segunda-feira, 14 de abril de 2014

Viver por viver

         Viver por viver não preenche o verdadeiro sentido evolutivo da vida consciente reflexiva. Para cumprir fielmente seu objetivo no contexto evolucionário o homem precisa refletir a fim de definir-se através de escolhas e decisões responsáveis, socialmente coerentes. Esse não é o comportamento das pessoas que não atinam ou não assumem o compromisso de honrar a sua condição humana[1]. Todavia todos desejam viver mais! Nas Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs) do mundo inteiro um enorme esforço é feito diuturnamente,  no sentido de salvar vidas que estão por um fio. Diante da ameaça de um fim próximo os doentes graves, agarram-se à ajuda médica e até a tratamentos milagrosos com a esperança de vencer a parca impiedosa. A ordem do dia é: viver, viver mais. Reconhecemos ser louvável o esforço despendido para prolongar a vida; essa é a missão do médico. Mas o efetivo exercício livre e responsável da consciência reflexiva é o que torna a vida humana digna de ser vivida. E essa prática é da alçada de cada um mediante o bom uso das funções psíquicas superiores (racionalidade, afetividade e vontade) tendo em vista a realização de ideais nobres. No seu vir a ser o homem protagoniza a luta íntima entre suas tendências egoístas excludentes e a prática solidária indispensável à sobrevivência da espécie. Cada um tem que dar uma resposta pessoal a esse conflito. E a coerência ética das relações do indivíduo consigo mesmo e com os outros é a medida de sua envergadura moral.
Lancemos um olhar inquiridor sobre os antecedentes e o porvir dos que estão sendo salvos nos centros de terapia intensiva. Entre os pacientes graves que ocupam os leitos das Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs) a maioria das patologias é produzida pelos desregramentos que suas vítimas consciente ou inconscientemente praticaram por longo tempo, empenhados na conquista de objetivos materiais. O enfartado é um executivo que viveu o tempo todo correndo atrás de maior produtividade, numa atividade lucrativa. Ou um bon vivant disposto a jogar todas as fichas para fruir o prazer que se lhe oferece cada momento. São legiões de indivíduos que desafiaram os limites do próprio corpo para satisfazer suas ambições imediatistas e acabaram sofrendo as consequências.  Nessa insensatez dissiparam as próprias vidas. Tornaram-se vítimas de desordens biológicas que ao longo do tempo evoluíram para moléstias renais crônicas, cirrose hepática, doença coronariana, apoplexia cerebral entre outros estados patológicos graves. Estressados, afanaram-se na tentativa ambiciosa de conquistar alvos fugazes, descuidando a saúde do corpo. Agora, doentes, são obrigados a abandonar suas ambições, já não lhes restam oportunidades de realizá-las, mas continuam sedentos de mais vida. Todavia a experiência mostra que quase todos voltarão para suas rotinas morbígenas se conseguirem sobreviver à doença atual. Poucos terão aprendido a lição. A equipe médica nas unidades de tratamento intensivo não sabe  o que o paciente aos seus cuidados cuja vida está por um fio fará da sua existência se escapar da morte iminente. Não importa, é preciso salvar sua vida ameaçada. Todos querem  viver mais, porém muitos salvos da morte pelos cuidados médicos recebidos não saberão o que fazer dos anos de vida que estão por vir.
Alguém já disse que o verdadeiro desafio de ser homem é caminhar para a morte, lutando pela vida... E eu até concordo com essa visão numa perspectiva de vida apaixonada pela busca heroica de solução harmoniosa para as contradições existenciais. Nessa perspectiva é contraditório assimilar, sem protesto, a monótona repetição dos “mesmos sem roteiros tristes périplos”[2] em que se torna a vida de muitos de nós presos a propostas existenciais egoísticas imediatistas que se esgotam nelas mesmas. Para superar a monotonia da ganância dos bens e prazeres materiais que amesquinham as possibilidades existenciais, o homem precisa alimentar a esperança de uma realização superior, decidido a alcançá-la com talento e determinação. Isso implica no envolvimento com uma causa nobre, associado a um ideal estético, intelectual  e ético-social.  Sem uma proposta existencial criativa coerente com os elevados ideais de verdade e justiça, o homem fica à mercê de uma postura magnetizada pela vontade de viver por viver! Seguramente, conquistar a plenitude pessoal é o objetivo da existência; porém dadas as limitações humanas, a realização a que aspira a maioria das pessoas se confunde com sucessos imediatos voltados para o “ter mais” e não para o “ser mais”. Por falta de crítica sadia, e determinação para realizar os ideais superiores, os erros de ontem se repetem indefinidamente. É preciso carregar a chama divina que ilumina os que cultivam o desejo de ser mais,  a fim de alcançar a verdadeira plenitude do ser consciente. Para dignificar a condição humana é preciso ousar o impossível, tentar  sem desfalecimentos a realização de um ideal nobre. Só os que assim procedem conseguem superar as dificuldades existenciais, alimentando no mais íntimo do ser, o sentimento de respeito a si mesmos, aos outros e à natureza.
Afinal, o que será a vida sem uma paixão transcendental? O que não está claro, para muitos, é que esta paixão conduz à paz da vida comunitária, fundamento supremo da verdadeira alegria de viver! Não obstante, uma força insistente leva o homem a agarrar-se à vida pela vida mesma, na expectativa de algumas migalhas de prazer e felicidade passageira. Esse é o desfecho quando falta ao homem a disposição e a coragem de ser coerente com o ideal solidário,  recriando-se e assumindo a responsabilidade das escolhas que faz. Ele não se dá conta de que a falta da realização existencial superior é a origem da angústia humana, dor muda que fustiga as entranhas da existência. Contra ela é necessário opor a “força interior” que se manifesta num comportamento clarividente, compassivo, determinado a encontrar solução para as contradições do vir a ser humano. Nesse sentido nenhuma proposta supera o exercício do amor que move a vontade à busca do bem de outrem[3]. Na verdade, a prática caridosa  é necessária para realizar o sonho de construir uma comunidade solidária, onde os problemas existenciais partilhados em perfeita cooperação se resolveriam numa epopéia de paz e serenidade, aqui mesmo na Terra.
Para o homem não basta viver mais; é preciso viver dignificando a condição humana.        

