejam em
harmonia consigo mesmos para garantir um comportamento imparcial. Esta harmonia
resulta do confronto equilibrado das forças psíquicas contraditórias,
construtivas e destrutivas, que se debatem na subjetividade de cada um. Nas
suas relações sociais o homem faz cultura e cresce, elaborando formas responsáveis
de atender ao interesse do outro.
É
provável que no processo dinâmico evolutivo do Homo Sapiens os comportamentos
solidários se tenham sedimentado através dos tempos em arquétipos[1]
que guardam no inconsciente coletivo a memória de experiências exitosas[2]
havidas no passado remoto, nas quais a
sobrevivência da humanidade dependeu da colaboração de todos.
O
objetivo da vida é viver, e o da vida consciente (existência) é estabelecer
padrões de convivência social compatíveis com o máximo desenvolvimento do
indivíduo como participante da comunidade humana. É razoável admitir que os
valores culturais implícitos nessa orientação tiram sua força do poder
associativo dos arquétípos solidários. As imagens simbólicas de experiências grupais
pregressas exitosas escondidas no inconsciente coletivo enriquecem a criatividade humana, consolidando os valores positivos
em torno dos quais gravita a existência produtiva. Este algoritmo evolutivo visto em retrospecto pelo homem
atual sugere a existência de um núcleo arquetípico de solidariedade cujo
objetivo comunitário transcende o indivíduo.
Portanto, a possibilidade de ser solidário não
é apanágio de uns poucos privilegiados, dela participam todos os homens. Resta
disciplinar-nos, vencendo os obstáculos egoísticos às tendências associativas
inatas, aprimorando-nos na prática do comportamento solidário. Erich Fromm nos fala da “liberdade de”, e da
“liberdade para”, evidenciando a complementariedade destes dois momentos do ser consciente. No que diz respeito à predisposição de ser
solidário, por exemplo, o primeiro se confunde com a capacidade de o indivíduo libertar-se
do egoísmo; o segundo corresponde à determinação de praticar eficientemente uma
habilidade potencial conata – a solidariedade.
Peculiarmente,
a “âncora psíquica” da solidariedade é centrada no ego; mas nas iniciativas
solidárias o amor próprio de cada indivíduo se enriquece com o respeito e
dedicação ao próximo. Nesse processo de
socialização o que importa é exercitar a predisposição solidária, eminentemente
criativa. A pedagogia da solidariedade não se resume a elaborar um rol de
preceitos antiviolência, mas consiste numa escalada de compreensão e
valorização, por parte de cada um, da predisposição associativa solidária do
homem, ainda que isso custe algum esforço pessoal para a mobilização de
virtudes comunitárias potenciais.
Concluindo, estou
convencido de que o homem carrega um núcleo arquetípico de solidariedade que
constitui a reserva construtiva mais diferenciada da espécie humana, agindo
como um dinamismo criativo na intimidade psicodinâmica da existência de cada um.
Isso explicaria os acontecimentos inesperados no curso das crises sociais que
ameaçam a evolução do homem. Esta
influência arquetípica seria a causa imponderável
que tantas vezes tem mudado o rumo da História sem que uma ação objetiva
específica propositalmente empreendida tenha tido uma influência direta. Instantes
em que, não obstante as dificuldades aparentemente insuperáveis, a prática da colaboração
e da partilha prevalecem,
inesperadamente, de forma criativa, consolidando a comunidade humana universal.
Everaldo Lopes
[1]
Segundo C. G. Jung [v. junguiano] , imagens psíquicas do inconsciente
coletivo (q. v.), que são patrimônio comum a toda a humanidade:
[2]
A caça de animais selvagens, a cata de frutos e a pesca suficientes para
alimentar toda uma coletividade nômade, antes dominar a agricultura, a
domesticação de animais etc.
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