A
assistência aos enfermos fazia parte da ação caridosa dos monges nos mosteiros
da Idade Média. Laicizou-se depois para acompanhar a evolução científica e
tecnológica. À medida que a Ciência médica evoluía, já não bastava a
solidariedade dos religiosos, exigiam-se conhecimentos e habilidades especiais
para assistir com eficiência as pessoas enfermas. Essa qualificação específica
dos cuidadores dos enfermos ficou cada vez mais complexa e cara. Ao mesmo
tempo, em função do avanço tecnológico, fizeram-se indispensáveis equipamentos especiais
dispendiosos, para a execução de procedimentos diagnósticos e terapêuticos. Evidentemente,
o custo para a formação do médico, construção, instalação e manutenção de
ambulatórios e hospitais excede as possibilidades de simples doações caridosas.
Como se sabe, os mosteiros e conventos se mantêm de doações e do trabalho
artesanal dos monges que vivem em comunidade. Nenhum membro da coletividade
monástica é remunerado, todo ganho do trabalho coletivo reverte para a
manutenção da instituição monacal. A assistência prestada aos doentes pelos
religiosos não visava qualquer remuneração pessoal, resultava, sim, da
solidariedade, de um compromisso missionário fruto do amor ao próximo.
Na conjuntura moderna, os cuidados médicos
deveriam, então, ser assumidos pelo Estado. A este caberia remunerar os membros
da coletividade que se propusessem executar a atividade médica. Ao desvincular
a relação médico/paciente de qualquer tipo de lucro material imediato contornar-se-ia
a comercialização eticamente inaceitável do ato médico. A dignidade humana
exige que os serviços médicos jamais sejam negociados como um bem de troca. E
como extensão desta exigência, evidencia-se a natureza eminentemente missionária
da medicina. Afinal, essencialmente, o cuidado médico não é negociável posto
que se propõe salvaguardar a vida humana que não tem preço. É necessário que na
hora do atendimento o médico se atenha exclusivamente à cura e ao bem estar do
paciente, sem visar qualquer ganho material atrelado ao ato médico. A esta
realidade vincula-se o princípio Constitucional que determina ser a saúde um
“direito do homem e um dever do Estado”. Lamentavelmente, o Estado descumpre
seu dever, e os médicos se distanciam da vocação missionária. Como
profissionais liberais eles se sentem à vontade para vender seus serviços.
Porém são arbitrários ao cobrar pelo atendimento; não há como estabelecer
critérios para estimar o valor de troca deste serviço. É fácil calcular o valor
dos bens de consumo e dos serviços que geram riqueza material, pela quantidade
de trabalho necessário para produzir estes bens e serviços. Mas este critério
de avaliação não serve para aferir o valor do ato médico cujo produto é o bem
estar físico, mental e espiritual de um ser humano. Esses bens pessoais inerentes
ao modo de ser próprio do homem são inegociáveis. A eficácia do trabalho médico
é indissociável da abordagem singular, de cada caso. Até porque cada ser humano
é uma originalidade inconfundível. Se cada caso demanda atenções específicas, e
a avaliação do trabalho médico transcende o critério quantitativo, não há como
aferir quanto vale um ato médico. Dentro desta lógica, cada homem carrega o
peso de toda humanidade. Qualquer procedimento médico encerra uma
responsabilidade ímpar. Uma simples injeção intramuscular e uma cirurgia
complexa podem igualmente levar à cura ou à morte. Não obstante os riscos
inerentes, as decisões terapêuticas devem
ser tomadas oportunamente e, muitas vezes, sob pressão; tudo depende da ação pronta e
competente do médico diante de uma chance de cura que não se repete; não há
tempo a perder. Por tudo que ficou dito,
a atividade médica precisa ter o caráter de uma resposta incondicional, competente
e criativa forjada pela sensibilidade e responsabilidade despertadas pelo
pedido ostensivo ou silencioso de ajuda, do enfermo. E diante desse apelo, para
atender sua dimensão ética existencial, o médico precisa ser dotado de caráter
exemplar, competência, e profundo sentimento de solidariedade para com o seu
próximo. A verdade é que, pondo a assistência médica no nível de uma relação
profissional entendida como atividade que gera riqueza material, o paciente seria
para o seu médico, ao mesmo tempo, um ser humano carente de cuidados e uma
possibilidade de ganho material. Ambigüidade que torna impossível separar, na
relação “profissional” médico-paciente, a ganância e a solidariedade. Por isso,
ao engajar-se num esquema de produção, o médico aliena-se do seu sacerdócio. No
contexto de uma economia competitiva, a prática missionária da Medicina se
torna um desafio para o Estado e para o Médico. Idealmente o Estado teria que satisfazer
fartamente as necessidades pessoais e familiares do médico a fim de evitar que
ele seja obrigado a tirar de uma relação de serviço diretamente remunerado pelo
paciente o recurso financeiro de que precisaria para viver digna e
confortavelmente com sua família. O médico, por sua vez terá que ser
suficientemente competente, responsável e solidário. Não obstante, a questão
não se restringe a uma opção simples. Vivendo numa sociedade economicamente
competitiva, muito precocemente os indivíduos são absorvidos pelo modo de existência prevalente e
passam a viver de acordo com os valores do sistema econômico vigente sem
questioná-lo. Erich Fromm nos adverte que os dados empíricos, antropológicos e
psicanalíticos tendem a demonstrar que "ter" e "ser" são
dois modos fundamentais de existência cujas características determinam
diferenças no comportamento social. É fácil associar o modelo profissional e o missionário,
respectivamente, às experiências de "ter" e de "ser.