  Everaldo Lopes



[1] Ser consciente, livre e responsável
[2] Do poema de Carlos Drumond de Andrade – “A máquina do mundo”
[3] Caridade no vocabulário cristão.

5 comentários:

  1. Painho,

    Penso que a pluralidade, a heterogeneidade e as diferenciações que marcam a presença de homens e mulheres no mundo nos leva, inevitavelmente, à constatação de que a vida tem múltiplos e diferentes sentidos para cada sujeito que integra o conjunto da humanidade. Diante dessa verdade, tenho dificuldades em pensar em termos de um “sentido único” para a existência. Também não sei se quando você assinalou em seu texto a existência de um “verdadeiro sentido evolutivo da vida consciente reflexiva” estaria pensando nesta perspectiva de um “sentido único” para a existência.

    Entendo que, se somos tão plurais e diferentes, a única forma que pensarmos sobre um “sentido único da existência”, seria se todos estivessem sintonizados em torno de princípios e diretrizes existenciais referenciados numa “envergadura moral” que seria adotada por todos, favorecendo uma “coerência ética das relações do indivíduo consigo mesmo e com os outros”. Assim, ninguém estaria impedido de colaborar com esse projeto coletivo, humanitário; até porque sabemos que a adoção de princípios éticos e morais para a condução da vida não pressupõe requisitos de classe nem de titulação intelectual. Nessa perspectiva, ricos e pobres, negros e brancos, jovens e adultos, analfabetos e letrados, de todas as profissões e ocupações (pensei nos pescadores, médicos, rendeiras, sociólogos, engenheiros, garis, construtores e pedreiros, donas de casa e domésticas, enfim), teriam a chance de imprimir uma nobreza existencial às suas existências.

    Todos esses sujeitos, de diferentes classes sociais, credos religiosos, orientações sexuais, etnias, gerações etc poderiam contribuir para a dignificação da condição humana, porque são capazes de “definir-se através de escolhas e decisões responsáveis, socialmente coerentes”. Fico inquieta ao pensar, no entanto, até que ponto a exclusão social poderia ser um fator impeditivo para alguns se engajarem na vida a partir de um “ideal estético, intelectual e ético-social”. Não sei... Temo que, por esse caminho, estejamos excluindo, dessa possibilidade de conquistar uma nobreza existencial, homens e mulheres simples. Até que ponto esse “ideal estético, intelectual e ético-social” incluiria entre os homens simples, aqueles que não tiveram acesso aos conhecimentos científico e universitário, aos que lidam no cotidiano, tomando decisões e fazendo escolhas no seu universo existencial singelo e simples, sem grandes alternativas, porque a vida não lhe foi generosa para tanto.

