O vir a ser consciente implica na responsabilidade
de fazer escolhas éticas. Por sua contingência o homem é refém de incertezas e no
momento de agir é frequentemente assediado por dúvidas inquietantes. Daí a
importância de dispor de critérios confiáveis para as decisões pessoais. A necessidade
de ser coerente no exercício da “condição humana”[1]
leva o indivíduo a filosofar sobre o que é a verdade, sobre a consciência
reflexiva e a liberdade, sobre os valores éticos e a justiça. Assim espera
conhecer-se melhor, bem como a sua circunstância para proceder de forma
esclarecida, objetivando uma existência rica de sentido. Contudo o conhecimento, apenas, não o liberta da
perplexidade, para vencer a ansiedade decorrente das dúvidas de um devir incerto precisa estar empolgado
por uma experiência emocional profunda de total credibilidade no seu critério
de escolha. Nesse ponto é oportuno
lembrar o pensamento de Kierkegaard. Vivendo o drama da angústia humana ele
propôs a evolução existencial do nível
ético para o nível ético-religioso
que demanda, pela fé, a presença no homem do “absoluto transcendental” sob a
forma de um alter ego que garanta
definitivamente o marco ético da
escolha pessoal.
Para
moldar o comportamento por um valor assumido responsavelmente é fundamental que
o indivíduo possua autoconhecimento e controle
emocional. Intelectual e emocionalmente preparado, o homem torna-se mais apto a
construir uma sociedade solidária, lutando na sua intimidade psíquica afetiva e
no convívio social contra as imposturas que ameaçam a edificação do projeto
comunitário. Projeto que é o objetivo central da maturidade humana,
identificando-se com a solidariedade coletiva. Nesta luta o grande problema do
homem é a sua própria educação e a das pessoas ao seu redor, no sentido de evitar
os desacertos que perturbam a harmonia da vida em sociedade. Nem sempre as
pessoas estão conscientes do mal que podem promover contra a organização e
estabilidade da comunidade humana! Em muitos casos os deslizes comportamentais são estratégias de sobrevivência ingenuamente
construídas, ou condicionamentos culturais que moldam o comportamento humano sem
pedir licença. A intervenção corretiva dos comportamentos ingênuos
inadequados e das condutas falazes culturalmente condicionadas pressupõe a crença na capacidade das pessoas
implicadas, em reconhecer e corrigir as falhas comportamentais em que incorrem.
Não existe uma pedagogia totalmente eficaz para induzir as pessoas às mudanças de
conduta que se fazem necessárias. Dessa forma, a intervenção corretiva dos
comportamentos distorcidos não garante sempre os resultados desejados. Todavia não se deve perder a oportunidade de
insinuar mediante o exemplo e um discurso coerente a responsabilidade
existencial de todos os homens no processo evolutivo do qual fazem parte. Pode-se
tentar sempre induzir as pessoas a examinarem suas vidas e compreender o papel
que lhes toca diante dos percalços do convívio coletivo. Aliás, esse é um ponto chave deste processo
evolutivo. Junto com a alfabetização já se deve fazer um esforço pedagógico
para incutir na criança o sentimento de ser parte de um todo coletivo maior do
que seu mundinho individual, inserindo-a numa visão integrada da sociedade em
que vive. Afinal, o futuro da humanidade depende do sucesso na educação das
crianças. Educar não é apenas ensinar a ler e escrever, mas, principalmente despertar
nos educandos a responsabilidade que lhes toca de contribuir inteligente e
responsavelmente para a construção de um mundo em que prevaleça a verdade e a justiça,
suprimindo as desigualdades injustas. Tudo isso vem junto com o amor que deve
prevalecer entre as pessoas no lar, na escola, no trabalho e na sociedade. Mas,
sendo o amor um dom, não se pode impô-lo; pode-se estimular, porém, o convívio
coletivo ético responsável, o que já é meio caminho andado.
Não se pode
materializar a origem do Universo e a essência da consciência reflexiva, da
razão, da afetividade e da vontade. De como tudo começou, e da substância dos
atributos psicossociais altamente
desenvolvidas no homem não podemos ter certeza racional. A análise profunda da polaridade consciência-mundo desemboca
sempre em especulações que escapam a qualquer tentativa de objetivação. Em
verdade, através de uma abordagem estritamente racional não se pode afirmar ou
negar com certeza a intervenção de um
absoluto criador. Embora se possa aventar a hipótese de um Dinamismo Absoluto
Eternamente Criativo para justificar a existência do mundo e de nós mesmos.
