domingo, 14 de julho de 2013

A busca de sentido, tema central da existência



A evolução da vida alcançou sua máxima realização na estrutura biopsíquica complexa do homem. Complexidade que tornou possível a manifestação da consciência reflexiva e do livre arbítrio, permitindo ao homem reconhecer e disciplinar suas pulsões instintivas. A Ciência ainda não consegue explicar a consciência reflexiva e o livre arbítrio, mas ambos definem a condição humana, permitem o diálogo dos indivíduos entre si, e de cada um consigo mesmo e com o mundo. Igualmente, propiciam o planejamento da organização social e politica da coletividade humana, assumindo um papel insofismável no processo evolutivo. A relação “eu-tu” encarna, então, um caráter ético incontornável, o primeiro passo na direção do objetivo histórico maior da Evolução, a construção da comunidade humana, mediante relações intersubjetivas.  Nestas interações o “eu” e o “tu” são mutuamente estruturantes. Na verdade as manifestações livres do vir a ser consciente marcam uma mudança de rumo na Evolução, no sentido da organização comunitária. O elemento decisivo desta mudança é a emergência da liberdade, uma dimensão até então inédita no universo, que torna possíveis as relações políticas e econômicas escolhidas livremente pelo homem em busca de soluções para os problemas sociais.
A interdependência dos elementos da realidade evolutiva do mundo, na qual se inclui o próprio homem, é a base da estruturação de um todo centrado no respeito aos indivíduos, na promoção do bem estar coletivo e na conservação da Natureza. Objetivando a integridade deste “todo”, as decisões pessoais conscientes e livres devem ser fundamentadas na prática da verdade e da justiça, lastro da dignidade humana. Constrói-se assim um humanismo que inspira o modelo de convivência baseado na cooperação e na partilha. Ou seja, uma organização política e social solidária que é fundamentalmente inclusiva; enquanto as ações egoístas marcadas pela competição (muito frequentemente desleal) e pelo acúmulo de bens conduzem à estratificação social e à exclusão de uma parte expressiva da coletividade que fica impedida de participar do “Bem Comum”. O modelo solidário resultante do exercício da consciência livre e responsável é o salto de qualidade mais importante na História da humanização. Sem esta conquista a espécie Homo Sapiens sapiens estaria condenada ao fracasso[1]... e, por via de consequência, a Evolução  seria interrompida. No  curso da humanização o homem se contextualiza em cada momento definindo-se por suas escolhas e ações nas quais deverá assumir os valores inerentes ao caráter responsável da consciência reflexiva. A Humanidade, prolongamento do processo evolucionário, não sobreviveria se o ideal comunitário (solidário) fosse anulado pelos interesses individuais e corporativos. E estes interesses são mais espontâneos do que o ideal solidário baseado nos vínculos recíprocos intersubjetivos responsáveis que buscam a harmonia coletiva universal. Embora, no vir a ser individual o “sentido” muitas vezes se esconda equivocadamente na satisfação da libido e no desejo de poder, em última análise só se manifesta em plenitude no esforço de integração do indivíduo num todo comunitário, ideal que transcende a complexidade biológica pura.  