    ...

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  2. ...

    Sabemos que muitos reduzem suas vidas a “propostas existenciais egoísticas”, assim como muitos não conseguem ultrapassar as “ambições imediatistas” do seu cotidiano. Talvez poucos sejam corajosos o suficiente para “ousar o impossível”; talvez poucos tenham experimentado o efeito de sentir a “paixão transcendental” que conduziria à “paz da vida comunitária”. Será que também poucos contactaram com o “fundamento supremo da verdadeira alegria de viver”? Nesse momento histórico, marcado por tanta fluidez e liquidez nas relações, quantos “agarram-se à vida pela vida mesma, na expectativa de algumas migalhas de prazer e felicidade passageira”?

    O que seria essa condição de “realização existencial superior” que nos pouparia de contactar com a “angústia humana, dor muda que fustiga as entranhas da existência” (acho muito pertinente sua definição da angústia)?

    Concordo com você e cada vez mais percebo que o amor seria a solução, exatamente porque, como você reconhece, “é o amor que move a vontade à busca do bem de outrem”. Mas, como estimular essa “prática caridosa” entre os humanos que não estão preocupados em “construir uma comunidade solidária”, mas sim estão preocupados em “olhar para o seu próprio umbigo”? Como encontrar essa “paz e serenidade, aqui mesmo na Terra”? Esse é o desafio posto para todos nós viventes...

    Nesse sentido subscrevo a conclusão do seu texto: “não basta viver mais”, é preciso viver para dignificar a condição humana. Mas, o seu texto me deixou vários questionamentos: como fazer isso num mundo de estranhamentos e superficialidades; num contexto em que há muita comunicação midiática e tão poucos encontros existenciais; nesse mundo em que o trágico torna-se um espetáculo e as pessoas tornam-se indiferentes ao sofrimento alheio?

    Não sei, painho, penso que há um ideal e um real que se distanciam cada vez mais; o pior é que essa contradição (entre o real e o ideal) não nos exime da tarefa cotidiana de produzir e inventar a vida. Quem está vivo precisa encontrar o sentido de sua existência cotidianamente. Enfim, não é fácil viver; ou, como diria Guimarães Rosa: “Viver é perigoso!”

    Concluo essas palavras com mais dúvidas do que certezas. Penso que talvez essa seja a verdadeira essência da condição humana: a dúvida e a incerteza pela condição contingencial e pela impermanência de nossa existência.

    Beijo no coração, da filha,

    Ruth.