No sistema
econômico baseado na propriedade privada dos meios de produção, visando o
lucro, alguns procedimentos assistenciais propedêuticos e terapêuticos têm alto
custo adicional o que coloca o médico numa situação incômoda no modo “ter” de
existir. Ao mesmo tempo em que se amplia seu poder de curar, subtrai-se a
liberdade do médico de agir de acordo com sua consciência missionária. Por
motivos óbvios, o elevado custo adicional destes procedimentos impede que o
médico faça uso deles na atenção dispensada a todos os seus pacientes; criando-se,
inevitavelmente, diferença cruel entre o atendimento dos pobres e dos ricos.
Não há solução fácil para questões de tal complexidade. Para converter as
pessoas e instituições ao modo “ser” de existir compatível com a atividade
missionária seria preciso mudar radicalmente os determinismos socioeconômicos
que condicionam o modo “ter” de existir. O meio termo para sair do impasse sem
modificar a prática econômico-social implícita no modo de existência prevalente, hoje, o que se pode fazer,
efetivamente, será socializar a assistência médica mediante controle total desse
setor, pelo Estado. Na vigência do sistema capitalista são óbvias as
dificuldades técnicas e administrativas para o resgate efetivo das obrigações
do Estado com a saúde das pessoas. Tendo em vista contornar as distorções
inevitáveis no modo “ter” de existir, como dissemos anteriormente, o
“profissional” da saúde deverá ser subvencionado pelo Estado para poder viver
confortavelmente com sua família, inclusive com oportunidades de estudar e
aperfeiçoar-se nas habilidades que lhe são exigidas. Nestas circunstâncias não
se avaliaria o custo do ato médico, mas quanto se deveria investir para
oferecer ao médico e sua família as melhores condições de vida, liberando-o para
prestar seu trabalho a quem dele precisasse sem qualquer retribuição material imediata
do enfermo. Ao mesmo tempo, é fundamental que o Governo promova as condições de
trabalho necessárias para que o médico possa oferecer o melhor atendimento,
indistintamente, a todos os enfermos que demandem seus cuidados. Outrossim,
impõe-se que o Estado ponha em prática um extenso projeto de educação sanitária,
e de saneamento básico como parte de um amplo programa de saúde coletiva. Tudo
isso parece um sonho muito distante, mas não há outro caminho. Seria estulto
admitir que numa sociedade capitalista todas as pessoas, indistintamente,
possam pagar assistência médica de alto padrão.
A
socialização da prática médica no bojo de uma superestrutura socioeconômica de
livre mercado seria uma excrescência utópica! Diriam muitos. Todavia, cremos
ser possível criar um bolsão socialista para a assistência universal à saúde da
população numa economia de mercado, mediante forte investimento público, e
elevado compromisso moral dos Governos e dos médicos. Todavia, convenhamos,
esta proposta excede muito as expectativas sinalizadas pelos indicadores que
revelam o estágio atual do desenvolvimento humano[1].
Um olhar crítico para a realidade percebe sem dificuldade que o grande
obstáculo é a adesão universal dos homens ao exercício ético da existência; ou
seja, a prática da condição humana representada pela consciência pessoal e
responsabilidade social. Todavia presumimos com grande margem de probabilidade que
o investimento maciço do Governo e o compromisso moral de governantes e
governados tornariam sustentável a assistência médica ampla e gratuita à saúde,
no sistema capitalista. O modo “ser” de existir poderia prevalecer num setor da economia vinculada ao modo “ter” de existir,
disciplinando as relações de trabalho no setor considerado.
A
humanidade está distante de organizar-se em comunidade. Esperamos, todavia, que
os homens venham a perceber, coletivamente, que sua completa realização será o
fruto maduro da orientação que preside a experiência de "ser", e não
da que perfaz a experiência de "ter”. As ações pertinentes ao modo
"ser" de existir são a única maneira de impedir a destruição da
espécie, seja a instantânea, anunciada pelo “cogumelo” resultante da explosão
atômica, seja a que se prenuncia estampada nos corpos desnutridos, famintos,
doentes, nos grandes bolsões de pobreza espalhados nos países ao sul do equador,
e até no seio das nações desenvolvidas.
Everaldo Lopes
[1]
“O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é uma medida resumida do progresso a
longo prazo em três dimensões básicas do desenvolvimento humano: renda,
educação e saúde. O objetivo da criação do IDH foi o de oferecer um contraponto
a outro indicador muito utilizado, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita,
que considera apenas a dimensão econômica do desenvolvimento.”
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