O movimento solidário empreendido ao arrepio das forças biológicas instintivas dá testemunho da espiritualidade humana. Entenda-se por espiritualidade o sinal de um dinamismo absoluto[2], perfeito em sua natureza que se manifesta no homem pela consciência reflexiva e exercício do livre arbítrio. A estabilidade social pode ser alcançada por um contrato social de fundo político e ético, o que já é muito. Mas só os laços solidários (espirituais) garantem a sustentabilidade das relações comunitárias necessárias à sobrevivência da espécie humana. A função básica da consciência é a de gerir ações definidas pelo ideal de solidariedade a ser impresso nas relações interpessoais. Este ideal aponta o sentido e o arremate da própria Evolução. Dir-se-ia que todo esforço evolutivo cósmico e biológico progrediu o tempo todo na direção do exercício da liberdade conata da própria consciência. Evidentemente, não há liberdade sem consciência reflexiva e vice-versa, da mesma forma que não há comunidade sem a prática de atos livres e responsáveis. Portanto, a liberdade que, por definição, transcende a organização biológica é a virtude basilar do vir a ser consciente no desempenho de sua missão evolutiva. Nesta prática o indivíduo encontra o sentido da própria existência ao contribuir para a construção da comunidade humana. Contribuição criativa que se elabora, por assim dizer, no hiato ontológico entre as funções biológicas de alta complexidade (do Sistema Nervoso Central) e a expressão dialógica noética da consciência reflexiva. Neste hiato subsiste a espiritualidade humana que tece no âmbito subjetivo o pensamento, a imaginação criativa e a crença, transcendências inexplicáveis à luz da razão pura.
            Transcrevo em seguida um fragmento da obra de Elizabeth Lukas[3], discípula presencial de Viktor Frankl, criador da Logoterapia[4], que traduz de forma convincente a mensagem que tentamos transmitir neste texto. Ao desenvolver as teses logoterápicas a autora questiona: “... Olhando em retrospecto a Evolução, não seria possível deduzir  que todos os seres que existiram até agora, existiram com a tarefa de criar  um campo de manifestação e expressão do espírito? Não podem assim ser entendidas as bases biológicas  e psíquicas da existência humana? Como é óbvio, a natureza do espiritual é diferente da natureza  do seu campo de manifestação, assim como  em certo sentido, a natureza da luz é diferente da natureza da lâmpada, do fio e do interruptor através dos quais a luz se manifesta. Mesmo assim, não se pode acender a luz da sala com um interruptor defeituoso embora a luz em si não seja defeituosa. Ela apenas não pode ser revelada, mas permanece livre e independente de qualquer interruptor. Da mesma forma se define na Logoterapia a dimensão espiritual (noética) do homem como algo que em si mesmo não pode adoecer, mas precisa dos préstimos de um organismo complexo sadio para manifestar-se. Dessa forma, o conjunto da cultura humana não pode mais ser interpretado como a domesticação progressiva do animal no homem, mas como a aurora do espiritual no homem”, pela manifestação

