Na sua marcha inexorável o tempo consome, até a morte, instante a
instante, a vida que ganhamos ao nascer. Obviamente, essa consumpção acontece a
todo ser vivo. Resulta de fenômenos naturais. Nada há de novo nessas
afirmações. Há um detalhe, porém, que também não é novidade mas merece destaque
especial: o homem é o único animal que se dá conta da própria vida e de sua
finitude. Isso tem implicações. Entre outras, por ser autoconsciente o homem é capaz
de avaliar antecipadamente as consequências sobre a saúde do corpo e da alma, decorrentes
do seu modo de viver. Assim ele se torna
em certa medida responsável pela manutenção do próprio equilíbrio biológico. Adotando
hábitos alimentares sadios, evitando o sedentarismo, dormindo regularmente etc.
pode influir beneficamente na conquista de sua saúde física e psíquica. Obviamente,
estas medidas salutares não anulam a ação do tempo. O tempo continua soberano,
promovendo o envelhecimento que culmina, sempre, com a morte.
Há uma diferença essencial entre viver e existir. A vida em si é um processo biológico sujeito
às leis da Natureza, enquanto a existência é uma construção cultural feita de
escolhas pessoais inspiradas no sentimento, analisadas pela razão e executadas
por determinação da vontade que ora atende à razão, ora ao sentimento, ou acaba
subscrevendo um acordo negociado entre estas potências da alma humana. Então
podemos dizer que em grande parte o vir a ser existencial está em nossas mãos.
As situações que envolvem a vida de cada um exigem decisões
responsáveis. É razoável que diante dos problemas familiais, sociais e econômicos
que assediam o sujeito consciente, em momentos de lucidez ele se detenha para
questionar: como estou gerenciando minha existência? Tenho feito o de que
realmente gosto, ou apenas sigo um script cultural? Neste caso assumo
comportamentos culturalmente induzidos que não me proporcionam felicidade?... E descubro que
para ser responsavelmente livre sou obrigado a policiar o meu comportamento e muitas
vezes tomar decisões que me custam algum sacrifício. Isso é necessário porque o
que acontece em cada momento além de nos afetar individualmente tem reflexos
sociais que podem prejudicar a harmonia do grupo. Habitualmente pautamos a
conduta por valores éticos já consagrados. Todavia, em situações limítrofes
faltam parâmetros confiáveis para aferir o equilíbrio das respostas aos
estímulos que nos assediam. E nestes casos, não raro, ou transgredimos a ordem
estabelecida ou nos reprimimos demasiadamente. Então, embora não queiramos podemos
criar com nossa conduta situações desconfortáveis para nós mesmos ou para os
outros, promovendo comoções sociais ao nosso redor. Contudo, na falta de uma
pauta comportamental pré-estabelecida, temos sempre a possibilidade de
encontrar o caminho da coerência no exercício da razão, do sentimento e da
vontade, respeitando o outro e a nós mesmos, o que sempre repercute positivamente
no bem estar coletivo. A disposição de agir equilibrando nobremente o que
estamos fazendo e o que sentimos ser moralmente correto é fundamental para a
conquista da paz e autoconfiança de que precisamos para existir
construtivamente. Mas a busca em que nos empenhamos para alcançar paz e
segurança só se completa definitivamente quando prolongamos, pela fé, o esforço
ético-racional deixando-nos empolgar por um valor absoluto transcendental. Embora sabendo-nos incompletos
e vulneráveis a ocorrências imprevisíveis, precisamos assumir o comando da
nossa própria existência o que implica em riscos cuja expectativa gera
insegurança. Para enfrenta-los (os riscos) recorremos em primeira mão ao
conhecimento e à competência complementados pela vontade de proceder
corretamente. Mesmo assim não ficamos inteiramente a salvo da possibilidade de deslizes
comportamentais. E as pessoas
sensíveis se ressentem de suas condutas destoantes das próprias convicções éticas.
A precariedade humana nos expõe à necessidade de amparo moral nos
momentos de angústia existencial. Os que têm fé confiam na providência[1].
Aos homens de pouca fé resta confiar na especulação metafísica que sugere uma consciência
universal inteligente e eternamente coerente. É ela que garante a ordenação da
complexidade crescente da matéria caótica dos primeiros segundos após o
“big-bang”, até a vida consciente[2].