Essa ideia tem respaldo em especulações sobre a evolução da matéria desde o big
bang até a vida consciente. Afinal, a ordem impressa nesse processo evolutivo
pressupõe uma intenção e só há intenção na esfera da consciência. O que faz
supor uma consciência universal. Estas especulações implicam numa integração
misteriosa da transcendência e da contingência no universo, que se manifesta na
consciência reflexiva sinalizando uma realidade transtemporal cuja afirmação
implica num ato de fé. Na experiência
mística esta realidade identifica-se com a vivência do amor divino que arrebata
o ser consciente por um sentimento de paz infinita. Mas para usufruir
plenamente os benefícios desta experiência não basta aceitar intelectualmente
uma cosmovisão espiritualista. É necessário vivenciar uma relação absoluta com
o absoluto (abstração inefável) que realiza subjetivamente a intimidade do
homem com Deus. E para tanto é preciso incorporar existencialmente as virtudes
teologais[2]
que excedem a mera determinação ética, e a humildade talhada numa formalidade
ritual disciplinada. É preciso sentir estas virtudes como emanação do “ser
pessoal”. É abismal a experiência psicossocial implícita na prática destas
virtudes! Tomando o amor caridade como paradigma, para vislumbrar sua
grandiosidade basta ler a segunda carta de Paulo aos Coríntios[3].
Confesso que fico tonto só de pensar a altitude existencial a que preciso
alçar-me para viver caridosamente! Equivoca-se o beato que pratica o ritual
místico, apenas formalmente, sem realizar a “experiência numinosa”[4]
implícita na relação absoluta com o absoluto.
O comportamento místico não é uma panaceia à qual se recorre para espantar o
medo de morrer. Requer uma profissão de fé. A
“firme opinião de que algo é verdade, sem qualquer tipo de prova ou critério
objetivo de verificação” resulta de uma
experiência psíquica afetiva profunda que tem mais a ver com o amor e a coragem
de ser do que com o medo! E só esta
experiência anula a angústia da “existência”. De outra forma a consciência
reflexiva arrisca-se afundar no dilaceramento das contradições existenciais. Resumindo,
a plenitude existencial exige a fé em um
Deus criador e misericordioso, absoluto que ultrapassa os limites do
conhecimento estritamente racional como um absurdo lógico (conceitual)
necessário, porém, para fechar a gestalt da existência ou vir a ser consciente.
Na verdade pode-se conviver com o absurdo
lógico, mas o absurdo existencial representado
pela vivência de contradições insolúveis é desagregador da unidade pessoal porque
implica em vivenciar a própria consciência irremediavelmente dilacerada pelas
dicotomias[5]
da “existência”. Tendo em vista banir o absurdo
existencial é preciso assimilar pela fé o absurdo lógico para fechar a gestalt da existência pessoal. Todavia não controlamos a vivência de fé
inabalável que não deixa espaço para a dúvida e nos coloca no seio de uma
transcendência absoluta. Eis o impasse que é preciso superar para salvar a
integridade existencial. Sem o respaldo
de um referencial absoluto os valores
éticos não passam de atribuições humanas falíveis. Mesmo ao testemunhar a “palavra
revelada”, sem a experiência mística (de fé) o homem continua sendo o
sustentáculo da verdade absoluta, o que é um contrassenso porque limitado pela
contingência histórica não poderia ser um referencial absoluto para suas
afirmações. Por isso Miguel de Unamuno
afirmava: “Ter fé não é crer no que não se vê, mas criar o que não se vê”. E como toda criação original, a fé tem raízes
numa intuição ou revelação significativa veiculada pelos símbolos que transitam
no pré-consciente. O que nos remete à religiosidade
inconsciente do homem, estudada por Viktor Frankl como reflexo da divindade na
intimidade subjetiva.
Everaldo
Lopes
[1] Capacidade
de ser consciente reflexivo, racional, afetivo e volitivo.
[2]
Fé, Esperança e Caridade (Amor).
[3]
Entre outras afirmações destaco esta: “E ainda que eu distribuísse todos os
meus bens entre os pobres, e ainda que eu entregasse meu próprio corpo à
cremação se não tivesse caridade nada disso me aproveitaria.”
[4]
Segundo Rudolf Otto (1869-1927) teólogo
e filósofo alemão, o sentimento único vivido na experiência religiosa, “a
experiência do sagrado, em que se confundem a fascinação, o terror e o
aniquilamento. Dic. Aurélio Sec. XXI
[5]
Nascer sem pedir e saber que vai morrer
sem querer; aspirar a tudo poder e saber que reterá apenas uma pequena parcela
de poder; desejar tudo conhecer e saber
que terá acesso a um conhecimento limitado.
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