terça-feira, 13 de maio de 2014

Da revolta à aceitação

            O ser humano é problemático. A razão e o sentimento nem  sempre estão de braços dados.  Quando há conflito, as demandas afetivas confrontam as normas éticas estabelecidas. E este confronto é fonte de inquietação. A recusa do sujeito consciente a uma proposta afetiva é opção difícil, por vezes sofrida. De  um lado ele sente que satisfazendo o coração aliviaria o fardo da sua existência; do outro sabe que o desrespeito aos valores éticos assumidos compromete a dignidade pessoal. A resposta existencial harmoniosa que atenda ao sentimento sem romper com as normas éticas depende da sensibilidade e criatividade pessoais para flexibilizar o comportamento de forma a satisfazer o sentimento com dignidade.  O caráter do indivíduo é decisivo na escolha da forma de realizar o desejo imediato de ser feliz comum a todos os homens. A escolha fundamentada em princípios puramente éticos, nem sempre corresponde a uma vivência de felicidade. A prática ética sem amor é insípida. O prêmio de consolação do comportamento ético condicionado à simples determinação da vontade é o sentimento do dever cumprido que  não  preenche todos os anseios existenciais. Todavia, agir responsavelmente sob a égide de princípios morais culturalmente sedimentados é o que se espera de todos os homens. Sem a prática responsável dos indivíduos não haveria civilização. Felizmente “.... a virtude não precisa ser triste.[1]” O amor essencialmente responsável excede a ética convencional e é fonte de alegria inesgotável; sua prática representa o mais alto nível de realização humana. Entendido como sentimento que predispõe alguém a desejar o bem de outrem fundamenta a grande máxima ética de Santo Agostinho: “Ama e faze o que quiseres”. O amor reforça os laços universais de solidariedade entre os homens, mesmo quando fere hábitos e costumes já estabelecidos. Na verdade o amor constitui um salto evolutivo revolucionário confiado ao exercício da liberdade inerente à condição humana.
A ordem universal que assegura o processo evolutivo, e a  emergência da liberdade no homem sugerem  um absoluto  que se manifesta pela comunhão incorruptível (amor) entre o ser consciente e seu alter ego transcendental (Intuição divina). Nesse contexto, Deus não seria um ser supremo isolado do mundo, mas um Dinamismo Absoluto Eternamente Criativo que perpassa todo Universo e se revela ostensivamente no vir a ser humano. O assentimento a este dinamismo transcendental que dá suporte e estrutura à própria existência traz como resultado o reconhecimento do nível ético religioso de existência[2].  Concordância que confere uma base filosófica para a postura mística consentânea com a dimensão transcendental do homem. Todas essas considerações nos remetem ao todo absoluto no qual estamos contextualizados.
O envelhecimento a doença e a morte são eventos naturais do ciclo da vida, mas constituem um desafio para o equilíbrio existencial[3]. O ser consciente transcende o puramente biológico e pensa nesses eventos antecipadamente como um risco iminente. Isso incomoda, e é preciso uma ascese bem sucedida para que o eu pensante possa imaginar esses desdobramentos da vida pessoal sem medo ou constrangimento. É ingênuo lamentar as restrições pessoais e circunstanciais que fazem parte da vida. Para o ser consciente objetivamente centrado na realidade é fundamental aceitar a inevitabilidade do envelhecimento, da doença e da morte. Para consumar, porém, esta aceitação pressupõe-se um fenômeno biopsíquico complexo difícil de definir para o qual contribuímos  conscientemente apenas com a determinação de não interrompê-lo por medo de enfrentar a realidade. A verdade é que no cadinho da subjetividade vão-se misturando experiências, conceitos, emoções e sentimentos variados inclusive a relutância em abraçar a finitude. De repente como resultado de um processo que não está sob o controle da consciência, a vivência de revolta cede lugar à disposição para aceitação mais tranquila dos limites biológicos. O beneficiário desse processo percebe, então, o despertar de uma vivência de serenidade na sua existência desamparada. Talvez haja flutuações dessa vivência daí por diante, como costuma acontecer com os fenômenos psicodinâmicos. Mas, então, já é possível lidar com o pior sem desabar. Depreende-se de tudo isso que a verdade última é uma verdade de fé, porém é mais razoável do que qualquer argumento apresentado pela razão. Levantar a questão dos limites existenciais e discuti-la sem reservas é o primeiro passo a caminho da maturidade intelectual e afetiva. O que se segue é uma transformação interior cuja paternidade não se pode ter a veleidade de assumir como iniciativa individual consciente independente de uma intervenção determinante que escapa à observação. Por isso muitos pensam dever-se esta transformação a uma graça divina que entremostra de forma obscura a unidade do Universo e da consciência na intimidade dinâmica da lógica complexa da realidade!
Racionalmente, viver confrontando a finitude é uma insensatez. Sem abraçar a transitoriedade da vida a existência vira um lixo. É estulto esperar com ansiedade o que vai acontecer se nada se pode fazer para evita-lo!  Todavia é difícil anular a angústia existencial do homem diante da fugacidade dos seus dias, antes que ocorra a transformação interior já mencionada. A persistência do desejo infantil de ser invulnerável explica porque o indivíduo se amofina ao vivenciar sua realidade finita. A superação desse conflito deve evoluir na medida em que as pessoas vão realizando de forma positiva seu movimento subjetivo de amadurecimento. Da revolta contra os limites da existência, à aceitação da finitude cada um tem sua forma peculiar de lidar com os próprios dons na conquista de uma vivência de serenidade!
Everaldo Lopes.