Na mística existencial a consciência universal é o próprio Deus que garante a paz
do sujeito consciente mediante sua integração na unidade perfeita de tudo que
existe. Em ambos os casos o homem alcança a paz interior, sintonizando seu ser
mais íntimo com um todo absoluto significativo. Mas esta sintonia só será
efetiva quando emocionalmente consumada. Só então o homem sente que o caminho
existencial (imanência) se confunde com o ponto de chegada proposto pela fé como
uma transcendência absoluta... e sente a paz existencial que a razão sozinha
não pode promover. Este é o mistério da
fé.
Dúvidas, incertezas que ensombrecem a paz do vir a ser consciente
sempre existirão. Caso a caso, cada um deverá fazer a escolha fundamental entre
seguir à risca o que está culturalmente estabelecido, ou vencer a inércia cultural
e criar soluções originais no sentido de cumprir a missão da vida consciente no
processo evolutivo, ou seja, a de construir uma humanidade solidária. Isso
implica em enfrentar a realidade priorizando a responsabilidade de agir
eficientemente no sentido da defesa do bem comum, ainda que seja necessário pagar
pesado ônus. Essa postura confiante é a mais adequada para a superação da
vivência de incerteza que ameaça a integridade subjetiva do homem como protagonista
responsável da História. Quando a ameaça é insuportável sobrevém aflição e
amargura. Nesses casos, suaviza o sofrimento existencial sabê-lo tão fugaz
quanto os momentos de prazer que a vida pode proporcionar. Em última instância,
os homens que trilham o caminho místico acreditam em que a realidade mais
íntima do ser consciente se projetará além do tempo numa harmonia perfeita na
qual encontrará sua plena realização. Essa perfeição já se entremostra na
experiência subjetiva do ser consciente, racional e volitivo, mediante a
intuição da unidade do todo universal. Este todo é necessariamente um absoluto
que é único e perfeito. O referencial dessa totalidade significativa, assumido
pela fé, é representado por uma transcendência infinita, totalmente confiável
(Deus). Sem esta âncora o projeto existencial fica vinculado a atribuições
volúveis, verdades contingentes incapazes de definir com autoridade o papel que
cabe ao homem como protagonista da história e da Evolução. Sem um referencial
absoluto o homem se perde num relativismo ético perturbador. Uma pauta ética
baseada estritamente na razão temporal está sempre sujeita a revisões
corretivas. É transitória e não satisfaz a necessidade humana de segurança total.
A inquietação resultante deprime o indivíduo que aspira à transcendência
absoluta. Na prática, a superação de uma depressão moral, antes que ela se
transforme em doença orgânica, implica em o indivíduo erguer a cabeça, deixar
de ter pena de si mesmo e buscar alternativas, reavaliando as posturas
assumidas.
Até na terceira idade, quando o automatismo biológico começa a falhar, oportunizando
a queda da autoestima e reforçando a ameaça de depressão, é possível ter motivação
para viver. Para tanto é preciso manter atividade social que contribua para o
bem estar das pessoas, exercitar uma ocupação prazerosa e, finalmente, alimentar
sonhos e projetos. Esta proposta de uma vida proativa é intrínseca ao exercício
coerente da consciência, mas demanda criatividade e determinação. Implica em “apostar
todas as fichas” na mobilização dos recursos morais e talentos pessoais, tendo
em vista construir um vir a ser capaz de objetivar condições favoráveis para o
bem comum. Isso exige um esforço consciente para assumir de forma ativa e
confiante atitudes e ações coerentes com um programa social focado na
solidariedade.
Everaldo Lopes
Sinto-me em falta com você pela falta de comunicação. Continuo lendo as mensagens de seu Blog, o que tem despertado em mim interesse cada vez maior pela leitura e pelo conhecimento. Tenho acompanhado as publicações de seus textos e aguardo uma oportunidade de trocarmos ideias. O tempo não espera, corre rápido. O mês de setembro para mim não me permite protelação, Você Everaldo deve ter na memória o dia 19 de setembro, quando, há cinquenta anos, você me prestou toda sua dedicação e apoio na "partida" de seu amigo Washington. Porém poderemos posteriormente combinar uma data para nos vermos pessoalmente. Um abraço cordial para você e Elenita.
ResponderExcluirStela. Sinto-me feliz por saber que você lê meu blog. Alegrar-me-á trocar ideias com você.
ExcluirRealmente "o tempo não espera, corre rápido". Mas há lembranças que não passam!
Espero que você e os seus estejam em paz e com saúde.
Abraço cordial.
Everaldo
É uma pena que nem todos saibam a diferença entre viver e existir. Parabéns pela excelente reflexão.
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