do espírito que preexiste ao espaço-tempo e nele permanece cifrado.[5] 
 Everaldo Lopes


[1] Se analisarmos os problemas sociais, de saúde, educacionais, políticos e econômicos que nos afligem veremos que todos eles resultam de desvios do exercício da consciência reflexiva.
[2] Conceito limite que satisfaz a tendência unificante do pensamento. Um dinamismo que se definiria como o princípio constitutivo e explicativo de toda realidade.
[3] Do livro “Logoterapia, a busca do sentido”
[4] Logoterapia: Terceira Escola Vienense de Psicoterapia, sendo a Psicanálise Freudiana a Primeira, e a Psicologia Individual de Adler a Segunda.
[5] O espaço e o tempo surgiram após o big-bang. Todavia, o espaço-tempo, contingente, finito, não pode ser autor de si mesmo. O antes, portanto, ainda imaterial, espiritual, assume o caráter de um absoluto que se basta, e permanece, necessariamente,  de alguma forma misteriosa no espaço-tempo porque este, pura contingência, não subsistiria por si mesmo.

4 comentários:

  1. Painho, meu velho pensador,

    Tenho me debruçado sobre esses temas. Trabalhando com o tema da violência e da intolerância na sociedade, preciso compreender como se funda o campo intersubjetivo que torna possível a realização de trocas simbólicas que envolvem, numa perspectiva construtiva, relações de reciprocidade, lealdade, solidariedade, cooperação, colaboração, fidelidade, etc. Na verdade, sabemos que todas essas práticas pressupõem o reconhecimento do outro como um sujeito de direitos. Meu interesse por essas questões, portanto, deve-se ao meu desejo de compreender como é possível a construção de laços sociais sólidos e duradouros; isso porque quero e preciso entender por que os laços se quebram, enfraquecem e se esgarçam favorecendo as relações de confronto, desrespeito e violência?
    Confesso que transito por esses temas como desejo de compreender o que tem determinado o aumento significativo dos índices de violência em nossa sociedade, ao tempo em que também os crimes tornam-se cada vez mais perversos, cruéis e intensos no tecido social.
    Percebendo a violência como um gesto de desamor, de desrespeito, de não reconhecimento e de indiferença, fico a pensar que caminho precisamos tomar para que os sujeitos optem, a partir do seu livre arbítrio, e munindo-se de sua consciência reflexiva, por transformar os cenários sociais, políticos, econômicos, culturais que geram tanta dor e sofrimento. Num mundo injusto como o nosso, onde a concentração de renda e a desigualdade social condena milhares de milhões de seres humanos à miséria, como podemos pensar em liberdade? Essa é uma questão que me intriga. Tudo bem, sei que não somos determinados pelo contexto social; que somos capazes de construir alternativas, de fazer a diferença, de escapar das tramas sociais em que estamos inseridos; mas, penso que a ausência de oportunidades também pode ser um fator redutivo do campo das escolhas no universo objetivo e subjetivo dos sujeitos sociais.
    O que percebemos na conjuntura atual, onde o desrespeito às leis começa dos próprios legisladores (nossas casas parlamentares), é que fica cada vez mais difícil sugerir a adesão às leis e às normas sociais como alternativas à barbárie e uma afirmação ao civilizatório. Tenho a sensação de que a liberdade de quem está no poder, quando exercida de forma desrespeitosa, antiética e corrupta, faz um estrago indescritível ao tecido social. Essas práticas desrespeitosas dificultam a adesão aos códigos, tratados, convenções e leis que sustentam a ordem simbólica imprescindível à constituição dos laços sociais. Como você falou: “o modelo solidário resultante do exercício da consciência livre e responsável é o salto de qualidade mais importante na História da humanização”. Lamentavelmente, a adesão a esse modelo solidário não é hegemônica em nossa sociedade; ou seja, “o ideal comunitário (solidário)” é, permanentemente, posto à prova pelos “interesses individuais e corporativos”. Ainda não temos uma adesão aos valores e princípios que reforçam o “o ideal solidário baseado nos vínculos recíprocos intersubjetivos responsáveis que buscam a harmonia coletiva universal”.
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  2. ...
    Como podemos contribuir para que esse modelo (de justiça, igualdade, solidariedade) torne-se um desejo de todos? De que forma é possível convencer de que mais vale fazer renúncias pulsionais do que optar pela expressam dos desejos de destruição (competição, vingança, inveja, ciúme - desejo de posse – e outras tantas mesquinharias e sentimentos desprezíveis), sem freios morais? O que pode ser feito para fortalecer os “laços solidários (espirituais) que garantem a sustentabilidade das relações comunitárias necessárias à sobrevivência da espécie humana”?
    Esses temas me são muito caros. Concordo e entendo que a “espiritualização do humano”, que o desenvolvimento da “aura do espiritual no humano” é imprescindível para garantirmos a continuidade do projeto civilizatório. Mas, no real, pergunto: como criar um ambiente propício a este desenvolvimento espiritual e solidário?
    Esse é um desafio, meu velho pensador. Temos muito chão para andar e desafios a enfrentar. E disso se faz uma vida!
    Beijo no coração, da filha, Ruth.

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  3. Painho,

    relendo o que lhe escrevi, encontrei um erro ortográfico que precisa ser corrigido, para não arranhar minha imagem de professora.

    No primeiro parágrafo da segunda parte do comentário: onde se lê "expressam dos desejos", leia-se, "expressão dos desejos".

    Peço desculpas a você e aos seus leitores.

    Beijo no coração, da filha,

    Ruth.

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  4. Filha.
    Faço meus os questionamentos inseridos neste comentário. Eles não comportam respostas definitivas. Mas para mergulhar um pouco mais nos problemas existenciais implícitos vou aborda-los mais extensamente no próximo texto deste Blog.
    Um beijo do pai.
    Everaldo

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