[1] Raul de Leoni . Último verso do segundo terceto do soneto intitulado “Cristianismo”.
[2] Kierkegaard propôs como  níveis de existência –o  estético, o ético e o ético religioso.
[3] Existência: Modo de ser peculiar do homem consciente,,reflexivo, livre e responsável.

3 comentários:

  1. Painho,

    Achei simplesmente belo o seu texto. Senti serenidade e paz ao fazer a leitura de suas palavras; e fiquei com a sensação de que você também escreveu tomado por esse sentimento de paz e serenidade.

    O tema da finitude é complexo; geralmente produz angústia e inquietações ao comum dos mortais. Mas, você conseguiu dar uma leveza tão bacana em sua escrita que fiquei com a sensação de que aquilo que era projeto se transformou em realidade em sua vida: a conquista do amoroso desapego à vida. Estou enganada?

    De fato, a atitude mais sábia diante da certeza do nosso fim biológico é assimilar verdadeiramente a condição humana, entendendo que somos hóspedes ou inquilinos temporários desse universo chamado planeta terra. Gosto de perceber a minha vida como um presente de Deus; sinto-me confortável em saber que a vida não me pertence e que minha existência não tem um fim em si mesmo. Quero crer que ao estarmos integrados ao "Dinamismo Absoluto Eternamente Criativo”, conquistamos a condição de permanência, para sempre, nesse universo. O que muda é a forma de nossa presentificação.

    O maior segredo e desafio é a aceitação da condição humana não como uma condenação, mas como um campo de possibilidades vivenciais. A beleza da vida está condicionada a nossa capacidade de fazer uso de nossa liberdade existencial com responsabilidade e muita criatividade. Aceitar-se finito, frágil e insuficiente não significa assumir uma condição de vítima; ou seja, diante da falta e incompletude, inevitáveis à condição humana, o melhor é assumir uma atitude que implique em construção de alternativas, superação e até sublimação.

    É importante exercermos essa condição de sujeito e autor do enredo de nossa própria existência; isso implica em fazermos escolhas, permanentemente. A sugestão de que essas escolhas sejam amparadas em princípios éticos e morais é muito razoável; pode ampliar nossas possibilidades de conquista de algum conforto existencial, pelo menos no sentido de vivermos a sensação do “dever cumprido”. A conquista do equilíbrio entre razão e emoção, objetividade e subjetividade é um processo sem fim. Podemos sempre deslizar, ora realçando apenas a razão para tomada de decisões, ora realçando apenas os sentimentos. De uma forma ou de outra, a vida nos exige ação e movimento.

    A brevidade da vida é algo que deveria nos provocar alegria (sei que não é assim), pois, imagine se tivéssemos a certeza de nossa imortalidade neste planeta terra. Já fico cansada só em pensar! Há alguma razão na afirmativa de que o sentido da vida está na certeza da morte para todos os viventes. Temos que nos virar para dar conta desse pequeno tempinho que passamos nesse mundo e nos esforçarmos para que esse tempo tenha todo o sentido do mundo para nós e para a humanidade. E, se temos um compromisso com a humanidade, façamos o melhor que podemos fazer em todos os dias de nossa existência; mesmo que esse tempo seja breve.

    Painho, muito agradecida por suas palavras. Acabei de ler um livro de José Saramago, “As intermitências da morte”. Muito interessante! Dentre outras coisas que ele tratou no livro, descreveu um cenário em que, numa determinado território, a morte decidiu não mais matar. Isso gerou um problemão para os moradores dessa cidade. Essa leitura me fez acreditar que, para suportarmos a vida, é preciso termos a certeza de que vamos morrer. Muito instigante a leitura desse romance; coincidentemente aborda o tema da finitude que você nos trouxe essa semana.

    Beijo no coração, de sua filha,

    Ruth.

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  2. Filha
    Suas intervenções sempre me estimulam a ir mais fundo nas minhas reflexões. Seu comentário, resultado de uma leitura sensível e esclarecida do texto ao qual se reporta confere um colorido especial ao pensamento nele inscrito. Não diria que você está “enganada”, já caminhei muito, mas sinto que tenho ainda um longo caminho a percorrer para realizar o projeto existencial que me propus. Só quando integramos, ainda que momentaneamente os fenômenos bio-psico-sociais complexos das nossas vidas chegamos a consumar um determinado módulo existencial. E ainda não alcancei esta integração.
    Na perspectiva de sermos parte de um dinamismo absoluto eternamente criativo estamos permanentemente nos inserindo num todo que dá sentido à nossa vida. O grande feito existencial de cada um nesta inserção é a contextualização num absoluto transcendental, uma tarefa que absorve todos os dons da condição humana projetando-os numa dimensão que ultrapassa os limites da experiência. Transcendentalidade impermeável à razão lógica linear, mas que se esconde no universo das conexões infinitas da lógica complexa, limite imperceptível da intuição reveladora. Utilizando-nos de uma analogia física, a integração da existência na unidade racional e afetiva diante da finitude requer uma energia que escapa ao nosso controle consciente. Podemos apenas, conscientemente, pôr-nos em disponibilidade para capta-la e absorvê-la. Estou convencido de que a conquista do amoroso desapego à vida demanda uma graça, no sentido de uma virtude especial concedida por Deus como meio de salvação da precariedade da existência histórica. Mas esta graça nos chega através de um processo psicodinâmico complexo cuja intimidade se pode apenas intuir. Estamos todos a caminho no esforço grandioso para a realização de nossa hominalidade.

    Um beijo do pai.
    Everaldo

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  3. Painho,

    Fico feliz em dialogar com voce sobre questões de interesse comum.
    Gosto muito...

    Beijo no coração, com amor, da filha,

    Ruth.

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