“Dignificaste a espécie, na
nobreza
Das
grandes sensações de Harmonia e Beleza
Disseste
a glória de viver, e, agora,
O
teu eco a cantar pelos tempos em fora,
Dirá
aos homens que o melhor destino,
Que o
sentido da vida e o seu arcano
É
a imensa aspiração de ser divino,
No
supremo prazer de ser humano!”[1]
Ao nascer trazemos ao mundo a
“condição humana”[2].
Exercitando-a, enquanto vivemos buscamos alcançar a plenitude da “existência” definida,
culturalmente, por escolhas e decisões vinculadas aos valores morais
assumidos. Para atingir sua plena realização
a consciência livre e responsável pode trilhar muitos caminhos. Mas sob a
influência da cultura vigente a maioria dos homens respeita as normas éticas habitualmente
estabelecidas.
O
homem é uma construção que só se define depois de colocado o último tijolinho da sua existência.
O que é dado pela natureza, basicamente,
é a “condição humana”; o homem não é um ser natural. Como Natureza a Evolução
parou na infraestrutura biopsíquica capaz de sediar reflexões, escolhas e decisões.
Desde então o processo evolutivo se mantém numa dimensão predominantemente
cultural através do desenvolvimento psicossocial do homem, idealmente, tendo em
vista a edificação de uma comunidade. Nesta caminhada o homem constrói sua
“existência”, o modo de ser que lhe é próprio.
Permanece
impenetrável o mistério de como emergiram na infraestrutura biológica, manifestações
noéticas eminentemente espirituais como a consciência reflexiva, o pensamento
abstrato e a intuição criativa! Enfim, continua de pé a questão: o homem é a espiritualização
da sua ancestralidade animal, ou uma experiência humana do Espírito? A segunda
alternativa é a mais coerente com a tese monista espiritualista na qual se
propõe que a matéria e sua evolução acabam sendo o resultado da ordem impressa
pelo Espírito absoluto.
Não
sendo um ser natural, o homem assume alguns modelos culturais que são módulos valiosos
enquanto construções trabalhadas pela responsabilidade pessoal. Distinguem-se,
entre outros, os modelos estoico, espiritualista religioso ou filosófico, o materialista,
o naturalista, etc. Esses modelos resumem formas diferentes de interpretação da
realidade, que inspiram princípios fundamentais de normas e costumes disciplinares
da conduta. Fenomenologicamente, da
interação das tensões desse confronto entre a Natureza e os Valores éticos resulta
a humanização. Os valores éticos assumidos e as tendências naturais agem como
forças psíquicas que representam no interior do homem, respectivamente, o “poeta”
e o “selvagem" que existem em cada um de nós. Mas, se a luta entre estes polos
dinâmicos for radicalizada no sentido da vitória absoluta de um deles, o
resultado já não será o homem. Porque este se caracteriza, exatamente, pela
tensão permanente nas tentativas de integração dessas forças contrárias, mediante
um equilíbrio instável, que resulta na constante criação do “humano”.
“A
imensa aspiração de ser divino” e o “supremo prazer de ser humano” se integram no
desejo de transcender a dicotomia inerente à polarização existencial entre a
“espiritualidade” e a “sensualidade”. Na busca de uma integração destas
qualidades cria-se uma expectativa que de algum modo ilumina criativamente os
caminhos da “existência” na direção do ser pessoal cada vez mais consciente,
livre e responsável. A tentativa do Poeta de unificar a existência Implica em
apostar na harmonia essencial entre a inspiração divinatória (espiritualidade),
e a sombra da ancestralidade animal (sensualidade). Esta última disciplinada mediante
o comportamento ético alcançado inicialmente pela interdição dos instintos
primitivos, e depois pela prática solidária inspirada no amor, manifestação do Espírito,
que norteia o processo evolutivo desde o começo e se torna explícito no homem
através das funções psíquicas superiores.
Historicamente
a Filosofia clássica, fiel a uma epistemologia racional não conseguiu anular as
oposições existenciais. Ficou oscilando
num movimento pendular do pensamento especulativo, aproximando-se mais, ora do
espírito, ora da matéria. Superando esta metodologia do conhecimento baseada em
contrastes, o pensamento filosófico existencialista libertou a “existência” das
oposições internas, mediante uma visão intuitiva e dinâmica da realidade
visível e invisível, unificada na vivência totalizante que se sobrepõe ao
entendimento puramente racional objetivo. A experiência existencial vinculada à
visão holística[3]
da realidade transcende a percepção reduzida a conceitos estanques. A intuição
criativa vislumbra a unidade estrutural da realidade universal, e predispõe à experiência
de fé[4]. Nesta
perspectiva abre-se espaço subjetivo para a aceitação da unidade transtemporal da
Natureza e do homem. Então já não nos parecerá infantil ou aparentemente estranho
o diálogo de São Francisco de Assis com o “irmão Sol” e com a “irmã Lua”.
Numa
perspectiva ética naturalista como dizia Montaigne “Devo o que posso”. Mas a
espiritualidade se torna evidente na perspectiva de dependência existencial recíproca
e responsável das relações humanas interpessoais, nas quais o homem busca a
perfeição comunitária, procurando aproximar-se dela cada vez mais mesmo
sabendo-a inatingível.
Numa
tentativa de absorção dos polos existenciais na unidade do Todo universal, diríamos
que o êxtase místico é o “orgasmo” espiritual de uma comunicação íntima do
homem com o Absoluto criador, enquanto o orgasmo sensual é a confirmação física
de um verdadeiro encontro do par humano.
Ambos, o orgasmo espiritual e o sensual, reunidos numa mesma vivência sinalizam
a perfeita unidade do Espírito na sua experiência humana. Assim, de alguma
forma podemos imaginar que “a imensa aspiração de ser divino” inclui “o supremo
prazer de ser humano”. Esta é a minha versão da provocação que o Poeta faz nos três
últimos versos da estrofe derradeira de “Ode a um Poeta morto”. O desdobramento
das especulações sobre a convergência do “amor divino” e do “prazer humano”
pode levar o pensamento a descobertas sutis, surpreendentes, no sentido de
aproximar sem conflitos os opostos inerentes à construção do modo de ser
peculiar do homem - a “existência”. Desmitificando a espiritualidade da relação
pessoal com o absoluto criador, e espiritualizando a sensualidade da relação do
par humano ter-se-á o êxtase total numa vivência definitiva de ser pleno. Esta
experiência inexcedível arremataria, afinal, o esforço existencial de integração
do sujeito consciente na unidade absoluta que se projeta além do tempo.
Everaldo Lopes.
[1] A última
estrofe da “Ode a um poeta morto” de Raul de Leoni, dedicado à memória de Olavo Bilac.
[2] Ser
consciente, livre e responsável.
[3]
Referente à tendência que se supõe ser
própria do Universo de sintetizar unidades em totalidades organizadas.(Aurélio)
[4] Miguel
de Unamuno- “Ter fé não é crer no que não vimos, mas criar o que não vemos.”
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