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    1. Filha.
      Entendo perfeitamente as dúvidas suscitadas pela leitura do meu texto. A sutileza dos temas discutidos exige exposição sistemática e precisa. Muitas vezes a indefinição dos conceitos chave para a compreensão da tese proposta gera confusão e dúvidas. Sua arguição me dá oportunidade de expor melhor as ideias que quis transmitir.
      Antes de prosseguir quero deter-me nas acepções respeitantes aos vocábulos “vida” e “existência” utilizados no texto comentado por você. Quando falo de “vida consciente reflexiva” atenho-me ao conceito biológico da palavra, como parte da complexificação da matéria inerente à Evolução que de acordo com minha crença obedece à ordem de uma intenção original, universal e determinante que transcende o fenômeno físico. Quando falo de “existência” refiro-me ao modo de ser próprio do homem que lhe permite decidir sobre seu comportamento com liberdade para agir criativamente ultrapassando os determinismos instintivos pelo exercício da consciência reflexiva. A vida é um fato biológico; a existência é um fenômeno psicossocial de natureza cultural. Embora “vida” e “existência” sejam palavras dicionarizadas também como sinônimos.
      Tenho salientado em outros textos nesse blog a impreterível mudança do vetor da “Evolução”, do plano biológico (individual) para o da organização social, tendo em vista assegurar sua continuidade (da Evolução). O exercício da consciência reflexiva do indivíduo é essencial para garantir esta mudança. Nesse lance, a Evolução deve reorientar-se no sentido da organização social do homem alicerçada por laços de cooperação. A psicobiologia registra a vantagem da divisão de atividades específicas entre os indivíduos de uma sociedade. “O processo evolutivo é mais bem sucedido em sociedades nas quais os indivíduos colaboram uns com os outros para um objetivo comum”. A prova disso é que “as espécies sociais representadas por vários tipos de abelhas, formigas e nós humanos são 3% do total dos animais do planeta, mas representam 50% de sua biomassa.” Todavia é importante salientar que a divisão de trabalho entre as abelhas e as formigas tem caráter instintivo determinado apenas geneticamente. A inflexibilidade instintiva desse processo é uma limitação intransponível. Entre os homens este limite é superado pela criatividade do indivíduo só possível mediante o exercício da consciência reflexiva, necessariamente livre. Sem descartar a possibilidade de alguma influência genética, a cooperação interindividual na sociedade humana tem caráter eminentemente cultural. É um fenômeno psicossocial que depende do exercício da liberdade inerente à prática da consciência reflexiva. No homem os instintos perdem sua força original. O indivíduo consciente reflexivo “toma em relação ao mundo e aos estados interiores uma distância em que se cria a possibilidade de níveis mais altos de integração”.

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    2. Sem a consciência reflexiva a Evolução ficaria truncada pela impossibilidade de mudar o seu sentido, do indivíduo para a organização social. Esse preâmbulo explica a afirmação de ser “a emergência da consciência reflexiva no homem o verdadeiro sentido evolutivo da vida”. Por sua vez, o exercício da consciência reflexiva abre espaço para os vários sentidos assumidos pela “existência”, respeitadas as escolhas responsáveis coerentes com a organização social solidária. Para atender os propósitos evolutivos os sentidos da existência culturalmente construídos não poderão conflitar com o “sentido evolutivo da vida”, ou seja, não podem ser incompatíveis com a organização social solidária universal dos indivíduos. Nesta organização repousa a sobrevivência da espécie. A “paixão transcendental” que conduz à “paz da vida comunitária” é irmã do amor à verdade e da coerência existencial na prática da consciência reflexiva livre e responsável. Esse é o cerne da “realização existencial superior” cujo fundamento é a intuição humilde da necessidade da convivência solidária entre os homens, ingrediente básico do amor representado pelo sentimento centrado no desejo do bem de outrem. Não há outra pedagogia eficiente para estimular entre os homens essa prática caridosa senão a palavra iluminada pela sabedoria, e o exemplo. O resultado, porém, depende sempre do esforço do outro em confirmar na própria existência o “verdadeiro sentido evolutivo da vida consciente reflexiva”, embora por caminhos diferentes. A “existência” comporta, pois, uma variedade de sentidos. Mas só serão legítimos os que ensejarem uma prática existencial criativa, e coerente com o “sentido evolutivo da vida”, dignificando a condição humana.
      Filha. Se essa exposição não desfez as dúvidas que gerei com o texto comentado será sempre um prazer renovado voltar a conversar com você.
      Um beijo do pai.
      Everaldo

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    3. Painho,
      Estou satisfeitíssima com sua explicação! De fato, estabeleci uma equivalência entre os termos "vida" e "existência" e terminei por não perceber que suas reflexões pressupunham essa distinção.
      Sua capacidade didática e explicativa permitiu-me desfazer, rapidamente, essa dúvida a partir da qual construí toda minha reflexão.
      Mas, foi bom! Dessa forma, você teve oportunidade de esclarecer não só a mim, mas a todos os seus leitores que, por ventura, tenham confundido as coisas como eu confundi.
      Quero registrar o meu encantamento em relação a sua disposição colaborativa ao fazer os devidos esclarecimentos. Fico feliz em ser acolhida e respeitada nesse diálogo, ao tempo em que reconheço que isso só é possível porque você tem uma escuta muito atenta e cuidadosa com os seus interlocutores, colocando em prática o que Habermas nomeia como "ação comunicativa".
      Agradecida pelos seus esclarecimentos!
      Beijo no coração, com amor e admiração, da filha
      Ruth.



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